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Mecanismos de defesa perante uma crise

No documento O lugar da infância em tempos de crise (páginas 94-102)

Esta categoria decorre da consideração, em conjunto, de três subcategorias, relativas à participação das crianças, ao papel dos adultos e à função da escola face à crise.

Participação das crianças

A primeira subcategoria que iremos abordar diz respeito à participação das crianças, no que lhes diga respeito e no modo como considerariam poder estabelecer dinâmicas rumo a atenuar os efeitos da crise nas suas vidas, em particular e, nas dos outros, de um modo geral. A humildade, imaginação e filantropia são alguns tópicos que podemos apreciar nos seus argumentos.

Questionadas sobre de que modo a sua participação face à crise poderia constituir uma mais-valia, constatamos que uma percentagem significativa (46%) referiu que se «não pedissem muitas coisas» aos pais que podiam ajudar a poupar. Sofia (9 anos) refere que, as crianças não devem “Nós...não pedir tudo o que queremos”; Tiago (9 anos) também corrobora com o anterior e refere “Não pedir muitas coisas aos pais...não

implorar para ir jantar fora”. Contudo, também pudemos perceber que 13% dos inquiridos tenciona «juntar dinheiro» e entregá-lo aos pais para ajudar nas despesas da casa. A respeito desta matéria, de crianças que tentam ajudar os seus pais na economia doméstica, Roker (1998) e Ridge (2002) demonstram nos seus estudos que “o real contributo das crianças para a economia doméstica é dado através dos seus ganhos casuais” (in Redmond, 2008:5). Exemplo dessa ajuda, quer monetária, quer na ajuda das tarefas domésticas é a prestada por Pedro (9 anos) que refere que tal como ele, as crianças deviam “Quando tiverem dinheiro dar aos pais e ajudar os pais nas tarefas de

casa”; situação idêntica é a sublinhada pela Leonor (9 anos)que como forma de ajudar os pais, quando recebe prendas emdinheiro opta por “Juntar dinheiro...para dar aos

pais”. Torna-se especial numa família com poucos recursos a atitude destas duas

crianças que tendo consciência das dificuldades não querem estragar as coisas que têm desde a roupa aos brinquedos, é o que pretende dizer Rui (9 anos) na sua observação “se

não estragarmos não precisamos de comprar outros”; assim como demonstra ser da

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“Não deitar coisas novas para o lixo”. Longe de se considerarem como uma geração que ‘pode ter tudo’, estas crianças veem-se a si mesmos como fazendo um esforço considerável para manterem uma qualidade de vida razoável.

No entanto, há uma criança, o Rodrigo (9 anos) que acha que no geral “as

crianças não conseguem fazer nada” para fazer face à crise. Esta imagem de criança

passiva que não consegue fazer nada e que não se revê como sujeito deve mobilizar a nossa reflexão, sobretudo no sentido de tentar compreender a diversidade de posicionamentos que as crianças apresentam relativamente ao mundo que as rodeia.

A participação ativa das crianças e jovens, como cidadãos, afigura-se como um direito e que reflete um compromisso de respeito das sociedades para com os seus jovens de modo a que estas possam ser ouvidas em matérias que lhes digam respeito, bem como integrá-las em atividades cívicas.

Na última década, os líderes políticos da União Europeia têm demostrado que a pobreza e a exclusão social das crianças pobres constituem uma problemática e uma prioridade a combater. Para tal, e através da Plataforma Europeia contra a Pobreza e a Exclusão Social pretende-se reunir esforços e criar mecanismos que defendam e promovam os direitos e o bem-estar das crianças em situação de risco de pobreza (Hainworth, 2012 in ChildOnEurope, 2012). No entanto, e de acordo com o mais recente relatório da Comissão Europeia, este, concluiu que a promoção da participação das crianças consiste apenas “em reduzir a promoção da participação das crianças a nível social, desportiva, recreativa, cultural e atividades cívicas e não ao direito das crianças serem ouvidas” Mas, e ainda de acordo com a referida autora, desde a adoção do Tratado de Lisboa (2010) que “os direitos das crianças são agora um objetivo explícito da UE” (Hainworth, 2012:35 in ChildOnEurope, 2012).

