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MASCULINIDADES, PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO E INQUISIÇÃO

1.1. Masculinidades e relações de hegemonia, cumplicidade e marginalização

Um primeiro ponto importante a ser esclarecido é o conceito de masculinidade adotado neste trabalho. A pesquisa toma como referência a corrente de estudos das masculinidades orientada, desde a década de 1980, pelas pesquisas da cientista social australiana Raweyn Connell.5 Superando o uso da teoria funcionalista dos papéis sociais como chave para a interrogação das masculinidades, considerada como responsável por efeitos

experimentados pelas pessoas, alterando os níveis de agressividade e de sentimentos em geral que poderiam ser expressos em público e delimitando novos limites entre a infância e a vida adulta, na medida em que se tornar homem ou mulher propriamente construídos tornou-se mais complexo, isto é, marcado por uma disciplinarização mais cerrada dos corpos. Ver ELIAS, Norbert. O processo civilizador, p. 23.

3 Peter Burke salienta que o movimento reformista, englobando a tradicionalmente intitulada Contrarreforma Católica, ocorrido nessa mesma época, teve como denominador comum a “reforma da cultura popular” isto é, “a tentativa sistemática por parte de algumas pessoas cultas (…) de modificar as atitudes e valores do restante da população”. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 231.

4 Ver: BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo; DE LAURETIS, Teresa. A Tecnologia do Gênero, p. 206-242; WITTIG, Monique. The Straight Mind, p. 21- 32.

5 Uma vez que a academia brasileira, como tantos outros setores sociais no país, é marcada ainda por fortes e, muitas vezes, invisíveis machismo, homofobia e transfobia, e vê com grande desconforto a inserção intelectual de pessoas às margens da ordem de gênero em suas hierarquias, é preciso esclarecer que a professora Raewyn Connell (professora da Universidade de Sydney) é transexual feminina, tendo nascido sob a designação cultural de Robert William Connell, nome sob o qual assinou vários de seus principais textos. Mais sobre a intelectual pode ser lido em seu site pessoal: http://www.raewynconnell.net/. Último acesso em 13 de novembro de 2013.

homogeneizantes prejudiciais às políticas e aos estudos de gênero, o conceito de masculinidades, em que diversos padrões sociais de masculinidades convivem relacionando- se socialmente através de relações de poder, da autora permitiu o desdobramento dos estudos de gênero focados nos homens em pesquisas em múltiplas áreas do conhecimento, como a educação, a criminologia a comunicação, a sociologia do esporte e da saúde, estudos organizacionais, arte e discussões mais gerais sobre as políticas de gênero para os homens e as relações destes com o feminismo.6

A noção de masculinidade, bem como a de feminilidade, uma vez que são conceitos relacionais,7 desenvolveu-se, em seu sentido moderno, a partir do início da Época Moderna no mundo ocidental. Tem como base a ideia de que o comportamento de cada indivíduo é consequência do tipo de pessoa que este indivíduo é, de modo que, necessariamente, alguém não masculino se comportaria de modo diverso de outrem masculino. Vê-se que tais conceitos de gênero desenvolveram-se como uma dimensão de um processo social mais amplo e de caráter civilizatório em que houve um aprofundamento do individualismo na cultura ocidental.8

6 CONNELL, R. W.; MESSERCHMIDT, J. W. Masculinidade Hegemônica, p. 245-249.

7 Masculinidades e feminilidades só podem ser pensadas em culturas em que homens e mulheres são percebidos como portadores de tipos de caráter polares em relação um ao outro. Segundo Maria Regina Azevedo Lisbôa, as identidades de gênero são relacionais, mediadas pela cultura e construídas através de processos de aproximação (identificação) e distanciamento (diferenciação). Assim, os significados atribuídos às masculinidades estão atrelados, em cadeias de significação, àqueles atribuídos às feminilidades, não sendo possível pensar um sem ser em relação ao outro. LISBÔA, Maria Regina Azevedo. Masculinidade: as críticas ao modelo dominante e seus impasses. In: PEDRO, Joana Maria; GROSSI, Miriam Pillar. (Org.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998, p.133-134.

