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MATRIZ RESIDUAL

No documento PROTEÇÃO SOCIAL NO CAPITALISMO (páginas 77-164)

MATRIZ RESIDUAL

A escolha do termo residual para qualificar a Matriz que será discutida neste capítulo não é inocente e nem despida de significado. Este vocábulo, já utilizado por expoentes do campo da Política Social, como Richard Titmuss e Gosta Esping- Andersen, para indicar um perfil politicamente avarento de proteção social pública, tem a propriedade de agregar tendências que, ao mesmo tempo, reforçam as correntes teóricas e ideológicas componentes da referida Matriz e são balizadas por elas.

Tal termo alude, mais especificamente, a um padrão de proteção social mínima, focalizada nos extremamente pobres, descolada do status de direito e que se constrói e desenvolve com relutância por parte de governos, legisladores, gestores e executores dos países onde ela se processa. Países estes que, como não poderia deixar de ser, constituem os principais lócus de reprodução da ideologia burguesa e de rejeição a toda e qualquer medida pública de restrição à liberdade do mercado e ao direito individual de propriedade privada; e, ainda, onde o atendimento das necessidades de lucro incessante do capital tornou-se imperativo meritório, que destrói qualquer veleidade de satisfação de necessidades humanas como questão de direito socialmente legitimado.

Essas correntes (Funcionalismo, incluindo sua variante Teoria da Convergência; e Nova Direita, que representa a fusão do neoliberalismo com o neoconservadorismo), não são apenas afinadas com as características típicas do residualismo na proteção social, mas, até certo ponto, são também suas idealizadoras e propagadoras primárias. De fato, o Funcionalismo e a Nova Direita, embora tenham se constituído como abordagens no século XIX e nos anos 1940 respectivamente, tornaram-se forças políticas que influenciaram diretamente governos e pautaram ações protetivas em diversas nações ao redor do globo, especialmente a partir dos anos 1970.

Hoje seus postulados estão mais presentes do que nunca em quase todas as regiões do mundo, e “convertem” culturas, economias tradicionais e regimes políticos diversos. Além disso, penetram nas esferas formadoras de opinião e de valores, como escolas, Universidades, Igrejas, veículos de comunicação e artes no geral, corrompendo suas premissas anticompetitivas originais, que passam a ser substituídas por princípios regidos pela lógica antissocial do capital. Esse processo encontra oposições e não se dá

sem lutas e resistências. Contudo, as correntes componentes da Matriz Residual conquistam cada vez mais espaço e defensores, até mesmo entre os oprimidos pelos grilhões socioeconômicos sustentados e validados pelo ideário dessa Matriz. A legitimidade ampliada concedida ao Funcionalismo e à Nova Direita só pôde ser conquistada pelo uso generalizado da manipulação, da mistificação, do logro, do fetiche, que distorcem a realidade capitalista, ocultam sua essência, mascaram seu modus operandi e transformam, na aparência, crimes, brutalidades e explorações em banalidade.

Este é o cerne do conteúdo apresentado a seguir, no bojo da análise de ambas as correntes, acima citadas, e das principais variantes que as compõem. Como ilustração, será apresentado um caso paradigmático de aplicação prática residual de proteção social: o peculiar modelo protetivo estadunidense.

T

EORIA

F

UNCIONALISTA39

Por se tratar de uma abordagem ampla e diversificada, que não se detém a questões específicas, a teoria funcionalista ou funcionalismo, perpassa diferentes áreas do conhecimento, adquirindo, em cada uma delas, configurações distintas, embora sem perder suas características essenciais. Fala-se, por exemplo, de funcionalismo na linguística, na qual este enfoque centra-se no “fato de ser a estrutura da gramática explicada como resultado de funções de outras esferas, especialmente os níveis cognitivos e comunicativos” (MACEDO, 1998, p. 73). Mesmo dentro deste campo, o funcionalismo se subdivide em cinco tipos: função como interdependência; função como propósito; função no contexto; função como relação; e função e significado (Ibid.).

