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Matheus: “o timbre passa a ser um fator de exploração” Para ler escutando “De Natura Sonorum” 63 (1975),

SEGUNDO CAPÍTULO

2. Os atores e suas narrativas: epistemologias nativas

2.5. Matheus: “o timbre passa a ser um fator de exploração” Para ler escutando “De Natura Sonorum” 63 (1975),

de Bernard Parmegiani.

No início de março de 2014 tive a primeira reunião com Flo Menezes e os alunos que frequentariam em maio sua disciplina de “música acusmática”. Fomos avisados por e-mail sobre a reunião, com horários de começo e fim bem marcados e algumas diretrizes sobre os assuntos a serem conversados. Achei bastante rígido. A reunião foi realizada no estúdio PANaroma, com muita formalidade e sem muita interação entre os alunos. Estava muito curiosa para conhecer o famigerado estúdio. O ambiente era escuro e completamente silencioso, tanto pelo isolamento acústico quanto pela falta de interação entre os presentes.

Apenas Flo falava e os demais respondiam quando solicitados. Um dos que se destacava era Matheus, frequentemente consultado por Flo, cujo respeito ao aluno fazia-se notar, pelo fato de também ter tido uma peça sua elogiada em um concurso por François Bayle, importante compositor do gênero acusmático. Logo após essa reunião, ainda no mês de março, assisti a uma difusão feita por Matheus em um dos concertos da série T-SON, além de inúmeras difusões suas durante a Bimesp. Um dos últimos cds de obras de compositores ligados ao PANaroma lançado pelo selo do estúdio contava com uma de suas composições. Enfim, sua figura tinha certo destaque naquele contexto, legitimada constantemente pelas atitudes do diretor do estúdio em relação a ele. Mostrava-se, para mim, como o perfeito “estabelecido”, enquanto minha presença era continuamente reafirmada como “outsider”, nos termos de Norbert Elias.

Para o curso de música acusmática, que acompanhei, fomos solicitados, nessa primeira reunião em março, a analisar individualmente e apresentar a difusão de uma peça, escolhida

previamente e distribuídas por Flo, conforme o que ele achava interessante para cada aluno e de acordo com o nível de conhecimento de cada um. Para Matheus foram solicitadas a análise e difusão de três peças ─ consideradas difíceis pela complexidade que apresentam na difusão e pela longa duração ─ ficando responsável também pela primeira análise a ser apresentada no curso, que iniciou em maio.

Tivemos dois meses para fazermos nossas análises e montar nossa interpretação da peça para a difusão nos alto-falantes do estúdio, porém fiquei em um verdadeiro limbo, perdida e sem saber por onde começar. Não havia entendido como era para ser feita a análise. Escutei a peça obsessivamente durante esses dois meses, de março a maio, mas só compreendi a tarefa quando assisti à apresentação de Matheus na primeira semana de aula. Ele fez uma partitura visual, utilizando-se dos recursos do software indicado por Flo, o “Acousmographe”. O programa gera um espectrograma da música que facilita efetuar a análise e a construção da partitura visual a partir de variadas formas geométricas e escala de cores, a fim de tornar exequível a identificação de gestos e momentos marcantes a serem evidenciados na interpretação/difusão.

Matheus começou a estudar guitarra na adolescência, dedicando-se à performance de jazz. Cresceu em um ambiente onde se escutava muita música “clássica” e música popular brasileira. Participou de bandas de jazz, de fusion e de blues ─ “passeando por vários gêneros” ─ nas quais teve as primeiras experiências de composição musical, “como qualquer outra linguagem musical, exige uma vivência, precisa tocar aquilo”. Já adulto, foi para o exterior continuar seus estudos nessa área. Nos Estados Unidos, teve aulas de choro “eu tinha um amigo de lá que também o pai dele era chorão, então ele me ensinou umas coisas”. De volta ao Brasil, montou “um grupo de choro novo”. Diz que sempre se dedicou a “tocar música mais popular (...) por questões profissionais”.

