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MARCANDO OS CAMINHOS POR ONDE JÁ PASSEI 2.8 A cidade

No documento A galera do xarpi carioca (páginas 96-100)

Primeiro uma viagem de ônibus. O letreiro mostra “Nova Campina – Central”. Se for dia de trânsito, serão mais de duas horas de um andar vagaroso e cansativo. Ótimo para iniciar uma conversa com a pessoa sentada ao seu lado. Pela janela, inúmeras imagens se sucedem em profusão. Cada loja tem letreiros na marquise. Cada casa tem placas indicando o endereço. Cada ponte tem setas dizendo de onde se vem ou para onde se vai. E ainda há galhardetes do vereador que não se elegeu nas janelas dos barracos. Chega a Avenida Brasil. Não há espaços de fuga na paisagem. É tudo muito intenso, próximo. Os carros se multiplicam. Todos os muros têm marcas. São publicidades de rua (“Ensino Médio em três meses”); são inscrições religiosas (“Só Jesus expulsa os demônios”); são outdoors, banners, cartazes com as últimas novidades do mercado; são grafites, com suas letras e figuras tridimensionais; são pichações, no rasteiro (“Foi mau Runk”), no alto (“Aqui não tem dublê”), convidativas (“Abre a janela pra ver melhor”), provocativas (“Nós é o Luxo, o resto é o Lixo), reflexivas (“Na vida a gente vale o que tem”). O ônibus pára na Rodoviária. Pode-se ler as mensagens proféticas, político-cristãs de Gentileza. Mais um pouco, a viagem termina.

A Central do Brasil é um formigueiro de gente. As conversas se transformam em burburinhos quando ouvidas ao longe. “O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar” (CANEVACCI, 2004:130). Até os becos

têm vida. Até os arranha-céus, calçadas, obeliscos e monumentos se insinuam para você. Ao seu redor, milhares de estranhos caminham num ritmo frenético (“serão pessoas boas ou más?”, “elas me olham ou sou apenas uma trave para seus olhos?”). Motoristas explodindo em palavrões. Buzinas de carro. “Táxiiii!!!”. Pregadores nas praças dizem que Cristo está voltando. Camelôs aos berros: “Água! Água! Água! Quem vai querer?”. Lojas com vitrines sedutoras, coloridas; algumas com televisões, aparelhos de som, vídeos ligados, além das vendedoras sorridentes nas portas. Papeizinhos que prometem dinheiro em 15 minutos. Velhinhos nas praças jogando carteado. Pessoas paradas no sinal, trocando olhares ou tímidas conversas: “Viu a novela das oito?”. Algumas em pé na banca de jornal: “O Flamengo deu mole ontem”.

As metrópoles são assim. Polifônicas. Imagéticas. Exímios espaços de comunicação. “A cidade em geral e a comunicação urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas que se cruzam,

relacionam-se, sobrepõem-se umas as outras, isolam-se ou se contrastam” (CANEVACCI,

2004:17). Inúmeros signos, sonoros ou visuais, disputam espaço e atenção do espectador. Existe até “comunicação dialógica entre um determinado edifício e a sensibilidade de um cidadão” (ibidem, 22). É impossível interpretar, decodificar tudo isso. A todo o momento o cidadão precisa estar apto a dar respostas, a elaborar questões neste cenário caótico e fragmentado. Agir e Reagir. “Não só a diversidade humana, mas toda sorte de estímulos em torno, todo o espaço natural e construído nas cidades tende a constituir um ambiente de descontinuidades que nos interpela e que exige constantemente um gesto de nossa parte. É a intensidade urbana” (CAIAFA, 2007:105).

Num universo cujo conteúdo sai pelas bordas, há certas pessoas que preferem retrair-se em casa, na família, na frente do computador ou da televisão, num círculo reduzido de amigos, na própria subjetividade. Elas dão às costas para o mundo, para os fatos que o movimentam. Nada do que acontece no coletivo lhes interessa. São talvez os indivíduos blasé, de que fala Simmel, esgotados e saturados, em cujo semblante é visível um ar de indiferença e desprezo. A intensificação da vida “força os nervos a respostas tão violentas, irrompem de modo tão brutal de lá pra cá, que extraem dos nervos sua última reserva de forças e, como eles permanecem no mesmo meio, não têm tempo de acumular uma nova” (SIMMEL, 581). Estes filhos da cidade grande são incapazes “de reagir aos

novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada” (idem).

