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1 POESIA E TECNOLOGIA NOS TRÓPICOS

1.4 Meios, não metades

O estudo dos ambientes tecnológicos e de suas relações com o fazer poético aborda não apenas os interesses temáticos, representacionais, incorporados por toda a arte moderna, tanto programaticamente, quanto casualmente, mas evidenciam as condições de produção e circulação desses objetos poéticos. As condições tecnológicas surgidas com o advento da eletricidade e de seus desdobramentos informacionais promovem a realização de textualidades antes inimagináveis, reconfiguram nosso imaginário e por isso merecem atenção.

No entanto, não pretendemos circunscrever a eclosão de textualidades, de suas formas, padrões, ao período moderno, ou relacioná-la à dinâmica da contingência imposta pelos princípios do consumo. A história desses processos, de suas intensidades, codificações, e contínua metamorfose, constitui uma rede complexa, cujo produto vemos hoje mais como resultado do acúmulo de possibilidades do que como progresso de uma linha evolutiva. De acordo com Antonio Risério,

De uma perspectiva paleontológica, podemos dizer que, desde o momento em que o desenvolvimento do cérebro atingiu uma configuração organizacional que o capacitou a construir mensagens verbais (e a capacidade de simbolização é detectável já no período da cultura neandertalense), é possível pensar em criação textual. (1998, p. 45)

Com isso, a partir da compreensão de texto como resultado de um processo organizacional, codificado, em que se promove a simbolização do vivido, não nos referimos mais às condições produtivas do sistema gráfico alfabético e de seus suportes materiais. Antes mesmo do desenvolvimento da tecnologia de registro da língua (ideográfico ou alfabético ou sonoro) as textualidades ocupam lugar central na organização da sociedade, que constituem seus repertórios culturais e processos comunicativos através delas.

A elaboração de textos, assim, é um processo condicionado às especificidades de seu suporte. Ao expandir os limites do conceito de texto para outras manifestações que não se valem exclusivamente do papel e de seus simulacros (como, por exemplo, o binômio computador-monitor), nos temos diante de uma multiplicidade de fazeres que exigem

aproximações mais detalhadas. No caso do poema, objeto verbal que durante o período moderno se caracterizou de modo hegemônico por sua realização física no papel, teremos uma ampliação conceitual drástica a fim de transgredir tais imposições genéricas que acabam por escamotear manifestações complexas que são objeto dessa dissertação.

De acordo com Antonio Risério (1998), ecoando as afirmações de Marshall McLuhan (1972): “Um poema existe quando se materializa num medium. E cada 'meio', além de oferecer um rol de recursos, abre um leque de exigências” ( p. 47).

Tais exigências estabelecem o campo de criação do texto. Assim como o papel e a caneta criaram disposições de gesto e procedimentos de composição, as máquinas datilográficas e o sistema QWERTY (sistema de organização das teclas, inicialmente, das máquinas datilográficas, que se ampliou aos computadores devido ao seu caráter ergonômico) também criaram novos modelos de produção e recepção de textos.

Uma das tecnologias mais presentes em nosso cotidiano e que ao mesmo tempo inventou a história da civilização ocidental, é a escrita. Baseada no sistema gráfico alfabético, a escrita exige processos que lhe são especialmente necessários, e que à época de sua fixação implicou uma transformação muito intensa. Esses mesmos processos se darão com todas as novas textualidades a que estamos submetidos por meio dos agenciamentos da publicidade e das mídias massivas, e com os desenvolvimentos de novas possibilidades advindas do histeria de inovação do mercado.

Mas a escrita também assume para si um papel que não havia se fixado em nenhuma tecnologia: o de memória objetiva. Segundo Pierre Lévy,

Seja nas mentes, através de processos mnemotécnicos, no bronze ou na argila pela arte do ferreiro e do oleiro, seja sobre o papiro do escriba ou o pergaminho do copista, as inscrições de todos os tipos – e em primeiro lugar a própria escrita – desempenham o papel de travas de irrerversibilidade. (1993, p. 76)

Atuando como uma espécie de memória material, os produtos das inscrições amplificam e situam objetos em novos planos. Recorrer ao inscrito implica a possibilidade de repetição do objeto, de sua desapropriação do espaço-tempo específico de sua ocorrência, de estabelecer sua contiguidade com o tempo da leitura.

A escrita se organiza como sistema e reorganiza o imaginário humano. À imagem do tempo que se sucede e que a tudo devora, retrocedendo sempre ao estado de esquecimento, de deterioração, opõe-se a imagem da fixação e da posse por meio da técnica. Assim, o relógio se configura não apenas como uma projeção racionalista sobre a transitoriedade, medindo-a, impondo sua condição de mensurável, mas também como uma alegoria do tempo enquanto propriedade, enquanto posse do homem. O relógio escreve o tempo, continuamente, simulando-o; é a sua codificação.

Há, portanto, tantas escritas quanto tecnologias. O desenvolvimento de um novo plano de mediação acarreta o código de sua operabilidade. O papiro e a tinta constituem uma espécie de construto arqueológico das novas textualidades advindas do progresso informacional. No entanto, o princípio de linearidade que informam as mídias fundadas no sistema gráfico das línguas naturais, já não se estabelecem como hegemônicos.

A tecnologia elétrica forjou novas textualidades que não se fundam em simulacros do construto “papiro e tinta”. O cinema e o som, por exemplo, reinventam a possibilidade do escrever. Podemos estabelecer a analogia com as escritas tradicionais, que buscam a representação de elementos empíricos e usuais. No entanto, o cinema e o som (rádio, álbum, etc.) são objetos criados a partir de uma relação icônica, e não representacional, como os sistemas gráficos das línguas ocidentais. Essa escrita icônica implica uma nova lógica.

A textura sonora, enquanto algo operável, seus elementos espaciais e temporais, e sua aplicação massiva através da indústria do entretenimento, contribuem para a formação de uma imagem complexa que povoa nosso cotidiano, e para a história ainda muito recente da audição mediada por aparelhos de registro. A sintaxe do som extrapola às condicionantes históricas do imaginário escritural, linear e decomponível; possui dinâmicas que não se deixam fixar em analogias com o papel, com a inscrição rupestre, ou qualquer outra forma de registro que tenha na visão seu sentido mais proeminente.

Assim, com a consolidação do que Marshall McLuhan denominou Revolução Elétrica, iniciada em finais do século XIX, que reconfigura o paradigma produtivo, da repetição mecânica ao processamento informacional, “vivemos hoje uma redistribuição da configuração do saber que se havia estabilizado no século XVII com a generalização da impressão” (LÉVY, 1993, p. 11).