• Nenhum resultado encontrado

II. M UDAR DE LUGAR

1. Mapas e matrimónios

Foi no hotel Excelsior, em Nápoles, que em 1953 Roberto Rossellini esboçou o guião de Viaggio in Italia, pouco antes de começar a filmar. Enchendo cinco páginas de um livro de contas não com um resumo do enredo mas com uma lista dos principais lugares de rodagem, Rossellini procurou assim tranquilizar o director de produção, Marcello d’Amico, preocupado com a aparente ausência de rumo do filme.165 O realizador italiano reunira em Nápoles os actores da sua escolha e uma equipa técnica para fazer uma adaptação de Duo, um pequeno romance de Colette publicado em 1934, tendo descoberto no local que os direitos do livro já não se encontravam disponíveis. Ainda assim, Rossellini deu início às filmagens, que começaram de imediato com os longos planos estatuários do Museu Arqueológico Nacional, para grande perplexidade dos actores. Emparelhada com a sua mulher, Ingrid Bergman, estava outra estrela de Hollywood, George Sanders, que em 1941 havia já contracenado com a actriz no filme Rage in Heaven. Em Viaggio in Italia, Bergman e Sanders dão corpo e voz a Katherine e Alex Joyce.166

Ninguém sabia que espécie de filme estava para nascer do aclamado realizador de Roma, città aperta, facto que do início ao fim exasperou particularmente George Sanders. Com efeito, quer os escritos autobiográficos de

165 As cinco páginas desse proto guião estão reproduzidas em Hommage à Roberto Rossellini: Voyage en Italie, Paris: ed. de L’Avant-Scène Cinéma, nº 361, Juin 1987, pp. 14-15. Veja-se ainda o esboço do guião do filme que Tag Gallagher fornece, com tradução em inglês, em The

Adventures of Roberto Rossellini: His Life and Films, New York: Da Capo, 1998, pp. 398-9.

166

A versão de Viaggio in Italia visionada está incluída na recente edição da Criterion Collection, 3 Films by Roberto Rossellini Starring Ingrid Bergman, de 2013.

Sanders quer os de Ingrid Bergman evidenciam quão duros teriam sido para o actor os três meses de rodagem de Viaggio in Italia. Aliciado por Rossellini a vir para Nápoles desempenhar o papel de marido atraiçoado na adaptação de Duo, Sanders deu por si no meio de uma cidade desconhecida, ignorando as intenções do realizador que requisitara os seus serviços. Rossellini, conhecido por não gostar de actores profissionais, precisava no entanto daquela estrela internacional para garantir o financiamento do filme.167

Ao discutir na mesma entrevista o papel da improvisação em Viaggio in

Italia, Rossellini conta que, durante as filmagens, de noite não se sabia o que seria feito na manhã seguinte.168 O realizador esperava que, com os actores certos, e uma vez no local, tudo se resolveria; o ambiente e os actores obrigá-lo-iam a seguir uma certa estrada, esta seria quase traçada pelas próprias personagens. É justo dizer que Rossellini esperava que o argumento do filme surgisse à medida que este fosse sendo feito. Para um realizador que valorizava tanto a improvisação, a escolha de dois actores habituados à linearidade narrativa e dramática dos guiões de Hollywood é tão significativa como a escolha de Nápoles como lugar do filme. Colocar George Sanders e Ingrid Bergman no meio da metrópole partenopeia e esperar com eles que daí nascesse um filme foi a melhor ausência de estratégia de que Rossellini se poderia ter servido para obter de ambos o desempenho que

167 Ficaram famosas as palavras com que, numa entrevista de 1965 a Adriano Aprà e Maurizio Ponzi, Rossellini se referiu às crises de Sanders em Viaggio in Italia: “George Sanders estava sempre a chorar durante o filme. Lamentava-se de um modo terrível e eu dizia-lhe: «Mas por que te desesperas, o máximo que pode acontecer é teres feito outro filme mau, não é que possa acontecer mais do que isso. Portanto, não me parece que seja caso para chorar ou desesperar- se. Todos nós já fizemos bons e maus filmes, e faremos um outro mau. Não há que arrancar os cabelos, não há que morrer por isso».” Roberto Rossellini, Il mio metodo: scritti e interviste (a cura di Adriano Aprà), Venezia: Marsilio, 2010, p. 344.

