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TEMA 4: DE TUDO, O QUE FICOU?

40. Matemática, uma linguagem?

“A matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo.” Galileu Galilei “A matemática não é apenas outra linguagem: é uma linguagem mais o raciocínio; é uma linguagem mais a lógica; é um instrumento para raciocinar.” Richard P. Feynman

As epígrafes que motivam a escrita desta mônada fazem-nos refletir sobre a posição que ocupa a matemática numa sociedade de relações. Sociedade esta que utiliza dessa área do conhecimento como uma ferramenta física e social, como esclarecedora de questões naturais, ou, a utiliza, ainda, como instrumento que possibilita visões de questões abstratas e religiosas. Pensar a matemática presente em tantas esferas sociais leva-nos a uma reflexão sobre relações entre matemática e sua forma de representação por aqueles que constituem essa sociedade. Essa representação, escrita, pensada ou falada, pode ser caracterizada enquanto linguagem. Para pensar em relações entre matemática e linguagem, vamos dialogar com alguns autores.

Lara Nasi, em um artigo publicado na Revista Urutágua, da Universidade Estadual de Maringá20, nos apresenta duas perspectivas de língua: a primeira, sob um olhar gramatical e, a segunda, para os linguísticos. Em ambas, há a distinção entre língua e linguagem. Para os gramáticos, língua é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Meio através do qual uma coletividade se expressa, concebe o mundo e age sobre ele. É a utilização social da faculdade da linguagem. A gramática, por sua vez, é o conjunto de regras da língua, ao qual se dedicam os gramáticos (NASI, 2007).

No campo da linguística, Nasi nos conta que Saussure inaugura a linguística moderna e que, para o autor, a linguagem pode ser dividida em duas partes: a língua, sistema de signos, e a fala, ato individual da escolha de palavras na enunciação do desejado. Já para Chomsky, segundo Nasi, a língua é dividida em dois campos: o desempenho – uso que fazemos da língua – e a competência – normas ou regras que permitem emitir, receber e julgar enunciados. No campo desempenho, Chomsky define língua como sendo um conjunto de sentenças, onde cada uma delas é formada por uma cadeia de elementos (NASI, 2007).

20 O conceito de língua: um contraponto entre Gramática Normativa e a Linguística. Revista Urutágua, n. 13,

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Quando trazemos tais reflexões para a matemática, podemos pensar em algumas relações. A matemática possui um conjunto de símbolos e regras. Esses símbolos agrupados, obedecendo às regras iniciais, formam sentenças cuja leitura é possível àqueles que dominam tais regras. Poderíamos até caracterizá-la enquanto língua se a considerarmos inserida numa comunidade de matemáticos falando sobre matemática, ainda assim considerando apenas a manifestação escrita. Mas, quando pensamos no ato da enunciação, de um teorema, por exemplo, o uso que fazemos da matemática faz-se enquanto linguagem. A língua será o português, inglês ou alemão, dependendo do público a quem você dirige a palavra. As conversas pós-explanação ocorreram num idioma, numa língua, em que ambos interlocutores travaram seus pontos de vista, próximos ou longínquos. Caracterizamos a matemática enquanto linguagem quando a colocamos num contexto mais amplo, porém, inserido em uma língua, em que a matemática está presente na prática social, na interpretação e julgamento de fatos, nas ações ou conclusões, seja de caráter numérico matemático, ou de ordem, estrutura, grandeza ou lógica.

Quando pensamos a matemática presente na prática social, seja em conversas entre pessoas, ou entre pessoas e o mundo em que vivem, nos aproximamos de Wittgenstein. Filósofo austríaco, Wittgenstein relaciona a linguagem à matemática no que denomina jogos de

linguagem, dentre outros jogos de linguagem não matemáticos presentes na sociedade, formando

em seu conjunto as formas de vida.

Um jogo de linguagem, na concepção de Wittgenstein, é a relação do indivíduo presente e atuante na sociedade com a sociedade. Compõem como peças desse jogo a cultura do indivíduo, suas concepções e visões do mundo que o cerca (a cultura da sociedade em que se encontra) e a linguagem. Para Glock, “o termo ‘jogo de linguagem’ pretende salientar a ideia de que falar uma língua é parte de uma atividade, de uma forma de vida” (GLOCK, apud MIGUEL, MOURA, VILELA, 2010, p. 144). Dentro dessa forma de vida, as representações possíveis para essa atividade são normativas, obedecem às regras e aos jogos de linguagem que se inscrevem em determinados contextos.

No artigo Desconstruindo a matemática escolar sob uma perspectiva pós-metafísica de

educação, publicado na revista ZETETIKÉ, v. 18 – Número temático de 2010, os autores

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levantado por Wittgenstein, “cantar uma cantiga de roda” diferenciando-os nos diferentes contextos, sendo necessário definir as regras que orientam e significam este contexto para que o jogo “cantar uma cantiga de roda” produza significado. Esses contextos podem ser vários, como os próprios autores enumeram, pode-se “cantar uma cantiga de roda” na rua, como uma atividade de lazer, na escola, como uma atividade educativa, ou sozinha, no intuito de afastar um momento de tristeza. Em todos os casos a cantiga cantada pode ser a mesma, o contexto é que caracteriza seu significado (MIGUEL, MOURA, VILELA, 2010, p. 167).