8 Conforme Norbert Elias, o Ocidente atravessou, e atravessa ainda, um processo civilizatório em que, através de concepções sociais elitistas e eurocêntricas, procurou-se eliminar da cena pública (que se constituía ao longo do processo) os comportamentos considerados irracionais ou bárbaros, produzindo um refinamento das maneiras e a pacificação interna das nações – uma vez que as relações entre os indivíduos iam sendo continuamente esvaziadas de agressividade. Por meio da transformação secular do comportamento das pessoas na cultura ocidental (um processo que também pode ser entendido, tendo com base a influência da psicanálise freudiana na obra do autor, como a história da formação do superego no Ocidente), difundiu-se o sentimento de que cada uma é um indivíduo responsável por suas ações (que deveriam, portanto, seguir um código rígido para não ofender seus pares) perante o grupo em que se insere. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes, p.21-62.

Tendo como foco os processos e as relações pelos quais homens e mulheres vivem existências generificadas, a masculinidade pode ser definida como, simultaneamente, um local nas relações de gênero, as práticas pelas quais homens e mulheres engajam este lugar ao gênero e os efeitos destas práticas em experiências corporais, de personalidade e de cultura.9

Masculinidades e feminilidades são projetos de gênero, processos de configuração de práticas sociais no tempo e que transformam seus pontos de partida em estruturas de gênero.10 Enquanto configurações de práticas, masculinidades e feminilidades posicionam-se, ao mesmo tempo, em várias estruturas relacionais, que podem decorrer de diferentes trajetórias históricas. São, por conseguinte, sujeitas à contradições internas e à rupturas.11

O conceito de masculinidades, conforme apresentado por Connell, é passível de articulação ao de performatividade de gênero, que será detalhado na próxima seção deste capítulo. Segundo Miguel Vale de Almeida, a compreensão da masculinidade exige que o pesquisador atente para seus aspectos discursivo e performativo, ou seja, para a expressão verbal, incorporada ou ritualizada de valorações morais sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, baseados numa divisão do mundo primariamente alicerçada sobre a dicotomia dos sexos.12 Em uma primeira e rápida definição, o conceito de performatividade de gênero compreende o gênero como produto dos próprios atos que realizam, em seu acontecer cotidiano, os gêneros, sendo um efeito de práticas embebidas em relações de poder. Se masculinidades são padrões específicos das práticas sociais, essas se dão a acontecer de modo performativo no cotidiano dos indivíduos que as praticam.

9 CONNELL, R. W. Masculinities. 2. ed. Berkeley; Los Angeles, Califórnia: University of California Press: 2005, p. 71.

10 A autora define gênero como um modo pelo qual a prática social é ordenada, e como prática social que constantemente refere-se aos corpos e às suas ações. A autora ressalta, todavia, que o gênero não se reduz ao corpo e à biologia. CONNELL, R. W. Masculinities, p.71-76.

11 CONNELL, R. W. Masculinities, p.72-73.

12 ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de Si. Uma interpretação antropológica da masculinidade. 2. ed. Lisboa: Fim de Século Edições, 2000, p. 16.

Os padrões de práticas sociais, que, realizados performativamente, constituem as masculinidades em cada sociedade, estabelecem entre si relações de hegemonia, subordinação, cumplicidade ou marginalização. De acordo com Connell, foram os estudos em interseccionalidades que reconheceram a existência de múltiplas masculinidades e feminilidades, variantes conforme as categorias de raça e classe.13 A autora salienta que o estudo das relações estabelecidas entre as masculinidades evita o reducionismo de cada uma delas a uma série de tipos fixos. Destaca-se que as relações de poder que impulsionam e conformam as relações de gênero entre as masculinidades são também uma estratégia, e é necessário fugir ao erro de considerá-las apenas como estilos de vida divergentes.14

Em contextos históricos específicos, um dos padrões existentes de masculinidade assume um lugar de hegemonia sobre os demais. Isso foi possível porque este padrão (que é uma configuração específica de práticas de gênero) corporificou de modo mais eficiente a resposta correntemente aceita para legitimar a existência do patriarcado, garantindo (ou levando a crer que garante) a posição dominante dos homens e a subordinada das mulheres. A hegemonia de uma masculinidade é a bem sucedida alegação da autoridade (o fato deste clamor ser aceito como apropriado), de modo que a violência direta e constante não precise ser sua marca principal. Finalmente, a hegemonia é uma posição contingente e histórica; a ocorrência de mudanças nas condições de defesa do patriarcado corroem suas bases de dominação, abrindo caminho para que outros grupos proponham outros padrões de

