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No mapa acima, elaborado por Enrico Antonio Galluzzi em 1759, como bem referido por Costa e Cintra (2013), é uma espécie de fotografia do que havia sido “desenhado” e se constituído, assim como um novo paradigma naquele momento para a cartografia amazônica. Esse mapa vai mostrar todo o sentido da reforma urbana desencadeada por Mendonça Furtado. Segundo Renata Malcher de Araújo (2012), é raro na cartografia brasileira as freguesias aparecerem delimitadas. No mapa acima, elas representam, de fato, cada um dos novos municípios recém-criados que se distribuem ao longo do Rio Amazonas e seus afluentes. Uma urbanização simbólica e uma representação urbana daquele espaço, que claramente se incorpora ao território, pois se escreve, desenha-se como espaço das cidades, apagando de suas representações o mato ou o sertão, o lugar não-urbano que perdurou por muito tempo no imaginário do território colonial (ARAÚJO, R. M., 2012, p. 59). Apesar de haver no mapa, a partir da folha 4 (o mapa está dividido em 4 partes), as representações convencionais para árvores/mata, montanhas, ilhas, lugar43, vila, cidade (Belém), tracejado para divisas, etc., o que prevalece é o território todo delimitado por uma abundante toponímia de rios, vilas, lugares, dentre outros indicativos.

A evidência de ser um mapa que marca uma nova forma de se cartografar os espaços lusos americanos, incluindo, a Amazônia, fica visível quando se compara aos mapas anteriores, como o Mapa de La Condamine (1744) ou o Mapa das Cortes (1749), pois fica nítida a nova divisão territorial. Esses consignavam ao longo dos rios expressões como: missões carmelitas, missões jesuítas e outras. Já no do Bispado, desaparecem as missões e aparecem as freguesias. Aparentemente uma mudança de divisão religiosa pode se delinear nessa nova reformulação espacial: o clero regular (missões levadas por religiosos) é substituído pelo clero secular, na dependência do bispo; e o território de missões passa a ser dividido em freguesias, que, à propósito, são bem semelhantes às paróquias, em termos atuais) que compõem a Diocese de Belém (COSTA; CINTRA, 2013).

Todo esse espaço concebido e reformulado da Amazônia pombalina foi possível, especialmente, pela forte participação da população indígena e, sobretudo, pela prática dos descimentos que retiravam esses indígenas dos seus lugares de origem encaminhando para o aldeamento nas povoações mais distantes de sua morada para assim dificultar o retorno ao seu modo de vida anterior. E apesar de toda a política de pacificação feita pelos missionários,

43 Cabe destacar uma possível gênesis que marca a diferença entre vila e lugar; transformou-se em vila toda aldeia ou fazenda, que tinha uma população acima de 150 habitantes, uma categoria civil nova, onde em cada local era constituída uma autoridade civil (diretor). Lugar seria, como mapeou Mauro Coelho, uma espécie de local de reserva de mão de obra indígena, geralmente, uma aldeia de índios, anexa às vilas. (COELHO, 2008, p. 272).

muitos ajudavam nesses descimentos se infiltrando nos povoados indígenas, conquistando a confiança e presenteando os nativos com artefatos diferenciados, ofertas de gêneros para sua roça e diversas promessas de melhorias de vida. (DANIEL, 1976).

Contudo, nos descimentos ocorridos no período do diretório dos índios, houve algumas mudanças no processo de convencimento dessa prática, apesar da estratégia de presentes ter sido mantida – roupas, tecidos, chapéus, machados, foices, barbantes, granadas, pólvora, espelhos, etc., tudo fazia parte da relação de bens que eram oferecidos aos índios – mas dessa vez a chefia indígena da povoação ganhava uma distinção ainda mais diferenciada, sinalizada por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que os outorgava com a manutenção de sua autoridade. Assim, foi recorrente nesse período a participação de oficiais índios envolvidos na realização dos descimentos durante toda vigência da lei, buscando convencer parentes a se juntarem aos estabelecidos das povoações portuguesas. (COELHO, 2006; 2008).

Afinal, estar na floresta, para esses nativos, já não significava mais uma morada tão harmônica, pois os inimigos já não eram mais as velhas e conhecidas povoações rivais; uma que os deste presente chegavam com armas de fogo, montados em animais que os índios desconheciam; já para outros as ofertas da política lusitana eram mais vantajosas que a dos holandeses ou hispânicos. De todo modo, a alternativa dos aldeamentos para os indígenas acaba por ser uma alternativa para muitos de sobrevivência diante de centenas que haviam desaparecido.

O fato de muitos desses indígenas optarem por viver nos lugares e vilas estabelecidos pelo Diretório de índios, não significava que aceitavam passivamente essa política, apesar da “escolha” do aldeamento estar relacionada a um intenso processo de sobrevivência pelo qual passavam fora dos aldeamentos e dos núcleos coloniais. Eram inúmeros os casos de rebeliões que marcavam essa paisagem amazônica concebida na lógica colonial44, como, por exemplo, rebeliões, a saída temporária da população na qual viviam para evitar trabalhos onerosos, as fugas, resistindo para buscar meios para garantir certa autonomia. (SANTOS, F. J., 2012).

Outro ponto de vista importante de problematizar é o papel dos indígenas como protagonistas atuantes das paisagens45 que marcam o espaço social colonial concebido.

