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4. REPLICANDO “PINABAUSCH”: A INFORMAÇÃO, A IDÉIA E AS POSSIBILIDADES

4.3 MARCELO EVELIN 95 : BIOGRAFIA COMO ESCRITA AMBIDESTRA DO CORPO/AMBIENTE

A oportunidade de entrevistar Marcelo Evelin96 surgiu por ocasião da

entrega do prêmio APCA 2006 que recebeu. Vivendo a maior parte do tempo em Amsterdã (hoje, dedica boa parte do ano ao Núcleo do Dirceu, projeto que desenvolve na periferia de Teresina), veio a São Paulo receber o prêmio de melhor espetáculo de dança por Sertão. Sua rápida passagem pelo país inviabilizou a possibilidade de um encontro, mas permitiu que, mais tarde, acontecesse, com extrema riqueza de detalhes e informações, uma entrevista por e-mail.

Estabelecido na Europa há mais de 20 anos e tendo na Holanda embasado sua carreira (de mais de 30 trabalhos), Marcelo Evelin jamais deixou de estar em contato e se fazer presente no Brasil. Chegou a ensaiar na companhia de Pina Bausch no início dos anos 90. Dez anos antes, no Rio de Janeiro, teve seu primeiro contato com o trabalho da coreógrafa alemã. Ele nunca havia ouvido falar do Balé do Teatro de Wuppertal nem de Pina, mas a curiosidade de ver o trabalho de bailarinos de fora do Brasil o levou ao Theatro Municipal na primeira noite de apresentações da companhia germância na capital fluminense. Sua primeira reação ao que se apresentava foi um estranhamento profundo, a idéia que ele então tinha de dança parecia “traída” por aqueles bailarinos que “apesar de dançarem juntos e com movimentos de

95 Depoimento concedido em 05 de janeiro de 2008 à entrevistadora Paula Petreca.

96 Marcelo Evelin É bailarino, coreógrafo, diretor, pesquisador e professor de improvisação e

composição. Deixou o Brasil em 1986 para estudar dança e coreografia em Paris, na França, onde estudou com Philippe Decoufle, Josef Nadj e Karine Saporta. Dois anos depois, radicou-se em Amsterdam, na Holanda, onde foi aluno da Universidade de Nova Dança (SNDO) e integrou a Companhia de DançaTeatro The Meekers, de Arthur Rosenfeld. Foi estagiário da Companhia de Pina Bausch, em Wuppertal na Alemanha, antes de iniciar sua carreira como coreógrafo profissional subvencionado pelo governo holandês, criando a Companhia Demolition Inc. e assinando, desde então, mais de 25 espetáculos com roteiro, direção e coreografia de sua autoria. Em 2006, assumiu a direção do Teatro João Paulo II, em Teresina- Piauí, onde implantou e dirige o Centro e o Núcleo de Criação do Dirceu, uma plataforma voltada para a pesquisa e desenvolvimento das artes cênicas contemporâneas.

braços e pernas estendidos” não faziam nada parecido com qualquer referência tida por Marcelo como dança ou mesmo teatro:

“Sai desse primeiro dia mudo, sem entender nada, mas

entendendo que alguma coisa tinha passado comigo.

Dia seguinte, voltei para ver o outro programa com a sensação de quem vai a um lugar proibido, como uma criança que vê um filme que ainda não pode ver. (Eu tinha 18 anos e, nesse tempo, o Brasil tinha censura). Achando que sabia o que ia acontecer com a tal cia. Estrangeira, me deparei com Kontakthof, uma peça bastante longa, uma peça que não parecia com teatro, nem dança, nem coisa nenhuma, mas que me deixava incomodado, ou intrigado, na verdade me deixou num estado que nunca tinha estado antes, um abismo, uma vertigem, um buraco sem volta.

Na peça eu via os bailarinos do dia anterior agindo normalmente e pra mim era como se estivessem "traindo" a dança, porque não dançavam, nem usavam roupas de dança, nem seguiam a música. Eles caminhavam em linhas

retas, mostravam as unhas e os dentes, ficavam sentados por horas como que esperando por nada. Tudo mudava sem que se pudesse prever como e porque, e isso me deixou num estado de excitação absoluto, eu fui entrando na coisa, fiquei querendo mais e mais, e a peça era longa, eu já estava lá por mais de duas horas. Saí do teatro e fiz grande parte do caminho de volta pra Copacabana a pé, pra digerir, pensando no movimento dos braços dos bailarinos fazendo coisas simples, os braços e a relação deles com o quadril, o cotovelo, o torso, as pernas que pareciam mover como braços. Fiquei muito impressionado com aquelas imagens, passei semanas pensando naquilo, que não era dança e também não era teatro.” Marcelo Evelin, 2008

A perturbação que todos aqueles estranhamentos provocaram na percepção do bailarino deixou vestígios que, embora ele não conseguisse descrever, eram sintomatizados no seu entendimento (“Saí desse primeiro dia

mudo, sem entender nada, mas entendendo que alguma coisa tinha passado comigo”). A

experiência desta percepção habilitou-o a reconhecer dança em outras corporalidades, para além daquelas que havia sido habituado a ler. Assim,

amplificou a sua percepção da relação entre corpo que dança e ambiente de dança, passando a tratar outros códigos de pensamento como materialidade de dança. Tal processo não se completou repentinamente, pois teve seu curso ao longo do tempo, e foi associado a outras experiências de Marcelo. No entanto, quando relata analiticamente as transformações que o contato com os “memes- pina” lhe trouxe, é bastante perspicaz em contextualizar as circunstâncias em que os memes que o afetaram:

“No inicio dos 80, ela, de certa forma, abriu uma porta, apresentou possibilidades estéticas e de conteúdo. Acho que ela simplificou essa coisa de mostrar, se mostrar no palco. Tinha uma coisa antenada com o que se passava no mundo, e tinha muito rigor e elegância. (...) Ela já falava de multiculturalismo, de corpo como sujeito, permitindo tudo, alterando, quebrando padrões. E o mundo foi caminhando pra isso, e o Brasil também, claro.” Marcelo Evelin, 2008 As informações que dizem respeito ao indivíduo na obra, e a retratação do humano na cena foram as características que o impactaram com mais intensidade no primeiro momento. Todavia, depois de viver alguns meses em Wuppertal, o processo criativo de Pina o infectou de tal forma, que ele saiu da experiência daqueles meses “esgotado emocionalmente”, tamanha a demanda exigida de estímulos sensíveis para ativação da memória e da criação.

Talvez seja essa a ontologia de Pina Bausch: uma radicalização da utilização da autobiografa na dança, através da restauração reflexiva da experiência sensóriomotora promovendo deslocamentos contextuais relevando a natureza imanente do gesto que dança a memória investindo-a de movimento e transformação.

Esta atitude de re-significar os materiais internos em novos ambientes promovendo acordos, trocas e adaptações que permitem à experiência vivida entregar-se a um projeto evolutivo da memória se mostra bastante frutífera no

Fo to: A i, Ai , Ai (Marcelo E veli n) . Divu lg ação . 1995

trabalho de Marcelo. Em seus trabalhos o coreógrafo conjuga atos-lembranças particulares com a capacidade reflexiva da arte para fermentar as idéias a respeito de questões extremamente coletivas, o que torna seu fazer uma forma de arte que atrela sensibilidade e política de modo bastante coerente em seu mode de fazer dança.