A abordagem funcionalista está igualmente presente na psicologia, no âmbito da psicologia funcional, que pressupõe o estudo das funções mentais e seus impactos

39 Mishra, entre outros autores, utiliza o termo teoria para qualificar o funcionalismo, embora deixe claro, em seus estudos, as deficiências teóricas inerentes a esta escola sociológica. Nesta tese, parte-se da convicção de que, ainda que se abstenha de um sistema explicativo coeso, articulado de maneira lógica, centrado em questões específicas e metodologicamente complexo, o funcionalismo pode ser considerado uma teoria sociológica em seu sentido mais literal. Mesmo com fortes limitações neste campo (que serão apresentadas ao longo deste tópico), o paradigma funcionalista constitui uma abordagem capaz de formular hipóteses pautadas por fatos reais, testá-las e incorporá-las à teoria sociológica geral (conquanto seus resultados possam e devam ser questionados); e, ainda que seus principais pensadores não tenham produzido observações criteriosas específicas a respeito da proteção social, suas apreciações têm influenciado, de maneira contundente, políticos, gestores e pesquisadores.

práticos na vida concreta dos indivíduos. Importante ressaltar que a psicologia funcional contemplou diferentes explicações e metodologias, assumindo formas variadas a depender do teórico ou pensador que a investiga. Além disso, esse campo funde-se a outros que possuem, da mesma forma, vertentes funcionalistas. A Filosofia da Mente, por exemplo, em sua variante funcional, baseia-se na suposição de que os estados mentais são reais, não são redutíveis a estados físicos e são “definidos e caracterizados pelo papel funcional que ocupam no caminho entre o input (dados de entrada) e o output (dados de saída) de um organismo ou sistema” (TEIXEIRA apud FILHO, 2005, p.76). Nesta especialidade, o funcionalismo encontra três outros sentidos: funcionalismo decomposicional simples; funcionalismo de computação-representação; e funcionalismo metafísico (FILHO, 2005).

No direito, em especial no direito penal, o funcionalismo surge para afiançar que este “deve ser estruturado, interpretado, aplicado e executado tendo em vista a sua função e, em última análise, as finalidades das suas penas ou medidas alternativas” (ROBALDO, 2008, p.39). Subdivide-se, por seu turno, em funcionalismo sistêmico e funcionalismo teleológico. Nas artes, na arquitetura, na medicina, na matemática, na comunicação e em diversas outras disciplinas do conhecimento a abordagem funcionalista encontra espaço, adaptando-se às normas e aos códigos teóricos e metodológicos de cada área.

Enfim, não há um funcionalismo, mas vários funcionalismos que, não obstante permaneçam, de alguma forma, conectados aos pressupostos sociológicos originais, ultrapassaram os domínios da sociologia e expandiram-se, ganhando novos formatos. Todavia, mesmo dentro das ciências humanas e sociais, campo de interesse desta Tese, esta teoria ganhou, ao longo da história do pensamento acadêmico, significados múltiplos. Surgiram, assim, predicados ao termo, cada qual munido de especificidade: funcionalismo estrutural ou estrutural funcionalismo; funcionalismo tradicional; funcionalismo formal; funcionalismo absoluto, para citar os mais conhecidos. Em outras palavras,

“funcionalismo” tem algo de um termo genérico. Tem havido várias maneiras de usar a palavra para clarificar o que se quer dizer numa aplicação específica. Embora o enfoque mais comum seja usar funcionalismo como o nome de uma teoria, vários híbridos têm surgido (SKIDMORE, 1976, p.172).

Essa multiplicidade de sentidos e entendimentos acerca de uma mesma terminologia e a sua fragmentação constante em subtipos variados gera dificuldades conceituais. Entre elas, a persistente confusão entre funcionalismo e abordagens análogas, que resultam, ora na fusão destas em uma única miscelânea teórica, ora na tomada de uma pela outra, com a consequente supressão de uma delas. Para ilustrar, cita-se a usual associação entre positivismo e funcionalismo (e, consequentemente, a classificação de Augusto Comte, “idealizador” do paradigma positivista, como funcionalista e de Émile Durkheim, “pai” do funcionalismo, como positivista), abordagens sociológicas que, apesar de compartilharem semelhanças significativas, são distintas.

Outra dificuldade repousa na incorreta identificação dos representantes teóricos do funcionalismo. Skidmore (1976) aponta os desafios desta questão ao ressaltar a prática da classificação indiscriminada de indivíduos ou coletividades como sendo adeptos desta abordagem: “alguns sociólogos [diz ele] têm sido incluídos no grupo dos funcionalistas que realmente não chamam seu próprio trabalho por esse nome” (Ibid., p.173).