pretendia de um casal inglês de meia-idade, numa terra estrangeira e no meio de uma crise matrimonial.169

Apesar de o realizador não poder levar a cabo o projecto que concebera inicialmente, ele sabia que poderia encontrar o seu filme em Nápoles. Ao contrário de George Sanders, Rossellini não começara a arrancar os cabelos devido à impossibilidade de adaptar Duo; pelo contrário, o falhanço do projecto teria mesmo constituído uma daquelas contingências que o realizador não deixava de utilizar em proveito da sua arte. Aliás, ter-lhe-ia concedido ainda mais liberdade para fazer o seu filme. Numa entrevista de 1974 a Robin Wood, Ingrid Bergman declarou que uma das intenções de Rossellini em Viaggio in Italia era mostrar Nápoles e Pompeia: “Ele estava só à procura de uma história onde pudesse meter Pompeia, os museus, Nápoles e tudo o que Nápoles representa, e que sempre o fascinara”.170 Na autobiografia, Bergman mostra ainda que, apesar das dúvidas que ao início sentiu em relação a Viaggio in Italia, nunca perdeu a confiança no marido, cuja arte tanto admirava. A actriz sabia que Rossellini só precisava de estar em Nápoles, lugar que tanto o fascinava, para criar uma história e fazer um filme: “O Roberto é o Roberto, pode acontecer que ele faça outro magnífico Roma,

città aperta’. Afinal, vamos para Nápoles e ele sentir-se-á inspirado lá.”171

É significativa, por razões que interessa aprofundar, a referência de Ingrid Bergman ao filme que estabelecera Rossellini como o pai do cinema neorrealista.

169 Observa Tag Gallagher que Rossellini colidia teimosamente com os hábitos dos seus actores tal como Nápoles irá forçar continuamente a resistência dos Joyce (The Adventures of Roberto

Rossellini, p. 407). Para uma leitura semelhante à de Gallagher, veja-se Laura Mulvey, “Vesuvian Topographies”, in David Forgacs, Sarah Lutton and Geoffrey Nowell-Smith (ed.),

Rossellini: Magician of the Real, London: British Film Institute, 2000, p. 100.

170 Robin Wood, ‘Ingrid Bergman on Roberto Rossellini’, in Film Comment, 10, July-August 1974, p. 14 (apud Laura Mulvey, op. cit., p. 101).

Na verdade, a esperança de que ele fizesse outro Roma, città aperta não só nunca abandonou a actriz ao longo dos sete anos de casamento e colaboração artística com o realizador como, de certa forma, foi mesmo responsável pelo encontro de ambos. A autobiografia de Bergman começa precisamente com o relato desse encontro primordial, numa sala de um cinema em Hollywood. A actriz acabara de ver Roma, città aperta, e a impressão que o filme lhe deixara seria indelével:

O realismo e a simplicidade do filme eram chocantes. Ninguém parecia um actor, ninguém falava como um actor. Havia escuridão e sombras, e às vezes não se conseguia ouvir, e às vezes nem sequer se conseguia ver. Mas é assim na vida, nem sempre conseguimos ver e ouvir, mas sabemos que está a acontecer alguma coisa para além da nossa compreensão.172

Meses mais tarde, a actriz viu num cinema de Nova Iorque um outro filme de Rossellini, Paisà: “Mas então ele tinha feito outro grande filme e ninguém ouvira falar dele!” Nasceu em Ingrid Bergman a ideia de escrever uma carta ao realizador expondo-lhe a sua vontade de fazer um filme como aqueles que vira, em parte porque os papéis que tinha vindo a representar em Hollywood já não a satisfaziam, em parte esperando que a presença de uma grande estrela de cinema trouxesse àqueles filmes a fama mundial que mereciam. Bergman conta que ao dar conhecimento da ideia à sua amiga Irene Selznick, mulher do produtor de Hollywood David Selznick, esta a alertara para o facto de ela não poder escrever a Roberto Rossellini dizendo-lhe que queria ir a Itália fazer um filme com ele, que tal não seria bem interpretado: “It will sound very peculiar.”173 A carta de Ingrid Bergman a Roberto Rossellini era, com efeito, “peculiar”:

172 Ingrid Bergman, My Story, p. vii. 173 Idem, p. x.

Caro Sr. Rossellini,

Vi os seus filmes Roma, città aperta e Paisà, e gostei muito deles. Se precisar de uma actriz sueca que fala muito bem inglês, que não esqueceu o alemão, que mal se faz compreender em francês e que em italiano só sabe dizer “ti amo”, estou pronta a ir para Itália fazer um filme consigo.