Após seu retorno, estudou engenharia de som, influenciado por um amigo que fazia um curso de produção musical/mixagem “fiquei muito empolgado com aquilo, com a

parte de gravação”. Alguns anos depois, um amigo o apresentou à obra de Stockhausen e a “música eletrônica”, “eu escutei, uma loucura a música do cara [representando a fala do amigo]”. Esse foi o fio condutor que o levou até o estúdio PANaroma, pois Flo Menezes, “uma pessoa bastante crítica, bem interessante”, é conhecido por ter estudado com Stockhausen em Colônia. Chegou a cogitar ir estudar na Universidade de Colônia.

Ele decidiu, então, fazer o curso de graduação em composição, com “especialização em eletroacústica”, na UNESP ─ “uma formação mesmo em composição, que eu pensava em fazer desde os 15 anos de idade” ─ onde seguiu também para a pós-graduação, já que “música eletroacústica já era muito mais forte, enfim, na UNESP (...) era mais direcionado”. Afirma que, antes do curso, “era um cara mais de manual do que de conhecer os softwares [na prática]”.

Matheus conta que na música popular que costumava tocar, fosse jazz ou choro, questionava-se sobre as fórmulas e os “clichês”, que são marcas próprias de cada gênero “porque de cada oito em oito compassos tem que ter uma virada, uma coisa assim (...) mas porque que você sempre tem que ter um lugar para onde você volta(...) os diversos clichês que eu encontrava que existiam na música popular, brasileira, no choro, no jazz também”, que eram marcas incomodas para ele. Aos poucos percebeu que não lhe agradava mais aquele tipo de composição e/ou interpretação “isso é exatamente o que eu não quero porque se eu aprender isso eu vou ficar soando como mais um guitarrista (...) que toca não sei quem (...) não me interessa nem um pouco soar como os outros (...) não é o que tinha a ver comigo”, fato que o aproximou da “música contemporânea em geral”. Pensa que essa experiência anterior o “influencia na medida em que não atrapalha mais pra me desviar do meu caminho [na música contemporânea] (...) por mais que a gente nunca se desligue das experiências do passado, seja como um eco mais forte ou mais fraco”.

Ele pensa que o fato de ter uma relação “muito mais próxima da música eletroacústica” se deve ao aprendizado de passar “muito tempo sozinho (...) passava a semana inteira sem ver ninguém, uma experiência muito interessante pra mim”. Tem um

estúdio em casa, onde executou atividades intensas por quase dez anos, “hoje em dia não gravo mais tanta coisa [em casa]”. Morou sozinho desde muito cedo, ainda na adolescência, “sempre tive esse momento de ficar sozinho, eu gosto disso (...) gosto de poder sentar e ter essa relação ou com piano ou com o computador na qual eu não dependendo de mais ninguém”.

Mesmo assim considera que as pessoas cada vez mais estão “mais dependentes, de uma maneira extremamente prejudicial, da tecnologia”. Explica que, por exemplo, alguns alunos, “principalmente pessoas mais jovens”, do estúdio não demonstram interesse em aprender música, mas apenas em aprender a utilizar determinado software “ninguém quer aprender música, [querem aprender] o que você vai fazer com um software de música (...) entram no estúdio um pouco perdidos nesse sentido, sempre a ideia do software e tal, um fetiche muito grande como se você dominasse o computador, você dominasse os softwares (...) [e por isso] fosse necessariamente se tornar um bom compositor”. Isso causa uma “substituição da ferramenta” em termos de uso atribuído originalmente a ela, “você quer compor, você quer criar sons, você quer programar um instrumento seu (...) pra fazer alguma coisa com aqueles sons (...) esse é o fim aonde você quer chegar (...) falta encarar isso como ferramentas e saber usar essas ferramentas”.