44 Ver: MELO, 2010.

45 “Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc”. Logo, paisagem é diferente de espaço, pois a primeira é a materialização de um instante da sociedade, como se fosse “fotografia” de um dado momento com seus protagonistas, a complexidade da cognição de quem observa resulta em múltiplos e diferenciados olhares. Já o espaço resulta do casamento da sociedade com a paisagem. O espaço contém movimento. Com a produção humana, há, portanto, produção do espaço. Paisagem e espaço como pares dialéticos que se opõem e se complementam. (SANTOS, M., 1988, p. 21- 26).

Vanice de Melo (2010), em estudo aprofundado sobre a questão, revela com clareza a importância da população indígena sobre as marcas deixadas nos espaços-núcleos coloniais por meio da construção dessas vilas, lugares e povoações erguidas pelas suas próprias mãos, afinal era atribuído aos nativos grande parte da responsabilidade para cultivar as terras, coleta dos frutos e drogas ou mesmo na construção de fábricas. Logo, os índios foram esses agentes transformadores da paisagem colonial, assim como os não aldeados e os “rebeldes”, que também tiveram sua participação na formação dessas paisagens: “[...] os índios hostis eram tão importantes quanto os aliados na formação dessa paisagem. Na documentação dos séculos XVII e XVIII, são constantes as queixas dos habitantes da Capitania do Maranhão e Piauí acerca dos ataques e correrias que os índios praticavam”. (MELO, 2010, p. 15).

O espaço e a paisagem colonial do Estado do Grão-Pará e do Maranhão, do ponto de vista do conhecimento do poder, escamoteava inúmeros outros espaços, absorvendo ou diluindo, em seus discursos, os espaços vividos, a vivência clandestina e o olhar das paisagens marcadas não somente por indígenas que se contrapunham ao espaço ordenado pela administração lusitana, mas também demarcados pela emergente população mestiça46 que já atuava de forma significativa na produção e na reprodução deste espaço social colonial dos setecentos.

Seria o caso de já inquirirmos sobre uma etnogênesis de uma identidade “cabocla”? E os mocambos e festividades não seriam outras paisagens de resistências, sonoras e culturais dentro do espaço social da Capitania do Pará? Esses e outros questionamentos precisam, também, de uma investigação com mais profundidade para novas e futuras fases de pesquisa.

46 Inúmeros casamentos interraciais foram intensificados desde a vigência do diretório pombalino (1757), inicialmente entre índios e brancos, como política de povoamento; posteriormente, essas uniões se proliferam entre negros e índios, negros e brancos, surgindo ainda no século XVIII essa nova categoria sociopopulacional, chamada por grande parte da historiografia de “mestiços”. (VIANA, 2007).

1.2 NARRATIVAS, IMAGENS E REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS NOS MAPAS COLONIAIS DA “CONQUISTA’’

Para investigar os indígenas na cartografia colonial do Brasil e da Amazônia é necessário compreender, sobretudo, o momento em que a Europa investe esforços na expansão marítima, comercial e religiosa visando a obtenção de novos territórios. Esse mapeamento convencionou-se chamar de cartografia da “conquista”.

Segundo Guedes (2007), até a terceira década do século XVI, período auge do mercantilismo e da expansão marítima-comercial, a cartografia é praticamente produzida em Castela por Diogo Ribeiro para as viagens em que várias expedições buscavam cruzar o Mar

der Sur (Pacífico). Desse período, destaca-se a Carta Náutica de Gaspar Viegas que passa a

ser uma das maiores referências para a história do Brasil. Nela, a costa estende-se do Equador até 35º s; ao Norte desenha as baias de São Marcos e São José (separadas pela ilha de São Luiz) já com a forma de dentes e raízes que se tornaria clássica, bem mais próxima da realidade que o traçado pelo cartográfico Diogo Ribeiro nos planisférios e cartas desenhadas na Espanha. (GUEDES, 2007, p. 20).

Entre 1534 e c.1590 foram muitos mapas da lavra de importantes cartógrafos lusos, entre os quais o Brasil aparece, com destaque para Jorge Reinel, Antônio Pereira, Lopo Homem, Diogo Homem, Sebastião Lopes, Bartolomeu Velho, Lásaro Luis, Fernão Vaz Dourado, Domingos Teixeira, dentre outros.

A Carta Atlântica de Sebastião Lopes é um clássico da cartografia quinhentista já reproduzida em diversos trabalhos, a citar Max Justo Guedes (2007), Antônio Gilberto da Costa (2007a; 2007b) e Yuri Tavares Rocha (2010), que fizeram uma investigação minuciosa de muitos dos mapas produzidos pelos cartógrafos acima. O primeiro faz uma análise da cartografia colonial, mais do ponto de vista do processo histórico de demarcação e da “conquista” do território da América portuguesa. O segundo é considerado uma obra prima, intitulada Roteiro Prático de Cartografia: da América Portuguesa ao Brasil Império, onde foram organizados uma série de artigos redigidos por diversos autores que trataram sobre a cartografia histórica a partir de vários eixos, quais sejam: a cartografia do saber e do poder, a cartografia dos engenheiros militares, técnicas e elementos da cartografia. Já o terceiro e último trabalho é o texto grandioso, extenso e denso do próprio organizador Antônio Gilberto da Costa, chamado Do “Roteiro de todos os sinais da Costa” até a “Carta geral”: um

O pesquisador Yuri Tavares realizou uma análise bastante rica acerca de boa parte dos mapas produzidos pelos cartógrafos mencionados, porém focando nas representações da fauna, da vegetação e do pau-brasil. Contudo, nenhum deles problematiza sobre as representações indígenas ou africanas, mesmo porque, apesar da indubitável importância desses trabalhos para a cartografia histórica, os objetivos de estudos eram outros.