É comum a “rotulação” genérica de autores e pesquisadores filiados a tradições teóricas diversas – algumas, inclusive, antagônicas entre si, e outras absolutamente avessas à abordagem funcionalista – como afins ao funcionalismo. Por vezes esta vinculação de autores se dá de forma aleatória, imprudente ou má intencionada, fruto de ignorâncias teóricas, precipitações analíticas ou perseguições intelectuais. Com relativa frequência, este enquadramento equivocado de autores parte da simples identificação, em seus trabalhos acadêmicos e científicos, de vocábulos comumente empregados por funcionalistas famosos. A utilização de palavras como função, sistema, orgânico, latente, manifesta, entre outras – a despeito de não terem sido cunhadas por funcionalistas; de seu uso ser recorrente em obras de autores partidários de teorias diversas (como Marx, por exemplo); e de, amiúde, figurarem desprovidas de conexão metodológica, doutrinária e política com o funcionalismo – tornou-se tabu, a ser evitado, com fins de evitar o julgamento de sentinelas ideológicas.

Em outras situações, pensadores adeptos de correntes ideologicamente adversas a esta teoria, são a ela associados, devido a vícios funcionalistas presentes em suas metodologias de análise, como, por exemplo, quando desconsideram as relações contraditórias da política social com as classes antagônicas – burguesia e proletariado.

Assim, importantes teóricos marxistas, como Louis Althusser e, por vezes, Nicos Poulantzas, também têm sido encarados como partidários do funcionalismo; e, não raro, um ou outro pensador social, acaba sendo taxado de funcionalista e engrossando o rol dessa categorização.

Em vista disso, e perante os obstáculos intrínsecos à seleção dos adeptos dessa abordagem teórica, optou-se, tal como Fernandes (1959, p. 199) por não tratar

de todos os autores que lançaram mão do conceito de “função” em suas investigações sociológicas ou que se preocuparam com as

vantagens ou as insuficiências do “funcionalismo. Mas somente daqueles cujas contribuições possuem evidente significação teórica, a ponto de servirem como autoridades representativas, para fins de exposição e de crítica (Grifo no original).

Todavia, a despeito desta cuidadosa decisão metodológica, os problemas de classificação não foram esgotados. Conquanto alguns autores possam ser indiscutivelmente identificados com o funcionalismo (tais como Durkheim, Talcott Parsons e Robert K. Merton), há discordâncias sobre a classificação de outros pensadores como representantes desta abordagem teórica. A título de ilustração, Herbert Spencer – que não só integra o rol de funcionalistas de Mishra (1981), mas é por este elencado como um de seus membros clássicos – é considerado, por outras fontes, um teórico positivista; ou melhor, um positivista que, como Comte, influenciou a criação e o desenvolvimento do funcionalismo, especialmente mediante o fornecimento de argumentos que justificavam a analogia entre biologia e sociologia40 (CABRAL, 2004), a qual será explicitada neste capítulo.

40 Um dos teóricos que classificam Spencer como positivista é Gouldner (1970). Segundo ele, Herbert Spencer, com sua visão evolucionista, se identificava com o positivismo, que prezava o evolucionismo

social e a ideologia do atraso cultural, ambos minimizados por Durkheim. E foi justamente a declinação

dessas duas categorias analíticas, por parte do funcionalismo, que diferenciou esta corrente teórica do positivismo. Talvez o ponto central dessa diferença, na percepção de Gouldner, diga respeito ao fato de Comte (pai do positivismo) ter apresentado uma postura ambivalente em relação ao passado: quanto mais se apegava a este, ao contrário de Durkheim, mais o temia. Assim, enquanto Comte tinha medo dos efeitos dos restos arcaicos do passado, sobre a nova sociedade positivista, julgada uma etapa superior da evolução da humanidade, Durkheim não. Por ter vivido em uma realidade histórica industrialmente mais avançada, ele moldou a sua compreensão de sociedade de modo a não superestimar os restos poderosos do pretérito. E assim procedendo, seu temor não era tanto do passado, mas do presente, da falta de controle da anomia em uma sociedade que se complexificava. Entretanto, isso não quer dizer que o passado não o inquietasse, mas sim que apenas não o encarava como uma ameaça importante. Importante salientar que, nesta tese, as tipologias estudadas não foram encaradas como classificações rígidas e isoladas. Ao contrário, é possível um mesmo autor “compor” duas ou mais correntes teóricas, sem, com isso, prejudicar a coerência de seus postulados teóricos e ideológicos. Assim, embora para Gouldner, essas características de Spencer o identifiquem com o positivismo, outras, que serão aprofundadas neste capítulo, reforçam sua afinidade com o funcionalismo.