Matheus refere pensar que há diferença em termos de “profundidade” entre as experiências musicais da música eletroacústica e da música instrumental, o que existem são apenas “particularidades do gênero em si”. Afirma que a diferença centra- se no fato de, na eletroacústica, o compositor ter de lidar com o fato, que para ele se apresenta como um “grande problema”, “ter que fazer seus próprios sons”, em razão de não possuir “um leque, uma aquarela de timbres já pronta pra você” como na música instrumental, na qual há uma “infinidade de instrumentos”. Cita como exemplo o campo dos instrumentos de percussão que tem possibilidades tímbricas “praticamente infinito [infinitas] (...) tem uma gama de timbres muito extensa, uma riqueza de timbres

gigantesca”. Admira compositores como Edgar Varèse64, pelo fato de, em diversas peças suas, ser difícil distinguir o que é instrumental e o que é eletroacústico, e Gustav Mahler65, pois ambos trabalhavam “mais com cores, com timbre mesmo, o timbre passar a ser um fator de exploração (...) voltar mais atenção pro timbre”.

Assim, esse processo de exploração dos timbres não é exatamente uma novidade da eletroacústica, “é um processo que já existia na música instrumental”, mas “na música eletroacústica ele é totalmente ampliado”, já que, em tese, há a possibilidade de chegar

em qualquer som existente de qualquer desses instrumentos (...) musicais tradicionais, instrumentos construídos pra produzir sons tônicos de altura definida (...) teoricamente você consegue fazer por meio se síntese, ou por meio de tratamento você partir de um som que pode nem ser de um instrumento. (Matheus)

vai-se além pois mais do que explorar timbres, criam-se timbres, sobretudo no momento em que “você começa a se voltar aos ruídos (...) não é à toa que grande parte das obras eletroacústicas tem um enfoque maior no ruído”. Interessam, então, tanto os ruídos produzidos a partir de instrumentos de sons tônicos ─ por exemplo, os sons evitados na música tradicional de concerto como os da fricção do arco no violoncelo ─ quanto os ruídos de objetos que não foram pensados, em sua concepção original, para serem instrumentos musicais como um motor de carro, “que não foi construído pra ter som tônico necessariamente (...) vai ter uma parcela atônica [que] favorece [para que se]

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Compositor francês cuja obra, do início do século XX, foi importantíssima para o surgimento da eletroacústica.

65 Compositor alemão de transição entre a música do século XIX para a moderna do século XX.

explore mais essa relação com o ruído”. Conclui que “isso abre o campo da música”.

A espacialidade entra na música eletroacústica como “um meio de composição musical, um meio de você trabalhar questões de forma, que não pode ser equiparado, por exemplo, ao você estruturar harmonia de uma música”, a saber, “é pensada dentro da composição como se fosse mais um parâmetro sonoro”. Essa noção contribui, em “oposição a ser só utilizada como um adereço a mais”, para alterar a “percepção da obra”. Matheus fala que, se a música é “a arte da organização dos sons”, conceito que é quase um senso comum, pensa que se trata, sobretudo, o que o resultado dessa organização sonora pode “causar” no ouvinte. Considera o momento do concerto, ou da difusão eletroacústica, “um momento sagrado, que você necessita ter um silêncio, pra você realmente direcionar a sua atenção ao que tá acontecendo (...) [sentar e] dedicar toda a minha atenção pra aquilo”, já que é um momento de escuta centrada, “se eu tô com amigos em casa, batendo um papo, jantando, não vou colocar uma música eletroacústica”, pois julga que “certos tipos de músicas, música erudita em geral, não funciona como uma música de fundo (...) ela chama muita atenção, ela necessita da sua total atenção”.

Tendo em vista essa questão da espacialidade, Matheus declara que “os alto-falantes sem dúvida têm um papel central na música eletroacústica, porque ela depende dos alto falantes pra acontecer”. Mesmo na música eletroacústica mista eles tem papel fundamental para a parte do “live electronics” ─ eletrônica em tempo real ─ e para a parte do “tape” ─ gravação fixa, produzida pelo compositor antes da performance ─ que necessitam “dos alto falantes (...) passa a depender, consequentemente você passa a depender da eletricidade e de outras coisas, assim como a gente tem geladeira em casa”.

O computador, elemento que também é fundamental, aparece como “uma continuidade [do] que se fazia nos meios analógicos” com o surgimento e a ampliação “dos meios digitais, do áudio digital”. Tem papel de destaque sobretudo pelo fato de “ficarem mais acessíveis [em termos de compra]” vindo a “tomar o lugar desses equipamentos analógicos”. Sua função também é de

“facilitar o trabalho”, pois os recursos do antigo aparato analógico passam a estar presentes em um programa de computador, que “faz quantos osciladores [de frequência] você quiser”.

