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MEDIDA DE SEGURANÇA, INIMPUTABILIDADE, PERICULOSIDADE

No século XIX, relata Sérgio Carrara (1998), “contribuindo para o bom funcionamento do sistema penal que se instalava nas sociedades liberais” (p.78), a Psiquiatria incorporou qualidades como crueldade, indisciplina e periculosidade à figura do louco, porém, evitando a não distinção entre a figura do louco e a do criminoso. Havia preocupação em deixar claro que eram as pessoas passíveis de punição e as que não eram – os loucos, os inimputáveis.

Data também do século XIX, o início da assistência psiquiátrica pública no Brasil. As pessoas pobres que enlouqueciam eram trancafiadas em asilos. Era no recolhimento em asilos que a sociedade da época via a única solução para os loucos que supostamente oferecessem risco e ameaça à segurança pública. A pressão popular pelo recolhimento dos “inoportunos” em instituições asilares conduziu à criação do primeiro hospício brasileiro, criado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro – local que abrigou todo tipo de “alienado”. (CORREIA et al., 2007). A “nova instituição” atendia convenientemente a preocupação da época de zelar pela segurança da sociedade. (CORREIA et al., 2007). E a Psiquiatria, como já vinha fazendo em outros países, se pôs no Brasil a serviço de

sanar tecnicamente a exclusão já atuada pela sociedade, que automaticamente ‘recusa’ aqueles que não se integram no jogo do sistema. Mas esta ação de exclusão não tem o mínimo caráter técnico- terapêutico, limitando-se esta à separação entre aquilo que é normal e aquilo que não o é, onde a ‘norma’ não é um conceito elástico e discutível, mas é algo de fixo e estreitamente ligado aos valores do

médico e da sociedade da qual é o representante. (BASAGLIA et al., 1994, p. 18) Os hospitais psiquiátricos destinados a receber os doentes mentais que cometessem delitos ou crimes surgiram no Brasil a partir da década de 20 (século XX) com a denominação de manicômio judiciário – modificada pela Reforma Penal de 1984, passando a se chamar

Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. (CORREIA et al., 2007). Segundo Carrara (1998), após campanha na imprensa pela construção de “uma prisão de caráter especial, prisão e manicômio ao mesmo tempo” (p.193), foi inaugurado, em cerimônia de aplausos e discursos, o primeiro manicômio judiciário brasileiro, em 1921, na então capital federal, Rio de Janeiro. Criou-se, a partir daí, uma nova categoria: o louco-criminoso, que deveria ser separado do louco comum internado no Hospício Dom Pedro II. (CORREIA et al., 2007).

No dossiê sobre o caso Pierre Rivière4, coordenado por Michel Foucault (2000), encontra-se a seguinte passagem: “[a] sociedade tem pois o direito de pedir, não a punição deste infeliz, já que sem liberdade moral ele não pode ter culpabilidade, mas seu isolamento por medida administrativa, como o único meio que a possa tranqüilizar sobre os atos ulteriores deste alienado.” (p.259). A partir dessa citação pode-se iniciar uma discussão de como a noção de inimputabilidade (“ele não pode ter culpabilidade”) e de periculosidade (“tranqüilizar sobre os atos ulteriores deste alienado”), assim como o expediente da medida de segurança (“isolamento por medida administrativa”) são mecanismos contraditórios, ambíguos e têm servido com grande eficiência nesse quase um século de manicômios judiciários no Brasil – “desde sempre, lugares de exclusão e violência.” (KOLKER;DELGADO, 2003).

Segundo Marchewka (2003), no início do século XX, como sanção a delitos cometidos, a legislação penal brasileira instituiu a pena e a medida de segurança. A medida de segurança é defendida, desde o século XIX, como “tratamento ético-social do indivíduo infrator, que tenha agido sem a necessária capacidade de discernimento do caráter ilícito de sua conduta” (p.99), enquanto a pena destina-se a punir o delito cometido. A medida de segurança é uma sanção que difere da pena, sendo destinada aos inimputáveis – os isentos de pena.

O louco, inimputável, além ser considerado incapaz de compreender seus atos e de responder por eles, também é considerado perigoso. A penalidade, através da medida de segurança passa a “ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer.” (FOUCAULT, 1996, p.85). Todas as possibilidades de expressão do considerado louco são reduzidas a um comportamento agressivo e violento, e não é lhe é ofertada a possibilidade de defesa, de elucidação de seu ato

4 No século XIX, Pierre Rivière matou sua mãe e seus dois irmãos, foi condenado e suicidou-se na prisão.

Michel Foucault coordenou a reunião das partes do processo e o desenvolvimento de estudos sobre os aspectos jurídicos e psiquiátricos do caso.

transgressor. (BARROS, 1994). Cabe destacar aqui iniciativas com o PAI-PJ, onde uma equipe multidisciplinar acompanha o louco infrator em todas as etapas do processo criminal e atua junto a uma rede de atenção, na comunidade, que promova sua reinserção social, e, é garantido a esse sujeito o direito de responder sobre seu ato delituoso.

Independentemente da gravidade do delito ou crime, o louco infrator é julgado por sua periculosidade – “seguindo a idéia de punir o criminoso e não o crime.” (PERES; NERY FILHO, 2002, p.342), e “condenado” à internação compulsória em HCTPs por tempo indeterminado, podendo ultrapassar, inclusive, os trinta anos – tempo máximo previsto aos imputáveis em casos de pena privativa de liberdade, chegando em certos casos, à “internação perpétua”. Não há na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) dispositivos que permitam a liberação do doente mental de forma progressiva, no modelo que ocorre com as penas privativas de liberdade. (MARCHEWKA, 2003). O conceito de periculosidade é que garante que tais violações e inconstitucionalidades ocorram.

Para o portador de transtorno que cometa qualquer delito, independente da gravidade, continua a ser preconizada a medida de segurança até que seja considerada cessada a sua periculosidade [...]. Absolvidos, mas considerados imprevisíveis e irresponsáveis, os inimputáveis continuam a ter como destino mais provável a internação perpétua. ( KOLKER; DELGADO, 2003, p.169).

As medidas de segurança, diferentemente das penas privativas de liberdade, não têm seu tempo máximo determinado, podendo durar indeterminadamente, enquanto o juiz, respaldado pela perícia médica e psicológica, não considerar o fim da periculosidade supostamente oferecida pelo indivíduo – louco e infrator. (MARCHEWKA, 2003). Ainda há, por parte de legisladores, doutrinadores, profissionais da saúde, e opinião pública, um entendimento de que “o objetivo da medida de segurança é o tratamento psiquiátrico do inimputável portador de doença mental e não o de reprimi-lo.” (p.100).

A realidade dos HCTPs em nada lembra “tratamento” ou promoção de saúde, “[n]a administração do HCTP, o Estado incorpora a demanda punitivo-segregacionista produzida socialmente, voltando-se para os internos com uma estrutura alicerçada na violência, amparada pelo medo, controladora e reprodutora de desconfiança.” (CORREIA et al., 2007, p. 2000). Após todas as discussões fomentadas pelo movimento da Reforma Psiquiátrica e todas as transformações técnico-políticas observadas na saúde mental nos últimos vinte anos no Brasil, conceitos como periculosidade e inimputabilidade precisam ser urgentemente revistos, por estarem ultrapassados e ferirem o princípio constitucional de “Todos são iguais perante a lei”. (BRASIL, 1988, p.15).

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