Destarte, várias são as classificações das “autoridades representativas” do funcionalismo. Com vistas a manter a coesão ideológica e metodológica do presente trabalho, elegeu-se a classificação de Mishra, um dos pensadores que embasa os estudos desta Tese. Em sua obra Society and Social Policy (1981), o autor trata do funcionalismo sob a ótica do bem-estar social e, em vista disso, elege os principais autores funcionalistas com base na contribuição de cada um à referida temática. Mishra os divide em dois grupos: a) os ortodoxos e pioneiros, entre os quais destaca Spencer (nascido em 1820 e falecido em 1903) e Durkheim (1858-1927); e b) os não ortodoxos e modernos, composto, em especial, por Parsons (1902-1979), Merton (1910-2003) e Neil Smelser (1930-), colaborador de Parsons. Antes destes pensadores, todavia, Mishra (Id.) ressalta a importância da influência de Montesquieu (1689-1755) e Comte (1798-1857) para a construção desta abordagem teórica.

Conforme se pode notar, cada um destes pensadores desenvolveu seus estudos num tempo histórico específico, servindo, tais estudos, de base e/ou referência ao intelectual que o sucedeu. Assim, pelo menos quatro importantes sociologias funcionalistas coexistem, cada qual com particularidades que representam um “progresso contínuo” (FERNANDES, 1959) em relação à anterior. No entanto, apesar de o funcionalismo, como teoria, conter em seu interior ramificações variadas, possui postulados centrais e comuns a todos os seus teóricos. Para compreender sua metodologia de explicação e de investigação da realidade e, consequentemente, o significado e finalidade da proteção social no capitalismo, analisados pela sua lente, torna-se imprescindível considerar os princípios pelos quais se orientaram para, só então, pontuar as diferenças entre seus principais expoentes. A seguir, serão apresentadas as características comuns às vertentes do funcionalismo, para, na sequência, se proceder à análise dos seus pontos divergentes, especificamente no que se refere à proteção social.

Em primeiro lugar, figurando como preceito cardeal a uma teoria que se pretende universal, está a concepção sistêmica da realidade; ou seja, o entendimento de que a sociedade é um sistema integrado, constituído por partes ou elementos interconectados, que atuam em conjunto e se relacionam entre si e com a sociedade como um todo. Conforme Burke (2012) e Mishra (1981), a análise funcional não se preocupa com indivíduos, intenções humanas, países particulares ou tipos específicos de sociedade, mas com a sociedade em seu conjunto, entendida por eles como algo maior

do que a mera soma das partes. Émile Durkheim e seus seguidores compreendiam a sociedade como a mais elevada forma de coletividade, dotada do poder de controlar e conduzir as ações individuais. Por não privilegiar particularismos, mas, ao contrário, considerar somente o todo unificado, em detrimento da investigação das motivações ou intencionalidades individualistas, o paradigma funcionalista passou a ser amplamente identificado com o holismo.

Em segundo lugar, as partes componentes da sociedade são explicadas pela função41 que exercem neste todo, o papel desempenhado para que o sistema continue operando corretamente e, assim, seja mantido (MISHRA, 1981). O termo função é definido, segundo Durkheim (1978, p.23), como a “relação de correspondência que existe entre os movimentos [vitais] e algumas necessidades do organismo”. Portanto, é determinada pelas demandas e exigências do todo e não pode ser avaliada de maneira isolada. Da mesma maneira, por referirem-se a uma coletividade complexa, as funções das partes, para os funcionalistas, não são estáticas, maquinais e simplistas, mas, ao contrário, igualmente complexas. Para exemplificar, Bruyne et al (1977, p. 143) afirmam que uma mesma parte pode desempenhar diversas funções e uma mesma função pode ser desempenhada por mais de uma parte – processo que ficou conhecido como alternativa funcional –, ou seja,

nos limites colocados pela interdependência dos elementos numa mesma estrutura, existem equivalentes ou substitutos funcionais. Por outro lado, uma instituição não é obrigatoriamente funcional para a sociedade global: pode ser para uma parte e não para outra. Essa possibilidade requer a especificação explícita da “unidade orgânica” cujo elemento mantém ou não o equilíbrio (Ibid., p. 143).