Ingrid Bergman.174

Na autobiografia, a actriz declara que tinha a intenção de escrever uma carta não demasiado apaixonada ou impaciente, mas com algum sentido de humor. Acrescenta ainda que o “ti amo”, indiscutivelmente o elemento mais peculiar da missiva, foi pensado como uma referência ao filme de 1948 Arch of

Triumph, baseado na obra de Erich Maria Remarque, em que Bergman desempenhara o papel de uma italiana que só falava inglês até ao instante em que, no leito de morte, sussurrou aquelas palavras à personagem de Charles Boyer.175 Anos mais tarde, porém, Ingrid Bergman admitiu que talvez a carta fosse afinal uma declaração de amor subconsciente a Rossellini, e que talvez ela se tivesse apaixonado pelo realizador italiano imediatamente depois de ter visto Roma, città

aperta. Não será vão lembrar que, naquele momento, de Roberto Rossellini Ingrid Bergman só conhecia os dois filmes mencionados; não sabia se era novo ou velho, se era ou não casado. Rossellini teria representado para a actriz, conforme relata, a possibilidade de evasão de duas situações de descontentamento: o casamento com Petter Lindstrom e a carreira em Hollywood.176

Rossellini não tinha como perceber a alusão de Ingrid Bergman à sua fala em Arch of Triumph pela razão de que também ele não a conhecia; o nome da

174 Ingrid Bergman, My Story, p. xi. 175 Idem, p. x.

maior estrela de Hollywood do seu tempo não lhe dizia nada. Só ao fim de algumas indicações de Liana Ferri, tradutora e colaboradora frequente do realizador, é que lhe veio à memória a actriz loira que ele vira uma vez num filme, no cinema de uma pequena cidade do norte de Itália, durante um bombardeamento, pouco antes do final da guerra. O filme era a versão sueca de

Intermezzo, e Rossellini vira-o três vezes, não porque tivesse gostado particularmente da rapariga loira mas porque o bombardeamento tinha sido longo.177 Seguindo o conselho de Liana Ferri, Rossellini enviou então um telegrama a Ingrid Bergman onde lhe dizia ser absolutamente verdade que sempre sonhara fazer um filme com ela, que tudo faria para que tal se concretizasse e que em breve lhe escreveria uma longa carta onde lhe seria explicada a ideia do filme. E embora Rossellini não estivesse a dizer a verdade quando declarou à actriz que sonhara fazer um filme com ela, há um sentido segundo o qual a afirmação é verdadeira: como notou a própria Bergman ao rever com o realizador Roma, città

aperta, a sua presença tinha-se profeticamente feito anunciar através de alguns dos elementos ficcionais do filme: a oficial alemã chamava-se Ingrid, e o major da SS Bergmann.178

Perante estes factos, é apropriado dizer que o resto foi história: Roberto Rossellini enviou a Ingrid Bergman a longa carta em que lhe falava da ideia na base do primeiro filme que vieram a fazer juntos, Stromboli.179 Pouco tempo

177 Ingrid Bergman, My Story, p. xiii. 178 Idem, p. 253.

179 Rossellini tinha planeado fazer um filme localizado nas ilhas Eólias, a ser protagonizado por Anna Magnani, actriz principal de Roma, città aperta, com quem o realizador mantinha uma relação extraconjugal. O telegrama de Ingrid Bergman veio mudar os planos de Rossellini, acabando Anna Magnani por ser trocada pela actriz sueca. Com ou sem Rossellini,

depois, encontraram-se os dois em Paris para discutirem pessoalmente o projecto. Em Novembro de 1948, Rossellini enviou à actriz nova carta com uma espécie de sinopse da história, onde declarava ser seu costume seguir algumas ideias básicas e desenvolvê-las pouco a pouco durante o processo de trabalho.180 A 17 de Janeiro de 1949, cinco anos após o início das rodagens de Roma città aperta, Rossellini viajou para a Califórnia, onde ficou cerca de dois meses.E, enfim, a 20 de Março desse ano, praticamente dez anos depois de ter chegado à América, Ingrid Bergman, a maior estrela de Hollywood do momento, aterrou em Roma, onde era esperada por Rossellini e por uma multidão em êxtase.

