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ME ENSINA A (SOBRE)VIVER COM CÂNCER? PASSOS DA JORNADA

Não é sobre o destino mas sobre a jornada Ralph Waldo Emerson

Neste capítulo, utilizarei a jornada do escritor como aliada para a organização dos enunciados resgatados. Neste sentido, antes de descrever os conteúdos do capítulo, gostaria de pontuar aspectos que considero relevantes.

Primeiramente, é válido ressaltar que procurei não estruturar minha escrita de modo a deixá-la engessada, presa à jornada do escritor. Minha intenção caminha no sentido de usar tal estrutura narrativa para que meu leitor conheça a maneira pela qual as (sobre)viventes narram suas obras. Entendo que essa estratégia facilita a compreensão desse universo narrativo. Ao iniciar cada categoria, apresento a lição que sintetiza o que a (sobre)vivente ensina em suas escritas.

No primeiro momento, conto como as (sobre)viventes vivem o diagnóstico de câncer e suas implicações, especialmente no modo como lhes é comunicado. Além disso, dou ênfase ao momento em que a (sobre)vivente se questiona sobre os motivos que a levaram a ter um câncer e como isso repercute na vida delas. No segundo momento, são narrados tensionamentos relacionados à rotina do tratamento de câncer e, principalmente, envolvendo a quimioterapia. Trago

91 discursos relacionados com saúde e beleza e como isso impacta na permanência no mercado de trabalho. Apresento como o cristianismo, aliado a ciência, ainda é uma força eficiente para docilizar corpos doentes. Ao final, apresento a jornada experimentada durante o tratamento e como o pensamento positivo e a felicidade podem contribuir para o êxito do tratamento.

O chamado: momento do diagnóstico

Lições: Ressignifique a experiência Denuncie maus tratos dos profissionais

Um enunciado, amplamente relatado pelas (sobre)viventes em suas escritas, relaciona-se ao momento em que receberam o diagnóstico de câncer. Essa ruptura aparece como um marco. É o momento em que a (sobre)vivente se vê, pela primeira vez, como paciente de uma doença grave. Dentro das etapas da jornada do escritor, “o chamado à aventura” é o momento da narrativa onde o herói é apresentado a um problema (ou desafio) em que é convocado a resolver. Uma vez exposta a situação, não se pode mais voltar ao seu mundo comum ou retornar a um estado inicial (VOGLER, 2015). Os livros analisados iniciam suas narrativas contando, brevemente, como era a vida antes do diagnóstico de câncer para, em seguida, relatar sentimentos e experiências do momento em que as (sobre)viventes foram informadas do diagnóstico.

Os relatos relacionados a esse momento são detalhados e repletos de revelações e emotividade. Em algumas vezes, pude observar um tom de denúncia nas falas das (sobre)viventes. O momento em que o diagnóstico é comunicado faz parte de todos os livros de autoajuda e, na maior parte deles, como não poderia deixar de ser, vivido de maneira pouco positiva.

É no momento do diagnóstico que a doença passa a fazer parte da vida das pessoas. A ligação entre o médico e o paciente legitima o saber médico como um saber autorizado. Essa comunicação não é apenas um ritual, mas um mecanismo que estrutura relações burocráticas (ROSENBERG, 2007). As (sobre)viventes

92 colocam sob suspeita a forma com que o diagnóstico de câncer foi comunicado pelos profissionais. Nos diversos cenários de tratamento, costuma-se chamar esse momento, que altera a visão dos pacientes em relação ao futuro, de comunicação de más notícias.

A área da saúde tem se ocupado em achar maneiras mais adequadas para comunicar más notícias. Na lógica biomédica, entende-se que o contexto é um fator importante para uma comunicação eficaz. “A maneira de dar uma má notícia varia de acordo com a idade, sexo, contexto cultural, social, educacional, doença que acomete o indivíduo e seu contexto familiar” (SILVA, 2012, p.50). Além disso, é esperado que o profissional possua sensibilidade para compreender quais as demandas mais urgentes dos pacientes, com o fim de flexibilizar as técnicas de comunicação.

Tenho observado que o tema relacionado com a comunicação de más notícias encontra maior difusão nos últimos vinte anos. Neste sentido, vale ressaltar que esse cuidado é uma invenção da contemporaneidade, impossível de ser pensada em décadas passadas devido ao histórico de soberania médica. Na maioria das vezes, pessoas doentes sequer eram informadas de sua doença. Penso que seja importante esclarecer que não pretendo minimizar a importância destes estudos e sua utilidade nas relações dos profissionais de saúde com seus pacientes, mas apenas olhar de outro modo para desacomodar algumas certezas. A transformação da medicina tradicional em medicina moderna contribuiu para a aproximação do médico com o paciente, uma vez que não se utilizava um sistema de classificação de espécies, mas sim uma investigação intensa do corpo. Para compreender os sintomas das enfermidades foi necessário utilizar sentidos como: audição, tato, visão e uma semiologia armada a serviço da prática médica, aproximando o doente do cuidador (FOUCAULT, 2011). “Assim, permitiu-se à medicina penetrar na profundidade do corpo e descobrir a doença” (SANTANA; LUCIANO; PIMENTA, 2013, p.31). A saúde do corpo passou, então, a ser o foco de inúmeras ações, substituindo, de certa maneira, questões relacionadas com a salvação da alma.

Ao longo dos últimos anos, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, a medicina moderna investiu nas áreas de fisiologia e anatomia humana. Os

93 profissionais aprenderam a ter um certo controle nestas áreas, investigando cada milímetro da anatomia humana. Apesar disso, o sujeito da contemporaneidade pede uma guinada, no sentido de modificar os modos de lidar com questões subjetivas de pacientes. É comum encontrar profissionais atrapalhados diante de situações onde o biológico não é o alvo das ações. Nas narrativas, as (sobre)viventes descrevem o momento do diagnóstico e como se sentiram nesta situação.

Existem médicos que complicam e assustam seus pacientes. No início do meu diagnóstico, percebi a falta de amor de alguns profissionais. Eles (não estou generalizando a classe) não têm amor pelo próximo, com exceção dos médicos que tive a oportunidade de conhecer depois, ao longo do tratamento. Dos anteriores, eu guardo péssimas lembranças, pois nem cautela para falar do diagnóstico eles tiveram. A maioria apenas “joga” o problema sobre pacientes e familiares. Isso me deixou muito desanimada. Recebi o diagnóstico da pior forma possível. Foi como se estivessem jogando um balde de espinhos, um leque de impossibilidades e incertezas. Sessão horrível, difícil até de explicar o quão ruim me senti. Acredito que sejam necessários médicos preparados para dar diagnósticos como esse ou qualquer má notícia. Não generalizando todos os médicos, mas aquele, em específico, foi muito infeliz ao “jogar” o diagnóstico sobre mim. Recordo-me daquele batalhão de médicos, fazendo toque retal em mim, cena constrangedora não somente para mim como para meu esposo, que também estava na sala. E depois perguntar se eu havia trazido roupas para ficar internada. Eu nem sabia o que estava acontecendo... como iria trazer roupas para ficar internada?! Eu imaginava que seria apenas uma consulta para mostrar o resultado dos exames realizados na Bahia. Eu nem podia imaginar o que me esperava após aquela consulta (SANTOS, 2014, p.42-43).7

O MÉDICO FOI MUITO PRÁTICO. QUANDO ELE ME DISSE