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3. De limite fechado a limite aberto

3.3 Mapa de negligências

“(…) o mais fácil será ir desenhando os espaços públicos, sem entender continuidades ou descontinuidades, como se estes fossem automaticamente, geradores de novas sociabilidades, sempre com receio de alguma conotação com a chamada «cidade histórica», considerada modelo irreversivelmente perdido. Este processo intermédio, a que se tem chamado «desenho urbano», vai permitindo aos arquitectos/urbanistas darem o «gosto ao dedo», sem grandes dramas que os obriguem a reflectir mais profundamente ou a ponderar as suas soluções perante os cidadãos” (Costa, 2013, p.15).

As cercas conventuais foram uma presença constante na paisagem rural e urbana. Porém, após a extinção das ordens religiosas no ano de 1834, estes lugares outrora recintados, ficaram desvinculados do seu anterior propósito, sofrendo transformações ao longo dos tempos.

Para a compreensão do futuro que se lhes seguiu, é necessário encarar os primeiros usos atribuídos a estas reservas, inserindo o referido processo “no contexto político, social e cultural de meados do séc. XIX, quando apenas se começava a desenhar uma consciência patrimonial, e quando o critério para a reutilização destes (…) era o do puro e simples aproveitamento desta “oferta” de espaços para satisfazer algumas das necessidades da “nova cidade” (Marado, 2006, p.39).

Todavia, este processo acarretou diversas consequências para o património herdado das ordens religiosas, incorrendo num considerável número de demolições e mutações que comprometeram a permanência destes espaços (não só no território, como também na memória colectiva das gentes) em nome do suposto desenvolvimento e progresso da cidade, descurando na maioria dos casos, um modus operandi que levasse a cabo uma abordagem mais consciente e que por sua vez promovesse a continuidade deste legado.

Perante a análise anterior, relativa à evolução cronológica das apropriações e ocupações na Cerca do Convento de N.ª Sr.ª da Conceição, constata-se que também este antigo recinto conventual fora alvo de diversas transformações. Desprovido de qualquer critério ou princípio de ocupação, este lugar assistiu a um crescimento desordenado por via de diversas construções que, de modo aleatório, se somaram periodicamente, sobretudo a partir a partir da segunda metade do séc. XX.

Com a abertura da variante, o que restava da volumetria do Convento de N.ª Sr.ª da Conceição desapareceu, restando apenas alguns testemunhos muito pontuais, através dos quais ainda é possível manter a memória da existência do Convento.

Mesmo possuindo transformações descaracterizadoras da sua imagem original, restaram do antigo convento, dois edifícios que têm vindo a sofrer alterações, sendo tomados como correntes, o que incorreu numa total desconsideração destes. Num dos dois edifícios é quase impercetível o sentido de pertença ao antigo convento, pelas diversas transformações que já sofrera. A sua adaptação a fins habitacionais resultou num edifício desfigurado, de aparência banal. De elementos datados, ficou somente preservada parte de uma escada exterior, devido à abertura da variante. Já o edifício que lhe é adjacente, possui ainda traços e fragmentos que permitem reconhecer com mais facilidade a sua pertença ao convento, como são os casos dos cunhais de pedra ainda aparentes e o vestígio de parte de um arco em ogiva, presente na empena do edifício.

Além de ter posto fim à estrutura arruinada do edifício que permitia ainda a compreensão do conjunto, a variante dividiu igualmente a Cerca em duas metades, relegando a parte de baixo para um plano secundário, ocasionando o seu esquecimento. Com esta parte dissimulada, o entendimento geral deste conjunto fica comprometido, visto que o antigo traçado da Cerca aparenta ter o seu término na parte de cima, adjacente à variante, resultando numa noção errada no que se refere à sua interpretação.

Já depois da execução da variante que deu inicio à criação da ruptura e descontinuidade deste organismo monástico, existiram outras tantas ao longo dos tempos que foram ocupando e descaracterizando ainda mais este lugar.

Construções precárias

Iniciadas nos finais do séc. XIX, as primeiras ocupações feitas no interior da Cerca foram constituídas por um pequeno casario que se foi colando a uma das ermidas pré-existentes, crescendo sucessivamente em adições fragmentárias. Gerida por privados desde o início da sua ocupação, a parte da Cerca correspondente à localização destas dependências habitacionais foi passando de geração em geração até aos dias de hoje.

