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Matar o monstro à fome!

No documento Wolfgang Streeck - Tempo Comprado (páginas 148-159)

A que se deve, então, o crescimento da dívida pública, quando este não tem correlação com um aumento da mobilização democrática das massas, mas, pelo contrário, com a viragem neoliberal e com o retrocesso simultâneo da participação política? Penso que a atual crise financeira dos Estados constitui a concretização, nesta época, de um problema de funcionamento do Estado moderno, diagnosticado já no início do século XX, e que reside no facto de a sua capacidade de extrair de uma sociedade de proprietários privados os meios de que necessita para o cumprimento das suas – crescentes – tarefas tender a ficar aquém do necessário. Nesta perspetiva, o endividamento público não se deve a

despesas demasiado elevadas, mas sim a receitas demasiado baixas, resultantes do facto de a economia e a

sociedade, organizadas segundo o princípio individualista

da propriedade privada, restringirem a sua

tributabilidade, ao mesmo tempo que exigem cada vez mais ao Estado.

De facto, constata-se que o início do endividamento das democracias ricas nos anos 70 coincidiu com um desfasamento entre o aumento das receitas fiscais e o aumento das despesas do Estado. Enquanto, até aí, tanto as

receitas como as despesas haviam crescido, em geral, ao mesmo ritmo, pelo menos desde meados dos anos 80, o nível global de tributação, no essencial, manteve-se constante (Figura 2.4) – sendo que, nos primeiros tempos, as despesas continuaram a crescer – e, no final do século, com o avanço do neoliberalismo, até baixaram numa série de países, como a Suécia, a França, a Alemanha e os EUA (Figura 2.5) (13). Neste caso, a evolução também foi, em geral, uniforme e as causas semelhantes. O fim da fase de crescimento pôs termo à chamada «progressão fria», que levou os contribuintes a pagar taxas de imposto sobre o rendimento cada vez mais elevadas.

Este efeito para os cofres de Estado foi parcialmente compensado pela inflação nos anos 70; no entanto, as perdas reais de rendimentos daí resultantes provocaram um aumento da resistência à tributação, sobretudo por parte da classe média (Block 2009; Citrin 1979; 2009; Steuerle 1992), assim como exigências de reformas fiscais, por exemplo, na forma da indexação das taxas dos impostos. Em consequência disto, assim como de uma estabilização monetária bem sucedida, deixou de ser possível aumentar as receitas do Estado através do aumento dos impostos invisíveis – politicamente menos arriscados –, restando como única opção fazê-lo através de aumentos dos impostos visíveis.

Nos anos 90, houve outros fatores que vieram associar-se a esta situação. O aumento rápido da internacionalização da economia abriu possibilidades inimagináveis até à data para as grandes empresas transferirem as suas sedes fiscais para países menos exigentes. Esta situação, mesmo nos casos em que não houve, em última análise, uma deslocalização das unidades de produção, sujeitou os Estados nacionais do capitalismo democrático a uma concorrência fiscal crescente e levou os seus governos a reduzirem os

escalões mais elevados de impostos sobre as empresas (Ganghof 2004; Ganghof e Genschel 2008; Genschel e Schwarz 2013). Isto foi acompanhado, frequentemente, pelo chamado alargamento da base tributária através da eliminação de isenções fiscais, o que era suposto garantir «neutralidade em termos de receitas»; contudo, nestas condições, já era impensável um aumento da tributação. Além disso, registou-se uma proliferação da doutrina neoliberal da necessidade de melhorar os «incentivos ao desempenho» para reanimar o crescimento económico – nos escalões mais baixos da distribuição dos rendimentos, através da redução dos salários e das prestações sociais, no topo, pelo contrário, através do aumento dos salários e da redução das taxas dos impostos. Este é um outro aspeto no qual as diversas «modalidades» do capitalismo só se distinguem em grau: a combinação entre a reforma do mercado de trabalho (Hartz IV!) e a reforma fiscal (Ganghof 2004; em especial 98-117), implementada na Alemanha pelo governo social-democrata e dos Verdes, do chanceler Schröder, correspondeu, nos Estados Unidos, à abolição do welfare as we know it, levada a cabo por Clinton, em combinação com os mal-afamados

tax cuts do governo de Bush após 2001 (14).

