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3. A INVESTIGAÇÃO: COMO É E COMO DIZ O SUJEITO DO DISCURSO

3.4 Matéria (2): “Lula sonha com Disneylândia no Pantanal” (02 de setembro de 1989)

Diferentemente de um título disposto fora da esfera jornalística, ―a manchete jornalística encerra o conteúdo fundamental do texto, resumindo-o semanticamente; é sua macroestrutura semântica‖ (BARROS FILHO, 2016, p. 41). Nessa reportagem, extraída do Caderno Política, de 02 de setembro de 1989, assinada por Terezinha Lopes, a manchete ―Lula sonha com Disneylândia no Pantanal‖ reformula e condensa os seguintes enunciados destacados da fala de Lula: ―Quero transformar isso aqui numa grande Disneylândia‖ e ―No meu governo, as crianças não precisarão mais ir ao mundo encantado de Walt Disney para conhecer bichos de mentira‖. Por meio do título, o sujeito do discurso reformula os enunciados de Lula como ―sonho‖, provocando um efeito de sentido de minimizar ou depreciar seu projeto político para o Pantanal.

De acordo com o enunciado de Lula, transcrito no artigo, a referência à Disneylândia pode estar atrelada ao conceito de lazer e ao desenvolvimento do turismo na região, com o tombamento da área e sua abertura para visitação pública, é possível que tenha sido elaborada

uma comparação entre se divertir no Pantanal ou naquele complexo de lazer, e não que se tenha aludido à construção de um parque temático como a Disney no Pantanal, como o título da reportagem e o subtítulo ―Entusiasmado com a paisagem, o candidato promete quase o impossível‖ indiciam.

A partir da síntese feita do texto-fonte, no qual Lula faz referência ao seu projeto para o Pantanal, o enunciado destacado provoca outra interpretação sobre o já-dito, isto é, o sujeito do discurso reformula os enunciados de Lula por meio da confecção do título, mas faz emergir outro sentido daquele que podemos apreender do texto-fonte. Quanto à escolha lexical, há uma questão semântica importante: o uso do verbo ‗sonhar‘ pode remeter a algo fantasioso ou a algo distante de ser realizado, e a recomposição das falas do candidato revela um simulacro construído sobre Lula e suas propostas de governo, o que igualmente fica evidenciado no subtítulo ―Entusiasmado com a paisagem, o candidato promete quase o impossível‖.

Quando observamos as fotos escolhidas para compor o artigo, extraídas de um vídeo de campanha eleitoral do candidato, essa leitura fica mais evidente: são imagens de corpo inteiro, de enquadramento em plano geral, em que o candidato, que não parece estar ciente dos registros fotográficos, integra-se ao ambiente, vestindo trajes informais, usados normalmente em momentos de lazer, cuja descrição da legenda – ―Lula, durante passeio no barco do Rio Piragara, Pantanal do Mato Grosso: ―vontade de ―pegar um jacaré a unha‖ e atrás de eleitores que nem sabem o nome dos candidatos‖ –, remete a uma figuração que se aproxima do burlesco, distanciando a figura do candidato à do estereótipo do político de gabinete e cujo contexto enunciativo original da frase destacada ―pegar um jacaré a unha‖ não fica evidente no artigo, isto é, o sujeito do discurso jornalístico pode ter destacado de enunciados proferidos por Lula durante as filmagens do vídeo para campanha eleitoral ou em diálogo com jornalistas que acompanharam o candidato na viagem, mas o leitor não tem acesso ao texto-fonte. E também é possível apreender um tom de desdém a partir do uso do advérbio de negação nem, tanto em relação ao esforço de campanha na região bem como quanto aos eleitores, sobre quem o enunciador generaliza, traçando um estereótipo de que todo pantaneiro está alienado quanto à política nacional. O que fica evidente em uma breve reportagem disposta no quadro lateral intitulada ―Um povo à margem da política‖, o enunciador também reproduz esse estereótipo sobre a população que ―vive nas margens do Pantanal‖, construindo simulacros de um lugar isolado, sem acesso à informação, em que a população vive ―à margem da política‖.

Em grande parte da reportagem, o sujeito do discurso lança mão de expressões que remetem ao ambiente selvagem para descrever a visita de Lula ao Pantanal, ficando em segundo plano as propostas do candidato para a região. Analisando os seguintes trechos (1) ―‗Dizer que vamos acabar com os garimpos seria o mesmo que dizer que vamos acabar com o sexo‘, raciocinou‖; (2) ―com um pedaço de pau na mão sonhava com a hora de „pegar um jacaré a unha‟‖; (3) ―Sua origem de “cabra macho” pernambucana não decepcionou‖; (4) ―Cara a cara com o animal de quase dois metros de comprimento, o máximo que conseguiu foi ver o jacaré se atirar pesadamente na água, assustado com a presença do candidato‖: em (1) o enunciado destacado é seguido pelo verbo dicendi ―raciocinou‖, modalizando, pelo discurso, o enunciado proferido pelo candidato, cujo efeito de sentido produzido é o de que não seria uma ação comum ao candidato fazer uso da razão para se expressar; em (2) a expressão com ―um pedaço de pau na mão sonhava com a hora de ‗pegar um jacaré a unha‘ integra o candidato ao retrato selvagem que elabora do Pantanal e, novamente com o emprego do verbo ―sonhar‖ para referenciar suas ações, figura a imagem do candidato como distante do contato com o real; em (3) a figuração de Lula como ―cabra macho‖ pernambucano, entre aspas, previne o leitor de que a linguagem do sujeito do discurso se distancia do uso coloquial, mas que não abre mão da referência estereotipada do nordestino como rústico; já em (4) o enunciador faz uso da ―cara a cara com o animal‖ recorrendo a uma linguagem mais informal, distanciando-se, assim, do ethos pré-discursivo do jornalista, profissional que faz uso corrente da linguagem formal.

Essas sequências discursivas evidenciam uma possível ―pretensão ilocutória‖ (MAINGUENEAU, 2011) do enunciador em montar uma imagem estereotipada de rusticidade do candidato, por meio de uma maneira de dizer a partir de um tom cômico e, do mesmo modo, irônico, distanciando-se a cena enunciativa das matizes de seriedade e de informatividade que são comuns ao gênero reportagem.

A partir dos indícios discursivos apresentados e da mobilização de informações prévias à enunciação quando se trata de personagens conhecidas, tal como os estereótipos que acima descrevemos, o sujeito do discurso jornalístico concebe um quadro imagético de Lula baseado na representação de um homem rústico, selvagem e afastado da figura do ser racional, distanciando-se, pela maneira de dizer, do ethos pré-discursivo esperado a partir do gênero reportagem – imparcialidade, apresentação e análise objetiva dos fatos, seriedade na escolha das pautas – e da posição de jornalista especialista em reportagens políticas. A maneira de ser do fiador do discurso, apresentada por meio do tom de deboche, faz emergir por meio da cena enunciativa um ethos sarcástico e jocoso, dentro do contexto de um mundo

ético dos especialistas em política que não reconhecem Lula como candidato sério no cenário da comunidade imaginária que só reconhece a figura do político de gabinete, com traços de intelectual, que não faz uso de expressões coloquiais e se move nos espaços de maneira formal.