Como sabemos a participação e o conhecimento das opiniões das crianças são relevantes e constituem uma importante plataforma para o seu desenvolvimento e bem- estar. Para isso as crianças necessitam tanto das instituições familiares e de ensino, bem como da sociedade em geral, para participar nas tomadas de decisões que a si digam respeito, quer no seio das suas famílias, quer na escola, na comunidade e sociedade, que inclui a participação na cidadania. A participação surge como uma forma de garantir as condições de exercício da cidadania.

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Identificando a perspetiva de Moreira, (2006:51) acerca da participação, esta pode ser vista como “um direito humano, através do qual qualquer pessoa pode intervir na tomada de decisões coletivas e na realização de metas políticas, económicas, sociais e culturais de uma sociedade”. Nesse âmbito, a participação das crianças é tida como condição essencial ao pleno desenvolvimento das faculdades humanas, uma vez que “o ser humano somente desenvolve plenamente seus atributos e potencialidades pessoais atuando em grupo e participando da vida social” (ibidem). Ainda segundo o autor, e continuando no sentido da participação das crianças, este refere que “a inclusão das crianças e adolescentes implica a alteração nas relações sociais baseadas na autoridade e na subordinação, evoluindo rumo a relações de sujeitos com os mesmos direitos, embora em situações geracionais diferentes, ensejando espaços e âmbitos de participação também diferenciados” (Moreira, 2006:45).

No entanto, Vasconcelos (2007:112) dá-nos uma outra perspetiva, i.e. “encontramos também famílias fechadas sobre si mesmas, isoladas socialmente, que não têm condições para se tornar espaços de cidadania”, ultrapassando classes sociais e condições socioeconómicas das mesmas.

Papel dos adultos

Uma outra subcategoria que decorre da análise diz respeito ao que as crianças entendem que deveria ser o papel dos adultos face à crise. Podemos verificar que 60% sugere que os pais deviam poupar mais neste período de maiores dificuldades económicas. Como podemos observar o que diz a Catarina (9 anos) acerca das escolhas de compras dos pais “não escolherem as coisas mais caras...irem sempre ao mais

barato”; quanto a Marco (9 anos) este refere-se à quantidade de compras “não comprar tantas coisas sem ser necessário” que os pais fazem. No entendimento de Sofia (9

anos) os adultos devem optar por escolher o mais acessível e mediante as necessidades, ”tentar ir aos supermercados mais baratos e comprarem só as coisas que fazem falta

em casa”. Para a Joana (9 anos) os esforços dos adultos também se devem refletir nas

escolhas para os seus filhos “Podem também comprar só as coisas necessárias para os

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No entendimento de Almeida (2009:108) “a família constitui simultaneamente, um efeito e um participante ativo deste processo de transformação global, um estratégico lugar de mudança de comportamentos e valores”.

Nesta subcategoria podemos constatar que as crianças criticam o consumo excessivo dos adultos em tempos de austeridade. Relativamente a isto, Castro (1998:45) refere que numa lógica virada para o consumo há uma diferenciação entre os consumidores e, segundo a autora, “consumir e o que consumir, adquire uma importância decisiva para definir ‘quem é quem’ no mundo social”. Conscientes das dificuldades, as crianças referem que se deve fazer esforços para diminuir as despesas familiares com uma boa gestão doméstica. A família, para Almeida (2009), constitui o porto de abrigo para as crianças e o lugar onde se transpõem os valores, no entanto, o que as crianças referem, neste ponto, é que se vêm a si mesmos como responsáveis e criticam algumas posições dos pais no que diz respeito à matéria orçamental. Para Júnior et al., (2011:5) atualmente a “criança é compreendida como um consumidor, um cliente”. Mas, para as crianças da nossa amostra esta não é a sua posição, uma vez que elas não se revêm no papel de consumidoras, o que nos faz pensar na mudança de paradigmas referentes ao consumo porque as crianças não se revêm na propagação dos

media, que através da publicidade tentam mobilizar para um consumo em massa, uma

vez que se debatem por criar mecanismos para a poupança intrafamiliar.