Para Liana Ferri, o que estava em causa na recepção clamorosa de Bergman em Roma tinha a ver com o facto de o realizador italiano ter conseguido “roubar” a Hollywood a sua mais amada actriz e trazê-la para Itália. Isto porque, poucos anos antes, quando os americanos tinham ocupado Roma, não havia na cidade mulher alguma que não tivesse dormido com um soldado americano. Aconteceu então, observa Ferri, que o realizador italiano conseguira conquistar e capturar “la Bergman”; ou seja, “aquela grande actriz estava em Itália e estava apaixonada pelo

nosso Roberto Rossellini! ‘Bravo, Roberto, bravo!’ Ela deixara aquele seu frio marido nórdico e agora [em Itália] encontraria o verdadeiro significado da vida e do amor. ‘Bravo, Roberto, brava, Ingrid!’ Era uma compensação por tudo o que tínhamos passado, por toda a fome e humilhação.”181

no entanto, Magnani decidiu fazer o filme: este foi rodado numa ilha próxima de Stromboli, Vulcano, da qual recebe o título, sob a direcção de William Dieterle. Sobre este episódio da história do cinema italiano, veja-se o livro de Marcello Sorgi, Le amanti del Vulcano. Bergman,

Magnani, Rossellini: un triangolo di passioni nell’Italia del dopoguerra, Milano: Rizzoli, 2010. 180 Ingrid Bergman, My Story, p. 208.

No telegrama que Ingrid Bergman enviou a Roberto Rossellini a 11 de Março de 1949 – dia em que apanhou o comboio para Nova Iorque, de onde voaria para Roma, pondo assim em prática a decisão impulsiva de deixar para trás a carreira em Hollywood, o marido e a filha –, liam-se as palavras:

CAN’T HEAR, CAN’T UNDERSTAND, CAN’T SPEAK.182

No cinema, como na vida, por vezes não se consegue ver, por vezes não se consegue ouvir nem falar, e por vezes não se consegue compreender, dissera a actriz a respeito de Roma, città aperta. Com efeito, não ouvir, não compreender e não falar são atitudes problematizadas nos três primeiros filmes de Roberto Rossellini protagonizados por Ingrid Bergman, entre 1949 e 1953: Stromboli,

Europa’51 e Viaggio in Italia. É possível defender, aliás, que não ouvir, não compreender e não falar são as condições necessárias de que dependem os três filmes. Especialmente em Viaggio in Italia, como se verá, Rossellini mostra ser exímio na exploração da incompreensão, da surdez e da mudez que podem existir na vida de um casal.

Stromboli, Europa’51 e Viaggio in Italia são habitualmente referidos como uma trilogia: Gianni Rondolino fala de uma “trilogia della solitudine” pelo facto de terem como núcleo temático a solidão, o isolamento, a incompreensão e a morte; por sua vez, James Quandt apelidou-os de “voyage trilogy”, na medida em que os seus títulos inscrevem um lugar: uma ilha, um continente e um país.183

182 Ingrid Bergman, My Story, p. 220.

183 James Quandt, “Surprised by Death” (ensaio visual incluído na edição de Viaggio in Italia da Criterion Collection, 2013).

São, em todo o caso, filmes protagonizados por uma mulher estrangeira numa terra que percepciona como hostil, uma mulher desenraizada e, ademais, casada: Karen é uma refugiada letã que se casa com um pescador siciliano da remota ilha de Stromboli; Irene é uma americana da alta burguesia, casada com um diplomata e estabelecida em Roma; Katherine é uma inglesa, também burguesa, que viaja com o marido para Nápoles. Nos três filmes, mas especialmente em Stromboli, Ingrid Bergman é sempre filmada a caminhar sem rumo, atitude que representa a sua relação problemática com o lugar: pense-se em Karen a tentar encontrar um caminho para fugir da ilha, encurralada entre as casas e os muros como um rato de laboratório num labirinto.184

É consensual entre a crítica rosselliniana, de resto, que a partir de Stromboli o cinema de Rossellini seguiu um novo curso; um curso, como nota Gianni Rondolino, “dominado pela personagem feminina, pelos seus problemas existenciais e pelas suas dificuldades em se inserir num ambiente diverso.”185 Ora um dos problemas existenciais que enfrentam as personagens femininas dos filmes bergmanianos de Rossellini é a sua alienação do ambiente social e geográfico pelo qual se vêem circundadas, mas também do homem com quem estão casadas. Pensando nesses filmes como uma trilogia não só da solidão e da viagem mas também do casamento (o casamento enquanto problema existencial), é inegável que Viaggio in Italia ocupa entre os três um lugar de excepção. Como se,