A falta de equilíbrio é resultante de outro conceito central da teoria funcionalista, o de disfunção ou anomia, isto é, quando um ou mais elementos não cumprem devidamente suas funções sociais e perturbam, ainda segundo Bruyne et al (Id.), “a adaptação ou o ajustamento de um sistema”. A anomia representa a crise, a destruição

41 É preciso frisar que Durkheim não aprovava a substituição do termo função por qualquer outro vocábulo. De acordo com o ele, “se escolhemos este termo [o de função], foi porque qualquer outro seria inexato ou equívoco. Não podemos empregar o termo fim ou objetivo e falar da finalidade da divisão do trabalho, porque isto seria supor que a divisão do trabalho existe em vista de resultados que iremos determinar. O termo resultado ou efeito não nos satisfaria mais, porque ele não desperta nenhuma ideia de correspondência. Ao contrário, a palavra papel ou função tem a grande vantagem de implicar esta ideia, mas sem prejulgar nada sobre a questão de saber como esta correspondência se estabeleceu, se ela resulta de uma adaptação intencional e preconcebida ou de um ajustamento repentino. Ora, o que nos importa é saber se ela existe e em que consiste, não se foi pressentida de antemão nem mesmo se foi sentida ulteriormente” (DURKHEIM, 1978, p.23. Grifo no original).

das normas coletivas e a inefetividade funcional ou, segundo Merton (1968), um vazio derivado do lapso entre as normas e metas individuais culturalmente criadas e endossadas e as possibilidades concretas de agir de acordo com elas ou de alcança-las. A consequência desta “incapacidade de atingir os fins culturais” (Ibid.) é a conduta desviante, a decadência total da sociedade, o crime42.

Disto decorre o terceiro postulado comum aos pensadores funcionalistas, de maneira geral, e que serviu de alicerce – sempre revisitado e repensado – sobre o qual se ergueu e desenvolveu o funcionalismo moderno: a analogia orgânica, ou seja, a comparação dos sistemas sociais aos organismos vivos, biológicos. Assim, se cada parte (órgão) da sociedade (organismo) desempenhar adequadamente suas funções, a harmonia (saúde) do sistema é garantida. A alteração de um elemento deste sistema integrado e naturalmente harmônico afetará, necessariamente, todo o corpo social, podendo gerar disfunções. Isso explica porque o conflito, comumente subestimado nas análises funcionalistas, foi interpretado pelos funcionalistas clássicos e alguns modernos, como fenômeno anômico, patologia social a ser curada. Existem, para estes teóricos, “leis sociais naturais” que devem ser respeitadas com vistas a manter o sistema em funcionamento.

Este organicismo justifica, de certa forma, o poder holístico da sociedade sobre as partes que a compõe. Segundo Durkheim, esse poder se dá mediante a exigência coercitiva, universal e exterior à consciência individual dos membros da sociedade, do cumprimento de normas, conhecidas como fatos sociais. Em um de seus mais importantes livros, As Regras do Método Sociológico, o referido autor assim exemplifica os fatos sociais e elucida suas características:

Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios, sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação. Contudo, quantas vezes não ignoramos o detalhe das obrigações que nos incumbe desempenhar, e precisamos, para sabê-lo, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Assim também o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa;

42 Merton, ainda, faz uma distinção entre a “anomia simples” e a “anomia aguda”. Para ele, a primeira “se refere a um estado de confusão num grupo ou sociedade que está sujeito a conflito entre esquemas de valor, resultando em algum grau de mal-estar e num senso de separação do grupo”. Por outro lado, “a anomia aguda é a deterioração e, no caso extremo, a desintegração dos sistemas de valor, o que resulta em profundas angústias” (1968, p.237).

existindo antes dele, é porque existem fora dele. O sistema de sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o sistema de moedas que emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo nas relações comerciais, as práticas seguidas na profissão, etc., etc., funcionam independentemente do uso que delas faço. Tais afirmações podem ser estendidas a cada um dos membros de que é composta uma sociedade, tomados uns após outros. Estamos, pois, diante de maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a propriedade

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