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2 ALTERIDADE E A TROCA DE OLHARES ENTRE EU E O OUTRO

2.3 Marta Drag

No estudo sobre gêneros, Judith Butler é uma das maiores influências. Principalmente em seu livro Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990), Butler argumenta que todos os gêneros são produzidos culturalmente pela repetição de certos atos (performance), não havendo gêneros naturais. Com base nisso, reconstrói a divisão tradicional que separava as pessoas, pelo gênero, em dois tipos de performance. De um lado, observa-se uma performance que busca ocultar sua ficcionalidade para naturalizar seu gênero e impor o binarismo da “heterossexualidade compulsória”. De outro lado, há performances de gênero que são como um pastiche, não apenas identificando-se espontaneamente como não-naturais, mas também revelando a artificialidade de todas as identidades de gênero. A esse grupo, dá-se o nome de drag29, em outras palavras, pessoas

que, independentemente de sua sexualidade, transvestem-se em estereótipos exagerados do sexo oposto ao seu sexo biológico. Segundo Butler,:

O drag subverte inteiramente a distinção entre espaço psíquico interior e exterior e zomba de modo eficaz tanto do modelo expressivo de gênero quanto da noção de uma verdadeira identidade de gênero. [...] A paródia de gênero revela que a identidade original, com base na qual o gênero se modela, é uma imitação sem origem (Butler 1999, 174-5).30

Em A Confissão de Lúcio, Sá-Carneiro consegue ir muito à frente de seu tempo ao expor a artificialidade não só do drag, mas também dos gêneros considerados então como “normais”. Os dois protagonistas da novela lutam para preservar a ficcionalidade de suas identidades de gênero heterossexual, negando o reconhecimento a si mesmos e ao Outro, o que resulta em consequências nefastas. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, negam e também afirmam esse seu lado Queer através de Marta. Mesmo que toda a atividade sexual

29 O termo drag muitas vezes, vem seguido da complementação “Queen” para indicar homens

vestidos de mulher, e, embora menos frequente, “King” para indicar mulheres vestidas de homem.

30

‘Drag fully subverts the distinction between inner and outer psychic space and effectively mocks both the expressive model of gender and the notion of a true gender identity. […] gender parody reveals that the original identity after which gender fashions itself is an imitation without an origin’ (Butler 1999, 174–5).

no livro esteja confinada à Marta, o desejo homossexual de Lúcio fica claramente evidenciado. Seja Marta uma criação ou uma extensão da alma de Ricardo, ou um fantasma da loucura de Lúcio, a beleza de Marta e sua objetividade pura, parecem ser a perfeita legitimação para o desejo homossexual de Lúcio e Ricardo.

Marta não deixa de ser uma versão de Ricardo transvestido de mulher, seu lado

drag. Essa é uma afirmação do texto, já que é próprio Ricardo que assim se revela nas

páginas finais do livro. Contudo, se continuarmos a dar credibilidade à narração de Lúcio, percebemos que isso não se dá literalmente.

Se nos excedermos na redução do universo ficcional a um molde do real, pode parecer impossível que Ricardo seja Marta. Todavia, respeitando os limites impostos pelo jogo de “faz de conta” que é a leitura de literatura, juntamente com aquilo que é apresentado em A Confissão de Lúcio, a interpretação na qual uma pessoa pode ocupar dois lugares, ou mais especificamente dois corpos, no espaço é perfeitamente possível.

Nada obstante, como fizemos no capítulo anterior, há outro aspecto a ser levado em conta. Sendo narrado em primeira pessoa, o livro é um relato autobiográfico de uma personagem ficcional. A hesitação do narrador, que tem reflexos no leitor, deixa clara a existência de duas realidades intradiegéticas: uma “realidade” existencial de Lúcio anterior ao ato de narrar que desenvolve; e uma “realidade”, ou espaço de vivência que surge a partir do momento que inicia a narrativa. A primeira está oculta e implícita; a segunda, por ser a narrativa propriamente dita, é, portanto, visível. Se colocamos a palavra “realidade” entre aspas é para indicar que não nos referimos a espaços de certezas pré-existentes, mas a lugares em que o Eu constrói a narrativa de si mesmo. A primeira, parcialmente oculta aos olhos do leitor, associa-se à representação que Lúcio faz de si para consigo mesmo; enquanto a segunda é o repensar consciente desta identidade causado pela necessidade de expô-la a outrem.

As várias interpretações da obra se diferenciam por apresentarem distâncias diferentes entre as duas realidades intradiegéticas. O leitor pode suspender mais ou menos a realidade visível do fantástico para visualizar uma outra realidade que a antecede. Quanto menor a distância que o leitor atribui a esses dois planos, mais confiável é o narrador, ou de modo inverso, quanto maior a distância, menos confiável ele é.

Todavia, não é possível adotar a noção de drag para entender Marta, sem antes adaptá-la para o contexto da obra. Primeiramente, há de ser observada a presença de inúmeros diálogos entre as três personagens – Ricardo, Lúcio e Marta – ao longo da narrativa. Em outros momentos, Marta e Ricardo estão por diversas vezes em lugares distintos. Assim, considerar que Ricardo assumia simultaneamente duas personalidades em seu próprio corpo não faria sentido, ou então seria pelo menos esdrúxulo que Lúcio ficasse tão surpreso com a revelação final de Ricardo. Enfim, nessa hipótese, todo o mistério – tão importante na narrativa – seria convertido em cenas cômicas, pois Lúcio estaria constantemente vendo Ricardo literalmente interpretar – em seu próprio corpo – duas personagens na sua frente como em um pastiche de dupla personalidade. Ricardo não se transveste de mulher no seu corpo masculino. Ele assume, ou pelo menos assim nos é relatado, uma aparência feminina em um corpo exterior ao seu. Ricardo e também Lúcio – caso levemos em consideração sua culpabilidade como fizemos anteriormente – negam a identidade Queer em seu próprio corpo enquanto a afirmam no corpo de um duplo. Nos dois casos, realizam uma performance.

O duplo em A Confissão de Lúcio torna visível a oscilação dos protagonistas entre a identidade masculina que lhes foi atribuída socialmente e da qual não conseguem se desvencilhar, e a identidade drag, que é sua própria criação, mas que têm receio de assumir. Ao contrário do drag descrito por Butler, a característica drag em Marta serve para externalizar a identidade Queer, evidenciando-a apenas para si, não para os Outros. Demonstrar o drag em público, até mesmo para a pessoa amada, é inconcebível na mente de Ricardo e Lúcio devido a seu temor da opressão heterossexista.

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