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A literatura afro-brasileira abre espaço para uma discussão mais profunda sobre a produção literária brasileira de escritores negros. O objetivo é dar voz e visibilidade a autores como Conceição Evaristo, mas esta não é uma tarefa fácil. Mesmo com a criação da Lei Federal 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de literatura e cultura afro-brasileira nas escolas de educação básica, o mercado editorial ainda permanece resistente a uma abertura para este segmento literário.

A definição sobre o reconhecimento de uma literatura afro-brasileira retoma a discussão sobre o modelo de sociedade brasileira, construída sob os moldes da sociedade patriarcal e que ainda hoje discrimina esta produção literária e dificulta a implantação de políticas públicas efetivas para que autores negros brasileiros tenham as mesmas oportunidades que autores conhecidos nacionalmente. A título de ilustração, no caso de uma escritora negra a história demonstra as dificuldades para o reconhecimento encontrando barreiras muitas vezes intransponíveis. Por conseguinte:

A história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho que pode ser comparado com aquele da genealogia nas sociedades patriarcais do passado: o primeiro, a sucessão cronológica de guerreiros heroicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres ‘normais’ (LEMAIRE, 1994, p. 58).

O que se pode constatar foi o surgimento de editoras dedicadas ideologicamente ao segmento de uma literatura feita por negros, como os Cadernos negros do grupo Quilombhoje. Foi necessário que os movimentos negros populares abrissem espaço para o surgimento destas editoras e que tornassem possível a publicação de obras escritas por afrodescendentes e que permitissem a produção e comercialização destas obras. É o caso de Conceição Evaristo, que encontrou na Editora Mazza a oportunidade de editar seu primeiro romance Ponciá Vicêncio, pois a administradora é também uma mulher negra e engajada no projeto ideológico que defende a literatura considerada de minorias num mercado editorial dominante.

A produção literária de Conceição Evaristo ganhou visibilidade no meio acadêmico, o que consequentemente lhe rendeu prêmios e reconhecimento dentro e fora do Brasil, sendo

uma das poucas escritoras negras brasileiras a ter obras traduzidas para outras línguas. O fato da produção literária da autora ter hoje muita relevância no meio acadêmico é devido ao fato de ela produzir uma literatura negra, cuja temática geralmente aborda questões de identidade, gênero e violência.

A violência contra a mulher é o objetivo desta pesquisa. É sob o ponto de vista de escritora de Conceição Evaristo, sob o olhar da mulher negra, que vive numa sociedade machista, com resquícios da ordem patriarcal que se buscou analisar as personagens femininas de Olhos d’água. Este estudo versa especificamente sob a questão da violência como mecanismos de dominação masculina, a condição feminina e a violência física e simbólica, a qual se refere Pierre Bourdieu (2017), contaminada por este modelo de família brasileira ainda com ressaibos da ordem patriarcal.

A composição da família colonial brasileira tem sua origem patriarcal em sua relação de submissão à autoridade do patriarca que não se limitava apenas a seu domínio privado, também se estendia na vida política nacional. Gilberto Freyre (2006) descreve a família patriarcal colonial brasileira como uma família chefiada por um patriarca, a figura masculina do pai e senhor, que detém poder sobre seus filhos, esposa, parentes, agregados e escravos. Para o autor, a família patriarcal tem um papel fundamental na construção da nossa história. De acordo com Gilberto Freyre (2006) a família colonial é uma unidade política, econômica e social baseada na economia da riqueza agrícola e no trabalho escravo.

Os reflexos da origem patriarcal das famílias brasileira estão presentes nas relações sociais e nas relações familiares. Absolutos senhores de tudo e de todos, “A força concentrou- se nas mãos dos senhores rurais. Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres.” (FREYRE, 2006, p. 38). Estas marcas estão presentes também na literatura. Em A permanência do círculo (1987) Roberto Reis retoma a discussão sobre o papel do negro e da mulher na hierarquia do romance:

O mais comum, na Literatura brasileira da segunda metade do século XIX, é que o tópico do negro escravo seja omitido. Acompanhando tal omissão, as questões do trabalho e da violência que presidem as relações de produção, ligadas a mão-de-obra africana, também são relegadas pelos textos literários da época. Ao contrário, os personagens brancos e senhoriais nunca trabalham com as mãos, visto ser o trabalho manual considerado indigno, e se já não são ricos por causa de heranças que recebem, tornam-se ricos pelos negócios bem sucedidos (REIS, 1987, p. 20).

Ainda com relação à hierarquia na ordem social, Roberto Reis (1987) afirma que é necessário para a sociedade patriarcal duas camadas sociais básicas, que resultam de uma relação de interdependência, o senhor e o escravo. Para que este sistema de interdependência

perdurasse a violência era fator determinante. É a violência configurada no passado escravocrata do Brasil que vai refletir na narrativa ficcional de Conceição Evaristo. Esta relação de dominação que se transfere para o círculo familiar, para os filhos e principalmente para a mulher. Para este autor, a escravidão, aspecto principal da economia brasileira no período colonial e imperial, acabou por contaminar a vida social.

Se encontrarmos o relacionamento homem-mulher focalizado na base do senhor- escravo, estaremos em condições, ademais de continuar insistindo no vínculo entre literatura e realidade histórica e social, de concluir que os elos entre senhor-escravo são transladados para a esfera sentimental e conjugal. Isto seria uma forma de escamotear esta relação hierárquica tão presente na sociedade brasileira do tempo (REIS, 1987, p. 28).

Acrescenta Reis (1987) que a família patriarcal se organizava em formas de círculos a partir do centro, que era ocupado pelo patriarca. A partir da figura do pai e senhor é que se definem os demais lugares no círculo, ou seja, uma ordem social hierarquizada. É nestas relações hierárquicas que o autor procura localizar o lugar da mulher na literatura. Para fazer isso, Reis utiliza dois conceitos delimitadores: o núcleo, lugar ocupado pela figura principal, senhor e patriarca e a nebulosa, espaço onde ficam as demais categorias étnicas e sociais, subjugadas por uma relação de dominação e submissão.

Neste quadro senhorial e patriarcal, trespassado pela hierarquia, caberia situar a mulher, o mais das vezes sujeita ao homem, visto ser esta sociedade, focalizada pela literatura, eminentemente masculina. A mulher, se quisermos nos circunscrever à casa-grande, não havendo outro estigma que a leve a ficar na nebulosa (isto é: se ela não for índia ou negra, por exemplo), fazendo parte da classe senhorial, estará sujeita a mesma hierarquia com relação ao homem. Está no núcleo, mas submete-se ao senhor (REIS, 1987, p. 32, grifos do autor).

Na literatura a relação de hierarquia e dominação que rege a sociedade patriarcal organizada em forma de círculos foi estendida para as relações do homem-mulher. Conforme salienta Reis: “A relação de núcleo e nebulosa é, fundamentalmente, calcada na dominação” (1987, p. 44), e tal situação pode ser observada nos contos de Olhos d´Água analisados neste trabalho.