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4.2 PACTO FEDERATIVO E A LEI KANDIR

4.2.1 Correlação vertical de forças no federalismo

4.2.1.3 Massacre da competência tributária

Outra evidência que mostra a prevalência do poder do Ente Federal se constrói dado os próprios objetivos dos mecanismos da legislação, dado o contexto da época.

Como exposto no Capítulo 3, a realidade do Brasil em 1995 era de desequilíbrios macroeconômicos resultantes dos dois principais mecanismos dos Plano Real: a queda do investimento e do crescimento em função da alta da taxa de juros, e o problema de déficit na balança de pagamentos em função da política cambial de paridade dólar-real na taxa de câmbio. Assim, as desonerações dos produtos primários e semielaborados exportados foram desenhadas como modo de resolver o problema na balança de pagamentos, ao tornar nossos produtos mais competitivos no mercado mundo. Já os créditos tributários para aproveitamento dos gastos em ativos de uso e consumo e de ativos fixos incentivaram os investimentos interno, e, portanto, a dinâmica da economia. Assim, o Governo Federal se aproveitou na necessidade de regulamentar o ICMS para promover políticas de ajuste da economia nacional, além de promover o seu mandato e seu plano econômico.

Entretanto, isso foi feito utilizando o principal tributo de competência estadual, afetando a capacidade de arrecadação desse ente subnacional, além de restringir sua competência decisória sobre o imposto de maior expressividade na sua competência. Isso porque, sendo de competência estadual, caberia aos entes subnacionais legislarem sobre suas características, tendo a União como responsabilidade, segundo a constituição, apenas definir regras gerais para o imposto.

O Gráfico 10 mostra que, em média, mais da metade das renúncias fiscais realizadas com o ICMS são de definição da Lei Kandir, ou seja, são originadas de uma política federal, e não estadual. Esse elemento indica a intervenção da União em um tributo que não é de sua competência, demonstrando a afetação ao princípio federativo da autonomia política de competências.

Gráfico 10 - Porcentagem das desonerações concedidas pela Lei Kandir no total das renúncias fiscais do ICMS no Rio Grande do Sul, de 2003 a 2015

Fonte: Elaborado pela autora, com base em Governo do Estado do Rio Grande do Sul (2016a).

Para Bordin (2002), a pouca expressividade da margem de atuação do legislador estadual para a produção da norma material de incidência fez com que o tributarista Sacha Calmon Coelho definisse essa situação como “massacre da competência estadual”.

A centralização legislativa do ICMS suscita alguns questionamentos sobre a sua constitucionalidade por contrariar a cláusula pétrea da preservação da federação. (...) [Pois] cada um dos entes tem o poder de instituir e arrecadar seus próprios tributos destinando a receita obtida para a realização de seus gastos (capacidade de auto-administração). Neste raciocínio, a redução do poder de instituir impostos pelos Estados, especialmente quando se trata de sua maior fonte de receita, pode ser perfeitamente entendida como uma afronta ao disposto na cláusula pétrea da Constituição. Concretamente, a proposta de retirada da competência legislativa do ICMS das mãos dos Estados não ‘acaba’ com a federação, mas a faz regredir. (BORDIN, 2002, p.6)

Além disso, a União não promoveu essas políticas de estabilização dos desequilíbrios causados pelo Plano Real através dos tributos de sua competência. Ao contrário, houve aumento de alíquotas do Confins e do IOF nessa época, além da criação, segundo Mundin (2008), de duas novas contribuições especial, o CSLL e a CPMF, responsáveis por pressionar a produção, o emprego e as exportações. Assim, para Bordin (2002), enquanto os Estados suportaram o ônus da correção de rumo do Plano Real (sustentação do câmbio e estímulos aos investimentos e às exportações

0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% 80,00% 90,00% 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

através da Lei Kandir), a União criou a CPMF, reconhecida por todos como geradora de grande impacto negativo sobre as exportações.

Há ainda um fator histórico que aponta para a opressão da competência tributária dos estados sobre o ICMS. Como já discutido no Capítulo 2, durante a Ditadura Militar, o Governo Federal possuía o direito de conceder subsídios e incentivos fiscais sobre tributos de competência dos estados. Entretando, baseado no ideário federativo, a Constituição Federal de 1988, buscou fortalecer as autonomias financeiras e de competências dos entes subnacionais. Assim, através do Artigo 151, vetou a prática desse tipo de política pela União.

Art. 151. É vedado à União:

III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.

(BRASIL, Constituição Federal de 1988, art. 151)

A rigor, as desonerações concedidas pela Lei Kandir não são isenções, mas sim restrições das bases de cálculo. Entretanto, é necessário se levar em conta o objetivo e o contexto em que a Constituição Federal foi escrita, de busca do fortalecimento do Pacto Federativo, como forma de aumento da democracia, frente a um período de extrema centralização durante o Regime Militar, como mostrado no Capítulo 2. Dessa forma, as renúncias fiscais regulamentadas na Lei Kandir, vão de encontro aos princípios trazidos pela Carta Magna de 1988, por permitirem a intervenção da União na definição legal da base de incidência no tributo de maior representatividade na competência dos estados.

Vale lembrar que, como já exposto no Capítulo 2, a Lei Kandir está inserida em um contexto de centralização, iniciado a partir da segunda metade da década de 1990. Fazem parte desse movimento, além da LC nº 87 de 1996, a Lei de Responsabilidade Fiscal, promovendo um maior controle das contas estaduais e municipais por parte da União, o aumento de participação relativa das Contribuições Espaciais, espécie de tributos sem obrigatoriedade de transferências de parte das suas receitas para os fundos de participação dos estes subnacionais, e o Fundo de Estabilização Fiscal, que desvincula 20% da arrecadação dos tributos federais, levando a diminuição dos recursos transferidos para estados e municípios. Dessa forma, é possível concluir a intencionalidade da União em promover essa concentração de competências e de

recursos, como uma forma de oposição ao ideário descentralizador proposto pela Constituição Federal.

Assim, todas as evidências demonstradas na discussão sobre a correlação de forças no contexto de surgimento da Lei Complementar nº 87 de demonstram uma relação hierárquica entre esses entes, sendo os subnacionais subordinados as políticas da federal. Essa realidade se contrapõe, contudo, ao formado de forças prevalecentes num estado federativo, que é de interdepedência e cooperação, podendo a voz da União se sobrepor apenas em momentos de mediação de conflitos, e não para se beneficiar dos entes subnacionais.

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