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Em 1945 um professor de física da cidade do interior paulista de Taubaté teria presenciado uma série de “fenômenos” ocorridos na cidade vizinha de Pindamonhangaba e narrado suas experiências, algumas registradas fotograficamente, num livro escrito “a pedido de

um fantasma”65. Parte dos fenômenos tratados neste livro são de

“operações espirituais” (“intervenções cirúrgicas”, muitas vezes realizadas sem o uso de instrumentos de corte e sutura) que, segundo o autor, “seriam casos únicos nos anais da metapsíquica”. Embora esses trabalhos tenham ocorrido num ambiente espírita-kardecista, o autor não chega a enfatizar as obras de Kardec e tampouco a própria figura do “codificador” do Espiritismo.

Da mesma forma o livro não indica a autoria das fotografias e muito menos retrata a figura do médium em detalhes; porém elenca dezenas de “pessoas de integridade moral reconhecida”, que são as testemunhas responsáveis dos fenômenos. Como já havia sido ao final do século XIX na Europa e nos Estados Unidos, como em torno do maestro Bosio e de Carlos Mirabelli, serão os representantes da classe dominante que irão figurar nos registros desses encontros, que chegaram até os nossos dias na forma de livros ilustrados. A lista de Pereira inclue a mesma classe de comerciantes, industriais, fun- cionários públicos, médicos, juízes, advogados e profissionais liberais que se reuniam para assistir às maravilhas provocadas por um per- sonagem, quase sempre humilde, uma dona de casa, um trabalhador ou desempregado, muitas vezes iletrado, que era o catalizador dos efeitos de materialização66.

Os eventos descritos por Pereira ocorreram entre 1945 e 1946 e invariavelmente são descritos a partir das várias “precauções tomadas nas sessões [...] como as adotadas em certos meios científicos internacionais [visando] excluir a hipótese de truques ou fraude consciente” (pág. 32). Esses trabalhos experimentais seguiam uma série de regras que remontam o início dessa prática nas sessões espiritualistas do século XIX e que serão mantidas ao longo de todo o século XX. Elas prescrevem normas de controle para o espaço e a cabine de experimentação, segundo as quais:

65. Urbano Pereira. “Trabalhos post-mortem do Padre Zabeu”. São Paulo: Ed. Urupês, 1946. Ambiente de experimentação e cirurgia mediúnica.

66. Os nomes mais recorrentes na literatura são os dos médi- uns Otília Diogo, de Minas Gerais, “a médium por intermé- dio de quem as formas se mate- rializam” (O Cruzeiro, 01.02.- 1964); o “médium de efeitos físicos” Francisco Antunes Bello (Pereira, 1946; 141); Antonio Feitosa, de São Paulo (Rizzi- ni,1997); Francisco Peixoto Lins, o “o maior médium de material- izações” (Palhano Jr., 97 e Ranieri, 2003); Adélia Prado (Faria, 1921); Ana Bernardino Ferreira, de Pedro Leopoldo - “humilde e boa médium de efeitos físicos” (Ranierei, 2003).

“(a) A sala é previamente examinada; as portas fechadas à chave recobertas com cortinas espessas; as janelas fechadas a ferrolhos e inteiramente recobertas com um pano escuro pregado a um quadro de madeira. Não haveria possibilidade normal de entrada ou saída de seres vivos ou de objetos sem que as pessoas presentes o percebessem.

(b) O médium é manietado com forte e justa algema de metal, fechada a cadeado, ficando a chave em poder dos experimentadores. [o médium deverá] sentar-se numa poltrona colocada contra a parede do fundo da sala ou numa cabine armada com cortinas escuras. [...] Não é possível ao médium sair do seu lugar ou levantar-se por qualquer meio normal imaginável.