A manutenção dos vícios é, para a Sara (10 anos), um meio de gastar dinheiro desnecessariamente e que retira dinheiro ao orçamento familiar. Para tal, os pais podem poupar “não indo às discotecas [...] Não irem sempre aos cafés e não gastar sempre

dinheiro em tabacos”. A criança denuncia ter um forte sentido de responsabilidade e

demonstra-o quando apela à reprovação pelo comportamento dos adultos com vícios. Um outro aspeto verificado é a recompensa que os pais deveriam dar aos filhos que ajudam nas tarefas domésticas, como nos apresenta o Pedro (9 anos) “Os

adultos...podiam às vezes comprar algumas coisas, se os filhos ajudarem a trabalhar”.

A partilha do trabalho doméstico faz parte do dia-a-dia de Pedro (9 anos) e este entende que os pais deviam gratificá-lo como sinal da ajuda prestada. Além do mais, menciona que por vezes ao fim de semana “às vezes nós vamos a casa dos meus avós

ajudá-los no trabalho”. A participação dos filhos nas tarefas domésticas foi essencial

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“que se passasse a adotar uma perspetiva do trabalho doméstico enquanto «three-

cornered», ou seja, tendo em conta a participação da mulher e do homem, mas também

a dos filhos” (in Cunha, 2007:57).

A preocupação com os gastos é salientada por todos os inquiridos, no entanto, alguns manifestam sugestões de como e onde os pais e os adultos podem poupar. Uma destas situações é exposta por Sofia (9 anos) quando defende “Não andar muito de

carro, andar mais de bicicleta e a pé”; posição semelhante é a de Rodrigo (9 anos) para

quem o facto de os pais “andarem de bicicleta” constitui uma forma significativa de poupar. Ainda sobre a importância de poupar, Joana (9 anos) refere que uma das atitudes dos pais ou adultos perante a crise é que além de eles próprios pouparem “podem tentar também dar conselhos aos filhos para eles pouparem”. A este propósito utilizamos as palavras de Almeida (2003) quando a autora expõe dados de um estudo europeu, e que concretamente no que concerne à socialização da criança portuguesa, salienta os valores que os pais elogiam nas crianças “entre as qualidades que podem ser ensinadas em casa destacam-se aquelas que favorecem a conformidade com a norma dominante: ter boas maneiras, ser trabalhador, obediente e poupado” (in Almeida, 2009:111).

Os contributos destas crianças revêm-se nas palavras de Almeida (2009), nomeadamente no que concerne às práticas de poupança e não são apenas os adultos que têm esta aspiração, de criar nos filhos este espírito e esforço de poupança, eles próprios foram adquirindo este valor por via da realidade que os rodeia e da experimentação. No entanto, a família também detém um papel de destaque e uma representação consensual nos valores da população portuguesa, pelo que determina a autora.

Função da escola

Por último, apresentamos a terceira subcategoria, demonstrando que, para estas crianças, tal como é importante a sua participação e o papel dos adultos é de igual modo premente a função da escola na criação de estratégias e alternativas no combate à crise económica. Feita a análise aos resultados obtidos nesta categoria, pudemos averiguar que as crianças classificam a escola como um local onde se deveriam criar esforços para poupar. Assim, sendo um estabelecimento de ensino, um local de aprendizagem, e de

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formação de adultos, a escola deve ter uma atitude ativa na procura de dinâmicas que envolvam os pais e os alunos e de os sensibilizar para as práticas de diminuição de consumo, na gestão dos recursos, na reciclagem, entre outros.

Para as crianças inquiridas, os gastos extra ao estabelecido previamente pela escola vai surtir efeitos diferenciados, uma vez que nem todos têm as mesmas dificuldades, originando desigualdades. Como tal, se a escola puder apoiar, essa é a forma de contribuir para que os pais ou adultos evitem gastar mais recursos com as suas crianças. A título de exemplo, Marco (9 anos) refere que “Quando há um circo as

crianças podem não pedir aos pais para ir”. Esta é, de igual modo, a razão que Sofia (9

anos) encontra como forma de, tanto a escola como os pais poderem poupar “Não fazer

muitos passeios [...] Porque iríamos ter que pagar para andar de camioneta até ao local”.