Quando compõe uma peça eletroacústica, sobretudo acusmática que é seu foco, Matheus costuma partir “de um plano (...) estruturar a obra antes, ter uma ideia da onde ela vai, pensar nas direcionalidades dela (...) [cada] som tava lá e ele era pra está lá”. Feita essa etapa, Matheus explica que inicia, então, “um diálogo, eu dialogo com que a obra tava pedindo pra mim, porque a ideia não é só realizar um plano, mas chega um momento que eu começo a ver que a obra tá pedindo de mim algo”. Considera “difícil” estabelecer regras para a avaliação de uma peça “a priori” dado que “não se trata de um objeto com uma funcionalidade física clara”, mas é possível realizar essa apreciação “a partir de análise, obviamente de alguém qualificado com estudo pra isso, não uma pessoa que é um leigo (...) esse pensamento crítico você não vai ter por osmose”.

Sobre a música eletroacústica, ele diz que muitas vezes supõe-se que “faz uma música que não é pra ninguém, ninguém entende a sua música”, explica que isso ocorre, por mais que seja uma música “muito bem documentada”, pois não se pode a “compreender prontamente sem nenhum estudo, sem você ir atrás, não tô falando nem de estudo formal”. Avalia que essa falta de conhecimento contribui para uma perda da “sensibilidade”, já que para ele nada pode ser equiparado à “verdadeira experiência musical (...) [uma] experiência mais profunda que a música pode nos dar” que está relacionada a um “cultivar”.

Preocupa-se, no entanto, com o fato de algumas obras terem como suporte estético “um outro aspecto externo”, seja esse suporte um discurso ou explicação teórica, uma espécie de desvio “pro conteúdo contextual”, ou, outro exemplo, um conteúdo textual que prenda o ouvinte pelo texto em si, visto que “existe o grande risco do compositor se apoiar nesse conteúdo e não no conteúdo musical em si”.

Acredita que a música eletroacústica está “mais ligada a academia, apesar de existirem estúdios próprios, simplesmente porque não dá dinheiro” e, por isso, “as universidades se tornam

um espaço privilegiado, principalmente a arte de vanguarda, ela praticamente cada vez tem menos espaço fora das universidades porque não interessa à lógica [de mercado]”. Remete esse fenômeno a uma intensa “massificação” da arte, que deixa “menos espaço” para às estéticas autodenominadas “vanguarda” e impossibilita “fazer arte de verdade, fazer música de verdade”. Crê que não é necessário “emburrecer as pessoas, emburrecer a qualidade, diminuir, reduzir a qualidade de uma arte” para o público ter acesso, para ele é uma questão que depende de

“proporcionar o acesso às pessoas”66.

Quanto aos concertos que o PANaroma faz mensalmente, Matheus diz haver

um público assíduo (...) [que] não é em grande quantidade (...) são muitas vezes as mesmas pessoas, você sempre acaba cruzando com as mesmas figuras, existe alguns concertos que lotam, mas é raro (...)tem que haver um cuidado pra não cair pro pensamento quantitativo, que é característico desse pensamento de massa, que as coisas só se justificam pela quantidade. (Matheus)

mesmo situados em São Paulo, uma “cidade imensa”, “o acesso a concertos de música contemporânea é ainda mais difícil em outras cidades”. Para ele essa é uma característica “não só em música eletroacústica, mas música contemporânea em geral mesmo, [tanto] instrumental, [quanto] suporte eletrônico”. Julga que “existe a oportunidade” das pessoas assistirem aos concertos e escutarem “música eletroacústica de primeira qualidade, com equipamento de primeira qualidade que é importante à fruição” pois “todos os concertos que são feitos aqui na universidade são de graça, é de livre acesso pra qualquer pessoa”.

66 Ele, assim como os demais alunos do estúdio, faz um discurso adorniano.

2.6. Daniel: “como qualquer vanguarda (...) eu acho que a

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