Contudo, o quadro triste desta porção de território, de que é exemplo o presente estado deplorável destas dependências, evidencia não só um notório desconhecimento, com também um total descrédito pela essência deste lugar e respectiva manutenção, bem como pelos seus poucos residentes, que à data deste escrito se resumem a dois casais de inquilinos.

Além dos problemas enunciados anteriormente, relativos ao crescimento fragmentário e aleatório desta porção, as condições destas habitações são mínimas, apresentando maioritariamente problemas de qualidade espacial e deficiências construtivas, causadas por

negligência ou falta de manutenção. A situação actual de algumas dependências encontra-se em muito más condições, estando inclusive algumas delas a céu aberto e outras em estado devoluto total.

Ermidas

Como anteriormente referido, a existência de duas ermidas no interior da Cerca leva a intuir que a edificação de ambas remonte ainda ao período de actividade do Convento de Nª Srª da Conceição, sendo por isso classificáveis como peças datadas, originárias da época do conjunto deste organismo conventual. Porém, a caótica ocupação das sucessivas construções anexadas e sobrepostas a estas não só resultaram na dissimulação e/ou secundarização das suas volumetrias, como alguns aspectos e testemunhos da aparência original ficaram comprometidos, vindo a diluir- se lentamente no tempo.

Totalmente desfigurada, uma das duas ermidas já não conserva a mesma dignidade de outrora, uma vez que, tomada por uma construção banal pré-existente, foi tratada pelos seus utentes como uma arrecadação.

A segunda ermida corresponde a uma curiosa peça de volumetria octogonal, com uma cobertura a “oito águas”, coroada por um pequeno zimbório. Na primeira metade do séc. XX, a força da pontuação territorial imposta pela sua volumetria no interior da Cerca veio a perder-se, resultando na secundarização do seu todo, devido à adição de uma casa colada à face nascente da sua volumetria octogonal. Infelizmente, é patente uma vez mais o desconhecimento e a negligência que acabaram por tomar conta desta ermida. Ainda que esta preserve alguns frescos e grande parte da sua estrutura original, carece de obras de restauro e conservação.

Infantário da Santa Casa Misericórdia

A implantação de um infantário dentro de uma antiga cerca conventual sugere uma ideia bastante estimulante, uma que vez o referido território proporciona o usufruto de uma vasta área, pontuada por árvores, disponível para as mais diversas actividades dos utentes, que têm lugar num espaço livre, recintado por um elemento protector.

Em 1984, a Santa Casa da Misericórdia comprou um terço do território da Cerca, construindo um infantário entre o limite da variante e a propriedade privada correspondente ao aglomerado urbano. No entanto, ao observar o território em questão, verifica-se que a implantação do edifício foi, à semelhança das ocupações e adições referidas anteriormente, mais

um exemplo de uma atitude aleatória que não privilegiou a matéria do lugar, nomeadamente ao nível do diálogo com as suas pré-existências. A implantação do edifício demonstra uma indiferença à presença do recinto murado que a envolve, o que denuncia uma falta de compreensão e reflexão relativas ao antigo traçado total da Cerca. Esta estabelece uma barreira física entre as duas metades da Cerca, divididas aquando da abertura da variante, ao invés de preservar uma leitura contínua do todo. Para além disto, ao longo dos anos a gestão do infantário tem feito pequenas ampliações dentro do recinto exterior da sua propriedade, o que incorreu na adição de mais fragmentos dispersos, reforçando o seu contributo para a ausência de um sentido unitário e de conjunto entre as partes e o seu todo.

Perante os aspectos que têm sido apresentados ao longo do presente capítulo, constata- se que estes desencadearam uma considerável contribuição para a descaracterização e perda da identidade e do “espírito” deste lugar, apartando-o da memória colectiva de grande parte das gentes alenquerenses, o que em nada dignifica a dimensão sagrada de outrora.

Retomando o excerto inicial da autoria de Alexandre Alves Costa, os exemplos anteriores relativos à Cerca, constituem os principais casos denunciadores de inconsciência, ignorância e desvalorização relativas a um território que se considera especial. Acredita-se que este mereceria uma leitura significativamente mais profunda, que conseguisse desencriptar todas as mutações realizadas e assimiladas ao longo do tempo, culminando num gesto consciente, informado e crítico que propusesse corrigir todas as negligências, erros e situações estranhas, presentes neste lugar.

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