184 É curioso, em Stromboli, o que um dos conselheiros do campo de refugiados diz da personagem de Ingrid Bergman, Karen, antes da sua entrada na audição para obter permissão de transferência para a Argentina: “Questa come mentitrice le batte tutte” (“esta como mentirosa bate todas”) – como se Rossellini estivesse a declarar, naquele seu primeiro filme com Bergman, que como “attrice” ela batia todas.

ao decidir observar ainda mais de perto a intimidade de um casal – e num período em que o seu próprio casamento estava em crise – Rossellini mostrasse ter atingido um nível superior de sensibilidade acerca de questões relacionadas com o casamento e com a vida familiar; nomeadamente, a tensão entre o amor romântico e o amor conjugal, e a relação que pode se pode estabelecer entre estar casado e sentir-se um estrangeiro numa terra inóspita.

Esclareça-se, então, que Viaggio in Italia é, em mais do que um sentido, uma história familiar. Com efeito, Rossellini parece deixar tudo em família: a actriz principal é a sua mulher, a música é da autoria do seu irmão, Renzo. A esse respeito, Tag Gallagher observa interessantemente que o filme evoca muitas vezes o estilo de um filme caseiro porque é um filme caseiro, isto é, “a gravação do que aconteceu a Ingrid Bergman enquanto o marido filmava as suas tentativas de fazer amor com George Sanders, e de como eles foram aqui e ali à procura de alguma coisa para ver.”186 Esse “aqui e ali” é a terceira personagem do filme, ou, se se quiser, o terceiro elemento de um ménage à trois constituído pelos dois elementos do casal e por Nápoles. A este respeito, Alain Bergala defende que, contrariamente ao que sucede na cena doméstica do cinema clássico, em Viaggio in Italia o terceiro elemento que se intromete na vida do casal não tem qualquer relação com este nem se trata de um rival. Este terceiro elemento, ou seja, Nápoles, “isola o homem e a mulher na sua solidão moral face ao mundo.”187

Estas leituras não se afastam, aliás, da opinião que Rossellini tinha do seu filme: numa entrevista aos “Cahiers du cinéma” publicada em Abril de 1959, o

186 Tag Gallagher, The Adventures of Roberto Rossellini, p. 413.

187 Roberto Rossellini, Le cinéma révélé (textes réunis et préfacés par Alain Bergala) Paris: Étoile, 2008, pp. 28 e 29.

realizador declarou que Viaggio in Italia não era tanto sobre a descoberta de uma terra quanto sobre a influência dramática de uma terra em duas personagens.188 A mesma ideia voltava a surgir meses mais tarde quando, entrevistado por Jean Douchet para a Arts, Rossellini dizia que Viaggio in Italia assentava em algo muito subtil: “as modificações por que passava a relação de um casal sob a influência de uma terceira pessoa: o mundo exterior que o rodeava.”189

Viaggio in Italia é, por outro lado, uma história familiar que pode e deve ser lida à luz de outra história familiar: a Scienza nuova, a narrativa que procura recuperar as modificações da mente humana e descreve a passagem dos matrimónios ao estado das famílias, das sepulturas às cidades. Ver o filme de Rossellini tendo em mente a Scienza nuova pode conceder ao espectador uma lente inesperadamente reveladora, fornecendo novas luzes para o apreciar e compreender. Na verdade, nas excursões ao território napolitano, os Joyce vão encontrar os princípios ou costumes fundacionais que Vico estabeleceu na Scienza

nuova: as religiões, os matrimónios e as sepulturas. Embora correspondam a aspectos distintos do impacto que a cidade tem no casal (especialmente em Katherine) e possam ser identificados em momentos específicos do filme, os três princípios são indissociáveis da cidade que Rossellini mostra ao espectador. Tal como o leitor da obra de Vico é desafiado a encontrar em si a memória imaginada dos primeiros tempos poéticos, também ao longo de Viaggio in Italia os Joyce vão descobrindo em si, através da viagem a Nápoles, os princípios fundacionais das

Documentos relacionados