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3. O TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS

3.2. Marco legal de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil

Com o objetivo de determinar os princípios, diretrizes gerais e específicas, e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas em consonância com as normas e instrumentos nacionais e internacionais em matéria de Direitos Humanos, foi aprovada, por meio do Decreto 5.948, de 26 de outubro de 2006, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas como política de Estado.

Têm-se como políticas de Estado os acordos de longo prazo adotados pelos governos, através de processos negociados pelas forças políticas interessadas (governamentais e não governamentais) para garantir que a implementação de determinadas linhas de ação estratégicas ultrapassem do período da administração de um governo. Compreende um processo decisório amplo, baseado em estudos, avaliações de impacto, debates, projeções de efeito, para formulação das medidas normativas destinadas à sua concretização, de onde se depreende seu caráter de perenidade (Sepúlveda S.: 2008, p.84).

Políticas de governo são resultado da implementação de agendas políticas dos administradores que se encontram no poder, geralmente refletindo o perfil ideológico que norteia suas gestões, operando mudanças a partir de atos do Executivo concernentes à edição de planos e programas que estabelecem metas, prazos, e estipulam resultados. Podem ser fruto da execução de uma política de estado ou podem antecipar-se à formulação desta, diante da necessidade de enfrentar uma determinada questão que demanda a atuação do poder público. Quando essa atuação se volta para o planejamento governamental com vistas à racionalização de meios e recursos postos à disposição do Estado, bem como do setor privado e suas atividades, para a realização de objetivos e ações socialmente relevantes e politicamente determinados (Bucci, 2002, p.41), temos políticas públicas, cuja execução pode perpassar diversos mandatos, não necessariamente experimentando mudanças a sabor de modificações no cenário político.

Proposta para determinar os postulados fundamentais de enfrentamento ao tráfico de pessoas, estabelecendo parâmetros e ações, tanto no aspecto da prevenção quanto de combate às práticas criminosas, pugnando por um prisma de atenção às vítimas, a Política Nacional de Enfrentamento buscou se pautar pela observância dos compromissos internacionalmente assumidos pelo Brasil enquanto signatário da Convenção e seu Protocolo Facultativo em uma perspectiva de proteção aos Direitos Humanos das vítimas.

Mesmo aprovada em 2006, ela adotou o conceito de tráfico baseado no Protocolo de Palermo, apesar de haver uma alteração legislativa posterior que acolhia a definição contida

no bojo do documento internacional de maneira apenas parcial, somente no que concerne à prostituição não mais de mulheres, mas de pessoas, e ignorava a autonomia e o consentimento ao situar este de forma explícita e textual como irrelevante (§7º, art. 2º) e pautar os vícios em sua manifestação – a saber, dolo, fraude e coação - como causa de aumento da pena imposta, não como elemento para caracterização do crime. Para efeitos de sua aplicação, ele faz remissão a conceitos contidos em outros diplomas legais, como a definição do termo

“criança”, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), ampliando o

espectro de sua abrangência para alcançar também adolescentes.

Dentre os princípios que a norteiam, uma disposição bastante salutar foi o estabelecimento de diversos recortes para além da dimensão de gênero e etária contida no título do protocolo (“em especial mulheres e crianças”), também incorporando as dimensões de orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, situação migratória ou outro status, primando pela transversalidade e interseccionalidade desses fatores na produção de políticas públicas e preconizando proteção e assistência integral a vítimas independentemente de sua nacionalidade ou anuência para colaborar com a produção probatória em processos judiciais.

Conta também a política com diretrizes gerais e específicas, estas últimas divididas em três eixos, um de prevenção, outro de repressão e responsabilização de autores do crime de tráfico de pessoas e o terceiro, de atenção às suas vítimas. Tais competências se realizam em ações cujas execuções se atribuem à responsabilidade de órgãos e entidades públicas das áreas de justiça e segurança pública, relações exteriores, educação, saúde, assistência social, promoção da igualdade racial, trabalho e emprego, desenvolvimento agrário, direitos humanos, proteção e promoção dos direitos da mulher, turismo e cultura, de forma conjunta e articulada com organizações da sociedade civil e instâncias de monitoramento, preconizadas em planos que contam com metas a serem alcançadas durante seus períodos de vigência.

O primeiro plano constituído com tal finalidade foi I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, elaborado por Grupo Interministerial instituído pelo mesmo decreto que promulgou a Política Nacional, com três eixos estratégicos, a saber, prevenção e repressão ao tráfico de pessoas, responsabilização seus autores e garantia de atenção às suas vítimas, estabelecendo para isso prioridades e ações a serem adotadas através do cumprimento de atividades de implementação incumbida a órgãos atuantes nas diversas áreas afetas à execução da Política. O I PNETP foi aprovado pelo Decreto nº 6.347, de 8 de janeiro de 2008,

que também instituiu o Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do Plano, cuja execução foi prevista para dois anos.

De acordo com o Relatório do I PNETP, grande parte das prioridades estabelecidas tiveram suas ações implementadas por meio das atividades propostas com execuções bem sucedidas, e alguns órgãos, mesmo não tendo recebido qualquer incumbência direta, envidaram esforços para desenvolver ações para coibir o tráfico de pessoas nos seus respectivos âmbitos de atuação, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário no tocante ao trabalho escravo e a Polícia Rodoviária Federal, considerada parceira de primeira hora no combate ao tráfico interno através do monitoramento das estradas e rodovias. Algumas ações tiveram sua implementação prorrogada, outras se encontravam em andamento quando da elaboração do relatório.

Para dar continuidade à execução da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, fez-se necessária a elaboração do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Diferentemente do primeiro plano, o segundo se inseriu em um processo de discussão mais amplo; ambos foram abertos para consulta pública no site do Ministério da Justiça, visando uma abertura à participação da sociedade civil nas discussões, mas, no Plano atual, houve também a chamada para realização de plenárias livres, com metodologia previamente definida para aprimorar a sistematização das sugestões apresentadas; diversas organizações promoveram tais plenárias, fomentando o debate, o intercâmbio de experiências e o levantamento de novas propostas de ação de forma articulada e capilarizada. Tais ações ainda carecem de uma divulgação mais ampla e tempestiva, como de resto as diversas atividades promovidas sobre a temática pela Rede de Enfrentamento. Instituído pelo Decreto nº 7.901, de 4 de fevereiro de 2013, o II PNETP instituiu um Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, cujas ações devem ser coordenadas com Conselhos que tratem de aspectos tangencialmente relacionados á temática, destinado a conjugar ações de órgãos públicos e organizações privadas para consecução do fim a que se destina, sendo imbuído da responsabilidade pela propositura de estratégias de implementação da Política Nacional, incentivo de ações de estímulo ao estudo e à pesquisa da temática, acompanhamento da implementação dos Planos e articulação de ações com conselhos cujas atividades tangenciem o enfrentamento ao tráfico de pessoas para assegurar a intersetorialidade das políticas e coordenação as atividades de todos os conselhos com atribuições conexas nos mais diversos níveis.

3.3. Panorama atual de persecução penal ao tráfico de pessoas: o caso das travestis