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Mania de peitão, mania de peitão

No documento Compor e educar para descolonizar (páginas 92-96)

Convergentemente com os valores difundidos pela sociedade de consumo, nas últimas décadas emerge nos países ocidentais o fenômeno do culto ao corpo. Nancy Etcoof (1999) sublinha que, nas diversas civilizações ao longo da história da humanidade, sempre houve o cuidado com a beleza como algo inerente à natureza humana. Porém, capturado pelo consumismo, a busca do corpo perfeito transforma-se numa verdadeira obsessão. Nestas últimas décadas, devido à transformação do corpo em produto e em produtor da sociedade de consumo, proliferam no Brasil academias de ginástica, clínicas de estéticas, salões de beleza, spas e outros tantos espaços destinados aos rituais próprios dessa nova religião que é a corpolatria.

Gabriel O Pensador, Fernanda Abreu e Liminha, atentos às transformações comportamentais derivadas da expansão do culto ao corpo, constroem um verdadeiro manifesto, expresso na canção Nádegas a declarar, contra os riscos de imbecialização presentes no avanço da idolatria do corpo. Insatisfeitos com a supremacia alcançada por uma parte do corpo, a região glútea, sobre outras partes importantes, como a cabeça e o coração, eles denunciam essa excrescência comportamental.

Ordem e progresso, sua bunda é um sucesso / Nádegas a declarar, nádegas a declarar / Ordem e progresso, sua bunda é um sucesso / Nádegas a declarar / Você tira até retrato três por quatro de costas

Pensa com a bunda e quando abre a boca só sai bosta / Talvez você nem seja tão piranha / Mas qualquer concurso miss bumbum que tem, você se assanha / A-aha! e tira foto fazendo pose de garupa de moto / A-aha! vai sair na revista e o povo vai dizer que você é / Artista

Porque agora bunda é arte, é cultura, é esporte / É até filosofia, quase uma religião / E se você tiver sorte pode ser seu passaporte para fama / Ou pra cama, pode ser seu ganha-pão / Bunda conhecida, bunda milionária /

Bonitinha mas ordinária / Que nem otária na TV, de perna aberta / Queima o filme das mulheres e se acha muito esperta / Vai, vai lá! vai entrar na dança, vai usar a poupança / Vai ficar orgulhosa sem saber o mau exemplo que tá dando pras crianças / Adolescentes, adultas e adultos retardados / Que idolatram um simples rebolado / Bando de bundão!! Aplaudindo a atração /

Não pelas idéias, mas pelo bundão.

Num contexto, no qual a busca do corpo perfeito configura-se como uma “nova utopia” substitutiva às utopias “perdidas ou inacessíveis”, como diz Ana Márcia Silva (2001: 54), o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial em cirurgias plásticas. Sintonizados com essas transformações geradoras de um profundo vazio acerca do sentido da vida, os compositores Seu Jorge e Bento Amorim, em Mania de Peitão, contrapõem à crescente tentativa de fabricação do corpo perfeito. Ao demonstrarem a artificialidade projetada nos corpos, através dos implantes de silicones garantidores da alta lucratividade de uma indústria voraz, Seu Jorge e Bento Amorim avisam: a

musa do ano 2000 é armação de silicone...

Ela tem um rebolado / Por demais sensual / Domina os olhos da gente / Com seu corpo escultural / Na praia é uma delícia, com sua cor de jambo / Deixa muita mulher recalcada / E tudo que é homem babando

A noite ela é uma estrela / Ofusca o brilho da lua / Não há beleza na Terra / Que se compare com a sua / Mas o que o povo desconhece / É que este tremendo ciclone / Musa da geração 2000 / É armação de silicone

Mania de peitão / Mania de peitão / Mania de peitão / É armação de silicone.

No que diz respeito ao consumo de cosméticos, alimentadores do eterno sonho de juventude, ocorre uma substancial expansão. Hidratação, relaxamento, escova “inteligente”, luzes, megahair, escova progressiva, coloração, chapinha, permanente, massagem, rinsagem, reflexo e otras

cositas más, fazem parte do cotidiano de milhares de mulheres do Oiapoque

ser sempre mais bela do que a beleza produzida por qualquer salão, tece críticas à louca e inalcançável busca da perfeição estética. Na canção Salão

de beleza, Zeca Baleiro aposta na verdadeira beleza que nunca é alcançada

com a aplicação de hidróxido de guanidina, formol, hidróxido de sódio, lítio, hidróxido de amônia e tantos outros produtos químicos que enriquecem as indústrias de cosméticos, sem jamais garantir a superação da pobreza espiritual de suas consumidoras.

Vem você me dizer que vai a um salão de beleza / Fazer permanente, massagem, rinsagem / Reflexo e otras cositas más / Baby você não precisa de um salão de beleza / Há menos beleza num salão de beleza / A sua beleza é bem maior do que qualquer beleza de qualquer salão.

Mundo velho e decadente mundo / Ainda não aprendeu a admirar a beleza / A verdadeira beleza / A beleza que põe mesa / E que deita na cama / A beleza de quem come / A beleza de quem ama / A beleza do erro puro do engano da imperfeição.

Salões de beleza, clínicas de estética, academias de ginástica e spas, não são os únicos espaços ocupados com a busca da fabricação do corpo perfeito. Como diz Almeida, acerca da vida excessivamente protética, no interior das residências também essa fabricação é perseguida em razão da existência de verdadeiros arsenais de porções responsáveis por nos manter vivos e em forma.

Num certo lugar de nossas casas uma mini-farmácia estoca medicamentos reais e necessários, porque sugeridos por nossos médicos, e também porções virtuais de fabricação de outro ser, outra pele, outra dinâmica, outro ritmo do corpo. Quase tudo é protético na dinâmica biológica do frankenstein moderno: há remédios para acordar e para dormir, energéticos para nos manter ativos, ansiolíticos para nos manter calmos, vitaminas e complementos alimentares. Numa palavra, pílulas para induzir felicidade e para curar a infelicidade. Pobre espécie humana que esqueceu como ser feliz por suas próprias mãos com a ajuda de legiões de fadas que habitam seu espírito! (ALMEIDA, 2003b: 297).

Este patológico culto ao corpo, o encantamento com valores exógenos e a sede de consumo revelam permanentemente a trágica ilusão projetada pelo desenvolvimento ocidental.

TÃO TE MALTRANDO POR DINHEIRO

É porque o homem não pensa Não raciocina bem

Toca fogo na floresta Não pergunta a ninguém Ele não consulta nada Se ali pertence a alguém.

No documento Compor e educar para descolonizar (páginas 92-96)