(c) Os assistentes sentam-se em cadeiras dispostas em semi- círculo em frente ao médium. Geralmente um forte cordão sem emendas é passado através de uma casa do paletó dos assistentes e respectivas cadeiras, ficando as duas pontas seguras por um dos experimentadores. Qualquer movimento mais pronunciado de um é assim percebido por todos. (d) Entre os assistentes e o médium, fora do alcance de todos, colocam- se vitrolas, discos, cornetas, acústica, quadros luminescentes e outros objetos. (e) Apagam-se as luzes, faz-se silêncio. [...] Forma-se ambiente mental de expectativa [...] a vitrola é posta em movimento [...] em completa escuridão ouve-se o disco girar e a agulha é colocada precisamente no começo da gravação [...]. (f) [...] O médium em geral se encontra em estado de letargia ou transe e desperta com os passes. Os cadeados são examinados e abertos. Lavra-se uma ata registrando as ocorrências e as impressões dos assistentes” (Pereira, 1946: 32- 34).

Todas essas etapas serão freqüentemente repetidas pelos promotores desse tipo de sessão, procurando caracterizar com uma atmosfera de “controle científico” a realização de “experimentos” que se propunham representar uma ciência emergente. O médium

protagonista das imagens deste livro foi Francisco Antunes Bello67 e

as primeiras manifestações ocorridas por seu intermédio seguem como que um cardápio de efeitos: pancadas e estalos nos móveis; telegrafia espiritual; objetos colocados em levitação; vitrola acionada; aspersão “transcendental” de perfume no ambiente; quedas de pedras e tijolos no interior da sala; presença de glóbulos e nuvens de débil luminescência vagando pelo ambiente; fotografias feitas sob orientação dos “espíritos” que, quando materializados, realizam ainda moldagens de flores, mãos e pés em parafina, ligam e desligam interruptores de luz, deixando entrever por breves segundos seus contornos sob uma luz fraca e vermelha.

No entanto os trabalhos do grupo de Pindamonhangaba

tinham em vista, primeiramente, a prática da cura, mais especificamente das operações “realizadas sem deixar marcas

67. Bello será protagonista de uma única fotografia encon- trada até agora nessa pesquisa da chamada “fotografia do pensamento”. Nela normalmen- te o médium fotógrafo dispensa o uso da câmera, ou a utiliza como mero magazine para filme, como fazia o médium Ted Serios, o mais conhecido repre- sentante dessa forma fotográfi- ca. Sobre ele há um estudo clássico de Eisenbud, 1971. No alto, o “cordão de ectoplasma” aciona uma vitrola, enquanto o médium se encontra inconsciente. Acima, mentalização do “marajá de Kapurtala”, em foto de José R. de Carvalho, que registra o pensa- mento do médium Bello [não se trata de uma “materialização”] (Ranieri, 1967: 160).

externas, mas com efeitos positivos de cura, segundo informam os pacientes” (Pereira, 1946: 95). A confirmação da extração de um apêndice é mostrada por meio de uma primeira radiografia onde se vê a “imagem apendicular” e numa segunda radiografia, posterior à intervenção do “espírito médico”, em que o apêndice havia sumido. Caso raro em nossa iconografia, temos nesse livro a reprodução do ambiente de cirurgia, visto com um paciente deitado na cama, uma pequena mesa com uma bacia de água, uma garrafa de álcool e o médium amarrado a uma cadeira. O acontecimento todo desenrolava- se no escuro, mas o sucesso dessas “cirurgias inabituais” ficavam sob

os holofotes dos “principais órgãos de imprensa68do país e alguns do

estrangeiro [que] noticiaram o fato com grande destaque” (pg. 85). Pereira trata diretamente do uso da fotografia ao descrever que, normalmente, eram feitos dois registros, um antes da sessão, com as luzes acessas e outra no escuro, com o uso do flash. Era neste segundo registro que apareceriam os “cordões de ectoplasma” ligados ao médium, como “num deles [em que] o médium se apresenta enrolado num lençol e com a máscara de um rosto estranho. Padre Zabeu informa tratar-se do Dr. Francisco Costa, médico falecido, cuja identidade não foi estabelecida” (pg. 90). Ele ainda descreve outras manifestações registradas com o mesmo médium “com o fito expresso de se obter fotografias evidenciais”.

