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O manifesto e seu papel na arte moderna

No documento A concepção de palavra na poesia práxis (páginas 40-42)

3. A PRÁXIS DA PALAVRA NO “MANIFESTO DIDÁTICO”

3.1 O manifesto e seu papel na arte moderna

Na arte moderna, principalmente nas produções de vanguarda, o manifesto é um dos recursos que mais chamam atenção, por sua natureza e propósitos. O tom beligerante, as assertivas generalizantes e proféticas acerca da arte e da História, além

de, muitas vezes, a própria qualidade estética de muitos deles51, fazem dos manifestos

um objeto de estudo imprescindível para a compreensão dos movimentos estéticos do último século.

Marjorie Perloff (1993)traça um breve resumo do percurso que leva a idéia do manifesto ligada a uma proclamação, por indivíduos ou grupos, de atos concernentes a assuntos públicos, com o intuito de torná-los conhecidos em suas razões e em seus processos – uma noção ligada ao poder oficial, portanto – até a concepção marcadamente contestatória dos movimentos de vanguarda. Assinala a crítica americana que desde a Revolução Francesa, entretanto, a noção de “manifesto” já é marcada fundamentalmente pela de contestação e rebeldia. Nesse sentido, o manifesto torna-se um discurso agonístico, polêmico por princípio. O Manifesto do Partido Comunista (1848) publicado por Marx e Engels, representaria de maneira marcante essa nova acepção.

Os manifestos de Marinetti têm consigo esse caráter polêmico e, embora haja um traço fundamentalmente beligerante e autocentrado, eles não escondem um aspecto fundamental e aparentemente contraditório às características esboçadas: seu intento de comunicar uma nova realidade estética, explicitando-lhe os pressupostos, processos de criação e ramificações nos campos da cultura e da História. Isso porque o manifesto ocuparia um espaço intermediário entre a tradição, o hábito e a repetição histórica de temas e procedimentos artísticos e a nova realidade estética que busca instaurar. Cavando espaço para o novo, o manifesto coloca-se como intervalo entre o passado que

pretende superar e o futuro em que não será necessário.52

51

Marjorie Perloff dedica o terceiro capítulo de seu livro O momento futurista à qualidade estética dos manifestos futuristas, que superavam mesmo as próprias produções poéticas do movimento. Ver:

Violência e precisão: O Manifesto como forma de arte. In: PERLOFF, Marjorie. O momento futurista,op.cit.,p.151 e ss.

52

Cf. AGUILAR, Gonzalo. Poesia Concreta Brasileira: As Vanguardas na Encruzilhada Modernista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005,p.34

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Essa comunicação de princípios dos manifestos exemplifica de forma contundente a estreita relação entre produção artística e teórica nos escritores e poetas modernos. Não que isso seja fenômeno específico do modernismo; trata-se, porém, de um acento, nessa faixa histórica, que coincide com o questionamento de valores e tradições religiosas, filosóficas e sociais. Sem esteios que lhe sejam oferecidos pelo mundo, o artista volta-se para si mesmo para compreender o próprio ofício:

Na prática, o exercício da crítica pelos próprios escritores se deve, em grande parte, ao fato de os princípios, as regras e os valores literários terem deixado de ser, desde o romantismo, predeterminados pelas Academias ou por qualquer autoridade ou consenso. Diluíram-se e perderam-se, pouco a pouco, os códigos que orientavam a produção literária: código moral ( o Bem), código estético (o Belo), código de gêneros (determinado pela expectativa social), de estilo(orientado pelo gosto), código canônico ( a tradição concebida como conjunto de modelos a imitar). Cada vez mais livres, através do século XIX e sobretudo do século XX, os escritores sentiram a necessidade de buscar individualmente suas razões de escrever, e as razões de fazê-lo de determinada maneira. Decidiram estabelecer eles mesmos seus princípios e valores, e passaram a desenvolver,paralelamente às suas obras de criação, extensas obras de tipo teórico e crítico.53

No caso dos movimentos de vanguarda, como já tivemos oportunidade de discutir, os manifestos propõem-se como instrumento para a compreensão dos novos parâmetros e processos para os quais o público e a crítica não estariam aparelhados. Em alguns casos, porém, teoria e prática relacionam-se de forma assimétrica. Antoine Compagnon (1996) detecta essa realidade em dois momentos fundamentais da arte moderna: o abstracionismo e o surrealismo.

No que diz respeito ao primeiro, Compagnon julga obsoleta a teorização de um processo novo e vigoroso na arte. Kandinsky, Mondrian e Malevitch, inauguradores do abstracionismo, procuraram explicar e justificar suas obras recorrendo à filosofia espiritualista (Kandinsky), à teosofia (Mondrian) e ao niilismo (Malevitch). Para Compagnon, o abstracionismo, possibilitado pelas doutrinas estéticas do século XVIII que separam forma e conteúdo, bem como pelo processo de autonomização da forma no século XIX, pode ser explicado, mais plausivelmente, se observada a tendência racionalista e funcional do século XX. Anseios por essências escondidas sob o

53

PERRONE-MOYSÉS,Leila. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,p.11.

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fenômeno, por depurações da forma e mergulhos em busca do Nada seriam recursos para “justificar sua pintura através de uma teoria que a tornasse aceitável aos olhos do

público, assim como para eles mesmos”54.

Quanto ao surrealismo, o autor sustenta a tese de que nele a discrepância entre teoria e prática ocorre de forma diversa. Para Compagnon, as teorizações do surrealismo desembocaram em “obras frequentemente com sabor de passado e suscitaram um novo

academicismo”55. As pretensões de Breton consistiam em julgar científicas suas

teorizações acerca do movimento: buscando justificar a prática da escrita automática e da narrativa dos sonhos, ele tenta estabelecer vínculos com a Psicanálise. Entretanto, acentua o crítico belga, baseando-se em parte nos argumentos de Theodor Adorno, o surrealismo recorta as dimensões amplas do sonho para situá-las em algumas categorias, processo curiosa e paradoxalmente racionalista. Ademais,Freud, afirma Compagnon, interessava-se pelo sonho não como objeto em si mesmo, mas como parte integrante de um contexto mais amplo, que diz respeito às circunstâncias da vida do paciente. Os surrealistas, por sua vez, isolam o sonho dos contextos em que deve estar inserido, esvaziando-o a ponto mesmo de torná-lo um simulacro nas obras.

No documento A concepção de palavra na poesia práxis (páginas 40-42)

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