Nessa perspectiva, “fazer” matemática é um jogo de linguagem da sociedade. Logo, consideramos “fazer” matemática toda prática que envolve a leitura, interpretação ou desenvolvimento de símbolos, lógica ou conceitos matemáticos. Wittgenstein usa o termo “gramática” para “designar as regras constitutivas da linguagem e também a sua organização” (GOTTSCHALK, 2004, p. 315) dentro dos jogos de linguagem. Wittgenstein vê, assim, as proposições matemáticas tais como proposições gramaticais.

Esses jogos de linguagem, portanto, são produzidos não apenas por matemáticos, pesquisadores da ciência, mas por todos os indivíduos inseridos na sociedade, lugar onde a matemática está presente em suas principais estruturas, como a econômica. Para Wittgenstein, a matemática, na realidade, é a matemática no plural, as matemáticas presentes em diferentes práticas sociais. Assim, cada jogo de linguagem matemática produz uma matemática dentro das regras normativas deste jogo.

Em Desconstruindo a matemática escolar sob uma perspectiva pós-metafísica de

educação, os autores trazem outro exemplo, agora sobre um jogo de linguagem matemático. O

exemplo é a foto da capa da revista brasileira KAZA, ano 8, número 81, de 2010. O objetivo dos autores no exemplo é mostrar os diferentes rastros que podemos seguir ao analisar essa capa. Alguns destes traços tratam do ver e ler diferentes matemáticas, como o preço ou a data de publicação da revista. Para cada um desses símbolos – preço e data de publicação – é necessário situar-se num jogo discursivo, no caso do preço, o jogo discursivo do sistema monetário brasileiro, que obedece, por sua vez, o jogo discursivo do sistema posicional decimal. O mesmo ocorre com a data. Se a revista fosse importada dos Estados Unidos, conseguiríamos ver e identificar esses símbolos matemáticos – preço e data de publicação, mas a leitura exige o

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conhecimento do jogo discursivo “sistema monetário estadunidense” e “sistema de datas estadunidense”. Fora destes jogos, um indivíduo que tivesse em mãos um jornal norte-americano, cuja data impressa é 12/01, poderia pensar se tratar do dia 12 de janeiro, quando, na realidade, estaria no primeiro dia de dezembro. Se estivesse em Nova Iorque, os enfeites natalinos poderiam ajudá-lo a entender que havia algo estranho com a data no jornal, ou em seu modo de leitura daquela data. Como nos mostra os autores do artigo, existe uma grande possibilidade de rastros a serem perseguidos, e, para cada um deles, faz-se necessário o conhecimento do contexto em que se encontra, não fisicamente, mas em sua gênese (MIGUEL, MOURA, VILELA, 2010, p. 180- 182).

Sob esta perspectiva, ao olharmos para a primeira frase que serve de epígrafe ao texto, Galileu Galilei, em uma citação poética, atribui à matemática o caráter de elementos que caracterizam a formação das palavras e sentenças da natureza, não necessariamente apenas concreta. No caso, Deus é o grande escritor/orador, e, a matemática, propicia os elementos que constituem sua escrita/fala. Não especifica a “gramática” normativa da escrita, mas atribui à matemática a designação de língua da natureza. Deus criou o universo com a matemática, podemos, então, presumir que a matemática foi criada por Ele e os homens apenas teriam acesso a ela? Para Wittgenstein, a matemática aparece no rastro dos seres humanos enquanto um conjunto de jogos de linguagem dentre vários outros jogos de linguagem. A matemática não descreve em si a natureza (fatos empíricos), por ser linguagem, mas fornece ferramentas para descrevê-la. Considerar a pré-existência da matemática seria considerar a pré-existência de uma linguagem21, o que não faz sentido uma vez que a linguagem é decorrente da posição/relação do homem em sua existência solitária, em grupo ou sociedade.

Já na segunda frase epígrafe, o físico Richard P. Feynman considera a matemática uma linguagem, mas não uma linguagem qualquer. Essa linguagem associa-se à característica lógica da matemática, incitante do raciocínio. Quando diz isso, Feynman dá a entender que outras linguagens não possuem lógica e/ou não são instrumentos para raciocinar? Para Wittgenstein, qualquer relação do homem, seja com um objeto, seja com outro ser, humano ou não, é dado por

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Segundo Gottschalk, Wittgenstein critica a concepção referencial de linguagem, “a qual pressupõe que haja

sempre algo que corresponde ao significado das palavras, exterior à própria linguagem em que se encontram inseridas” (GOTTSCHALK, 2004, p. 306).

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jogos de linguagem e jogos extra-linguísticos. O próprio fato do homem se relacionar dentro de um jogo de linguagem já envolve o raciocínio das regras do jogo e do contexto em questão, como nos mostra o exemplo da foto da capa da revista KAZA, mencionado acima. Sendo matemático ou não, o jogo linguístico, dentro da comunidade pesquisadora em matemática ou nas práticas sociais tal qual o comércio, ou na visita a uma exposição de quadros, a lógica e o raciocínio estão presentes. Em alguns momentos, esse jogo pode propiciar um raciocínio mecânico, como a mecânica das pernas nos pedais da máquina de costura. Em outros momentos, incita a lógica e o raciocínio, como na música Cálice, de Chico Buarque, ou no título do livro de Mário de Andrade,

Amar, verbo intransitivo.

Indicação de Leitura: Mônada 41 – Sobre linguagem e Matemática Moderna, página 96.

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