“Duas máquinas fotográficas eram armadas em tripé junto a uma das paredes da sala e focalizadas sobre o médium. Este se sentava algemado de mãos e pés, com as algemas dos pés presas à cadeira por uma barra de ferro. O fundo era formado por uma cortina de pano preto. A sessão iniciava-se como de costume, ficando com as objetivas das máquinas fotográficas abertas, depois de apagadas as luzes. Ao sinal dado por um médium ‘vidente’, que se sentava entre os demais assistentes junto às paredes laterais da sala, a lâmpada de ignição [flash] era deflagrada e a chapa impressionada pela luz intensa e instantânea. Os chassis eram carregados e revelados por dois dos experimentadores” (Pereira, 1946: 120-121).

A série fotográfica deste pequeno livro é uma das mais particulares da coleção, por representar perspectivas abertas ao ambiente de experimentação (sala, móveis, quadros na parede, o médium), além do próprio gabinete do médium, colocado no centro da imagem contra um fundo escuro, que ressaltando sua figura com

roupas claras e estranhas ectoplasmias escuras “dando a impressão

de um pano preto” (fig. 18).

Uma tese de doutorado em medicina publicada nos anos 40

O clima de “pesquisa espiritualista” descrito por Pereira, cuja conclusão se encerra com considerações acerca da ciência ocidental

68. Numa passagem do livro de Pereira ficamos sabendo que o poeta Menotti Del Picchia havia enviado três repórteres do jornal “A Noite”, de São Paulo, para cobrir uma dessas sessões em janeiro de 1945 (pg. 59).

Aqui os “cordões ectoplasmáti- cos” acionam uma vitrola ao lado médium. Os espíritos gostam de música.

Cordões de ectoplasma liberados pelo médium, terminando na forma de uma mão que faz um disco de vinil levitar no espaço. (Pereira: 1946: foto 25)

e das religiões do mundo, irá encontrar eco numa tese de doutorado defendida no campo da clínica psiquiátrica, na Faculdade de Medicina do Paraná. Publicado em 1940 o trabalho de Osmani Emboaba faz uma apreciação crítica dos estudos realizados pelos grandes sábios espíritas e espiritualistas e elenca todas as manifestações no campo da mediunidade, reproduzindo, curiosamente, poemas e sonetos no corpo de sua tese para comparar o trabalho do subconsciente, descrito pela psicanálise “resultantes de forças desconhecidas, latentes no ser humano” e o trabalho feito por obra dos “espíritos”. Emboaba procura também discutir fatos de difícil comprovação como o da materialização de um “espírito” citando fatos observados nas sessões do médium Mirabelli (Emboaba, 1940: 110).

Neste seu livro encontramos também uma fotografia atribuída a um fantasma, tal como no álbum do maestro Ettore Bosio. Numa seqüência de três imagens são mostrados “aparelhos providos de células fotoelétricas”, cujos raios infravermelhos quando inter- ceptados pela mais leve vibração, produziriam um disparo automático da câmera fotográfica. Numa segunda imagem se vê um registro gráfico de “galvanômetros automáticos dos movimentos de um ectoplasma invisível”, enquanto a terceira imagem revela a “notável fotografia tomada sem intervenção humana, pela interrupção de uma barragem de raios infravermelhos que determinaram, pelas células fotoelétricas a explosão do magnésio [flash]”; imagens reproduzidas pelo jornal O Diário de São Paulo de 20/01/1938. O livro traz ainda um resumo de toda as argüições da banca que terminou por reprovar a tese do jovem candidato a doutor, mais tarde notabilizado por seu trabalho como literato e historiador.

3.7 AS MATERIALIZAÇÕES DO MÉDIUM PEIXOTINHO