de que as causas da crise financeira dos Estados devem ser procuradas pelo menos tanto do lado das receitas como do lado da despesa pública. A exigência popular de redução dos impostos serviu aos estrategas da resistência organizada aos impostos para atingir o objetivo mais abrangente, isto é, impedir o Estado de prosseguir programas sociais igualmente populares. Essa estratégia remonta a finais dos anos 70 e registou os seus primeiros êxitos – que perduram, aliás, até hoje – na Califórnia. O lema deste movimento extremamente bem sucedido, promovido por uma das figuras mais influentes até hoje da política americana, o ativista anti-impostos Grover Norquist (Kuttner 1980; Martin 2008; Tarschys 1983), era e é «starving the beast»: matar o monstro à fome! O facto de o porta-estandarte político deste movimento na primeira década do novo século, George W. Bush, que herdou do seu antecessor no cargo um excedente orçamental, não ter tido nada mais importante para fazer do que transformar novamente este excedente num défice (recorde) através de uma redução drástica dos impostos para super-ricos – iniciando, simultaneamente, duas guerras, que aumentaram ainda mais os buracos orçamentais do lado da despesa –, mostra que o objetivo primário do movimento não consistia num orçamento do

Estado equilibrado, mas sobretudo num recuo do Estado de acordo com a doutrina neoliberal (15).

O próprio facto de, após os anos 70, quando as receitas dos Estados começaram a estagnar, as despesas dos mesmos terem continuado a aumentar até, em finais do século, se ter iniciado a primeira onda de consolidação neoliberal, não se deve, necessariamente, ao serviço coletivo de massas de eleitores insaciáveis, com mandato democrático. Pelo contrário, existem muitas razões para, de acordo com uma perspetiva bem funcionalista, ver nisso a expressão da necessidade crescente de prestações públicas coincidente com a progressiva evolução capitalista, prestações essas que visavam tanto fins curativos, como de investimento, isto é, uma reparação dos danos causado pela acumulação do capital, por um lado, e a criação de condições para um crescimento futuro, por outro (16). As prestações com fins curativos incluem, por exemplo, despesas crescentes com subsídios de desemprego e assistência social, associadas ao regresso do desemprego estrutural (17), assim como despesas crescentes com cuidados de saúde públicos e despesas com reparação de danos ambientais, surgidas no último terço do século. As prestações investidoras, pelo contrário, podem incluir despesas públicas, igualmente a

crescerem em termos globais, destinadas ao desenvolvimento e à manutenção das infraestruturas físicas, à criação de capital humano e à investigação científica e tecnológica – condições consideradas imprescindíveis para uma acumulação privada do capital bem sucedida. Estas prestações, num sentido lato, também incluem as despesas públicas destinadas à chamada utilização pacífica da energia nuclear, sem as quais a produção privada de eletricidade em centrais nucleares não seria, ao que parece, de todo rentável; o desenvolvimento dos serviços públicos de acolhimento de crianças enquanto condição para o alargamento da participação feminina no mercado de trabalho, urgentemente necessária para o crescimento económico, a

manutenção de porta-aviões, assim como o

desenvolvimento e a utilização de aviões não tripulados e tecnologias semelhantes para garantir um abastecimento de petróleo comportável ou ainda a liberalização – altamente perigosa, como se revelou mais tarde – da economia financeira privada para aumentar o volume de créditos enquanto último meio disponível para produzir um (aparente) crescimento económico (18).

No documento Wolfgang Streeck - Tempo Comprado (páginas 148-159)