Uma outra solução apresentada por uma criança, no que diz respeito à função da escola é segundo o Pedro (9 anos) “A baixar os preços para as crianças estarem aqui

(na escola)” e, além disso, para os que mais precisassem, os que mandam na escola

“Podiam dar umas coisas às pessoas [...] para ajudarmos os pais”. Consultando o artigo 7º dos Direitos do Aluno, podemos indagar o que nos informa a alínea “g) Beneficiar, no âmbito dos serviços de ação social escolar, de um sistema de apoios que lhes permita superar ou compensar as carências do tipo sociofamiliar, económico ou cultural que dificultem o acesso à escola ou o processo de ensino” (in Lei 51/2012:5104). O que pretendemos demonstrar com este parágrafo é que a escola deve apresentar soluções e meios eficazes na procura da estabilidade das crianças mais necessitadas.

A escola é um local onde as crianças passam grande parte do seu tempo e, como tal deve ser um espaço acolhedor e que reúna as melhores condições possíveis para as crianças, quer em áreas interiores bem como parques exteriores. A alternativa que Sara (10 anos) propunha à escola para evitar gastos era “Não pondo novas coisas aqui [...]

Tipo um parque novo e não mandar pintar” porque como a mesma informa “o que nós temos é fixe”. Esta reforma de requalificação das escolas veio beneficiar escolas, por

ventura, ainda, em estado considerável e negligenciando outras em estado mais emergente, segundo pudemos seguir pelos meios de comunicação social inerentes à matéria.

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A escola deve proporcionar aos alunos/crianças aquilo que Polakow (1993) chama de “um sentido de lugar” ou seja “um lugar onde as crianças e os jovens se sintam que são importantes, não instrumentalmente, porque estão presentes e fazem parte de um número determinado, mas existencialmente, porque se trata de uma paisagem em que elas têm significado e um sentido de pertença” (in Vasconcelos, 2007:112).

Mas, continuando com a análise, as crianças sinalizam, ainda, outras circunstâncias em que é possível poupar na escola, e apontando o que nos sugere a Ana (10 anos), “Por exemplo quando estamos na sala não gastar caneta ou giz sem ser

necessário. E a escola também pode comprar muitas coisas recicladas”; e sobretudo,

como nos lembra a Sofia (9 anos) poupar em coisas do dia-a-dia “ah na luz e na água e

isso”. É visível através dos discursos das crianças que a escola pode fazer mais e

melhor, de um modo geral, para obter resultados mais positivos na gestão das dinâmicas de poupança, uma vez que as crianças estão dispostas a alterar as suas rotinas para uma melhor sustentabilidade escolar.

As atividades extracurriculares (AEC’S) permitem que as crianças, enquanto alunos, frequentem as mais diversas atividades realizadas pela escola. E é na gestão de recursos destas atividades que uma das crianças nos relata que a escola podia poupar, uma vez que, como confidencia Joana (9 anos) “nós na música temos duas professoras

em vez de ter só uma e em Inglês é igual e em Educação Física é igual”. Mais uma vez

se evidencia o esforço a que as crianças estão dispostas para contribuírem para o ajuste de recursos face às dificuldades inerentes.

Em suma, relativamente ao papel dos adultos e à função da escola na procura de mecanismos de proteção e de sensibilização das crianças face à crise, Lahire (1995) defende que “a família e a escola constituem redes de interdependência estruturadas” e de espaços de promoção de cidadania (in Almeida, 2009:60). Além disso, Sarmento (2006) salienta que “a criança como unidade de consumo emerge e há que ajudá-la – na família e na escola – a ser consumidor esclarecido e crítico” (in Vasconcelos, 2007:113). Tendo em conta o grau de importância que o consumo exerce na vida das pessoas, constatamos que as crianças, de uma maneira geral, não são levadas pelo ímpeto do consumismo e reprovam a atitude dos adultos que exacerbadamente se deixam influenciar pelas estratégias de marketing e de publicidade para um consumo

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desenfreado. Elas são, por sua vez, exímias na procura de mecanismos com vista à poupança.

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