13 Interseccionalidade é o estudo do cruzamento das várias categorias de diferença que compõem as identidades individuais, como gênero, raça, classe, orientação sexual, idade, entre outras. De acordo com a pensadora feminista américo-caribenha Audrey Lorde, é importante que as diferenças existentes no interior dos grupos de diferentes (por exemplo, as diferenças entre mulheres brancas, negras, imigrantes, lésbicas, transexuais, idosas, trabalhadoras, etc) sejam analisadas por um viés igualitário (e não pela lógica dialética de dois opostos dicotômicos que reduz sempre um dos termos a uma posição desumanisada). Segundo a autora, não são as diferenças internas e cruzadas de cada categoria que separam e segregam os indivíduos, mas a relutância deles em reconhecê-las e lutar efetivamente contra distorções (como o racismo, o sexismo, o heterossexismo, etarismo, classismo, etc) que resultam do ignorar e do nomear erroneamente estas diferenças. LORDE, Audrey. Age, race, class and sex: women redefining difference. In: LORDE, Audrey. Sister outsider. New York City: Crown Publishing Group, 2007, p. 114-123.

masculinidade como solução mais eficaz para o problema do patriarcado – conquistando, assim, a hegemonia.15

Miguel Vale de Almeida assim define a masculinidade hegemônica:

(...) a masculinidade hegemônica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível por praticamente nenhum homem, exerce sobre todos os homens um efeito controlador, através da incorporação, da ritualização das práticas da sociabilidade quotidiana e de uma discursividade que exclui todo um campo emotivo considerado feminino.16

Algumas formas de masculinidade assumem posições de subordinação em relação a outras. As masculinidades subordinadas são reduzidas às posições mais inferiores na hierarquia masculina de gênero. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a partir do século XIX, o principal padrão subordinado de masculinidade foi o homossexual – como contraponto à masculinidade heterossexual. Do ponto de vista da masculinidade hegemônica contemporânea, a homossexualidade é assimilada à feminilidade, resultando disso a forte homofobia que permeia esta masculinidade hegemônica.17 No contexto desta pesquisa, é problemático identificar uma masculinidade subordinada no sentido da homossexualidade contemporânea, pois parte-se da suposição construcionista de que os homossexuais não existiam como espécies sexuais antes do final do século XIX.18

Entre os homens estudados pela pesquisa, cujas histórias de vida foram preservadas nas fontes devido ao seu envolvimento com o Tribunal do Santo Ofício, predominam laços de cumplicidade ou marginalização em relação ao padrão hegemônico de masculinidade. Como foi destacado, poucos homens seguem a risca os padrões hegemônicos de masculinidade. Para a maioria a experiência completa da hegemonia é impossibilitada por suas condições materiais de vida, que forçam concessões ao convívio cotidiano com as mulheres. Estes

15

CONNELL, R. W. Masculinities, p. 77-78. 16ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de Si, p. 17. 17 CONNELL, R. W. Masculinities, p. 78-79.

18 No capítulo três desta dissertação, será problematizada a relação entre homoerotismo, sodomia e masculinidade no recorte por meio das peripécias eróticas do padre Frutuoso Álvares.

homens beneficiam-se das vantagens da hegemonia de dado padrão de masculinidade, porém, não arcam com as tensões e os riscos envolvidos na defesa flagrante do padrão hegemônico.19 Por outro lado, alguns padrões de masculinidade são atravessados transversalmente por relações de dominação e subordinação produzidas por outras categorias de diferença, como a raça e a classe.20 Destarte, os padrões de masculinidade dos povos indígenas ou africanos escravizados pelos portugueses durante a colonização da América foram marginalizados em relação ao padrão hegemônico de masculinidade em vigor entre os lusitanos. No segundo capítulo da dissertação, as práticas de masculinidade dos homens habitantes das capitanias visitadas pela Inquisição entre o final do século XVI e o início do XVII são analisadas de modo a esboçar quais práticas compunham os padrões de masculinidade destes homens (portugueses brancos ou nativos mestiços, de posições sociais diversas, solteiros ou casados, leigos ou membros do clero) – cúmplices do patriarcado ou por ele marginalizados de alguma forma.