Mas nem todos os filhos são iguais. Uns se sentem atraídos por estes nervos pulsantes, com a cidade funcionando como imã (CAIAFA, 2007:105). A coisificação

promovida pelas sociedades modernas não é pretexto para se tornarem frios, passivos, incólumes ao exterior. Pelo contrário, motiva-os ao ponto de interferirem na própria urbe, criando novos estímulos que irão competir com tantos outros que nela já existem – e contribuindo desta forma para torná-la mais fervorosa. Dota-os de uma rebeldia, de um desejo de comunicar usando meios nada convencionais. “Os grandes centros urbanos fomentam vivências alternativas – formas de habitar, de interagir, de relacionar-se, de resistir, de constituir-se – que criam inúmeras tensões” (DUARTE, 2005, 8).

Os pichadores agem “sobre as estruturas arquitetônicas aparentemente imóveis, animando-as e mudando-lhes os signos e o valor no tempo e no espaço” (CANEVACCI, 2004:22). Entre eles e a cidade existe uma relação dialógica, decerto nada harmônica. Só que a esta altura da história da metrópole carioca, eles têm os pés fincados como raízes na terra. E assim, um faz parte do outro, um alimenta ao outro, um resiste ao outro:

O espaço visual da cidade se altera, ganha uma outra dimensão pela ação de grupos ou indivíduos [pichadores e grafiteiros] que por ali passam e imprimem sua marca. O muro vira mural, e o túnel deixa de ser um simples corredor de acesso a outros núcleos da cidade para ser um veículo da comunicação de massas, suporte para manifestações de todo e qualquer cidadão. (RAMOS, 2008:43).

Os pichadores se gabam de conhecerem como poucos o Rio de Janeiro e as cidades adjacentes. Uma “malícia” que lhes permite identificar zonas de perigo, sobretudo as tomadas por milicianos e traficantes de drogas; traçar táticas para avançar sobre determinadas áreas, driblando dessa forma a ronda policial ou o vigia atento; e até mesmo imaginar rotas de fuga para ocasiões de apuro. O traçado da cidade, com suas ruas, avenidas, becos, galeria, forma “a mais moderna configuração de labirinto que [...] só os iniciados podem percorrer e chegar ao centro, que é também o centro do mundo, o símbolo da conquista e da posse” (RAMOS, 2008:36).

A percepção do pichador é muito mais aguçada, ele tem uma visão muito mais ampla do que geralmente se vê, começa por decifrar pichações de outros, depois pela capacidade de olhar um espaço e reparar detalhes despercebidos pelos demais, acho que nenhuma pessoa é tão capacitada para cuidar da segurança de um prédio que um pichador, além é claro de conhecer a geografia de sua cidade como poucos. (“Ned”)

Eles atuam à noite, em horas nem tão avançadas como se pensa, aproveitando o abandono das principais vias urbanas. Esse despovoamento das cidades – logo elas que têm a circulação como aspecto crucial - é uma tendência dos dias presentes (CAIAFA, 2007:20). Uma cidade desurbanizada seria mais interessante para o pichador? Nem tanto. Afinal, que olhos veriam suas obras? A quem incomodariam? Com quem falariam? Somente entre si? Não é o bastante. A fama, a transgressão, a adrenalina estão em jogo:

A primeira vítima da cidade privatizada é (...) a alteridade. É a experiência fortemente urbana do contágio que tende a ser eliminada nestas anticidades. A ocupação coletiva gera heterogeneidade, de alguma forma misturando os habitantes e em diferentes graus dessegregando os meios fechados e familiares. (CAIAFA, 2007:19, 23)

Ilustração 16 – PAISAGEM urbana (Centro de Duque de Caxias, Zona Metropolitana do Rio). “Os fluxos visuais das grandes cidades são caracterizadas por extrema confusão, uma extrema ambivalência emotiva. [...] Saber olhar já é um momento fundamental de interpretação. A

hermenêutica urbana é visual. O olhar oblíquo” (CANEVACCI, 2004:252-3)

Capítulo 3

No documento A galera do xarpi carioca (páginas 96-100)