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Capítulo 2: Narrativa e memória

2.6. Memória e comunidade

Entre as duas perspectivas sobre a memória apresentadas acima – a memória como conservação ou como trabalho de recontrução do passado –, é a segunda que mais interessa para a reflexão sobre o objeto desta dissertação. Para Halbwachs, nome central na formulação dessa concepção, a função primordial da memória coletiva é criar e manter os laços de coesão social que unem sujeitos e grupos em uma comunidade. E a forma mais estável e rígida de memória coletiva, seria, para ele, a memória nacional. Comentando a obra de Halbwachs, Michael Pollak afirma que o autor

(...) longe de ver nessa memória coletiva uma imposição, uma forma específica de dominação ou violência, acentua as funções positivas desempenhadas pela memória comum, a saber, de reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza, “comunidade afetiva”. Na tradição européia do século XIX, em Halbwachs, inclusive, a nação é a forma mais acabada de um grupo, e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva. (POLLAK, 1989, p.3)

Concordando com Halbwachs, Wander Melo Miranda (2010) também considera que a nação não pode existir sem passado e que a memória da nação é a comunhão de

interesses comuns, a partilha do que deve ser esquecido ou lembrado. Por isso a memória nacional é construída num processo de negociação entre diversas memórias, que promoverá a unidade sempre renovada da nação.

Contudo, Miranda observa que a memória da sociedade civil e a memória do Estado-nação estão sempre em conflito, porque a última é sempre impositiva. Como alerta Halbwachs, para manter a estabilidade e a coesão social, a memória nacional delimita fronteiras. Portanto, os estudiosos veem a memória coletiva como uma operação discursiva que necessita da negociação para se construir. Desse modo, a memória coletiva é sempre o resultado de um processo de negociação, pois a memória individual tem que ser confirmada pela coletividade, seja na comunidade ou na nação, mesmo que não tenha o mesmo grau de rigidez e estabilidade.

Michael Pollak (1989) segue na mesma linha quando busca exemplificar a memória coletiva com o Holocausto e outros conflitos vividos pela sociedade europeia nos últimos séculos. Enquanto Halbwachs enfatiza a duração e a estabilidade da memória nacional, Pollak se interessa mais pelos momentos de renegociação da memória coletiva provocados pela emergência de memórias subterrâneas. O objeto de maior interesse contemporâneo da História Oral são as memórias subterrâneas, que são parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, opondo-se à memória oficial, que é sempre coercitiva e autoritária. Essas memórias guardam os ressentimentos silenciados da dominação e do sofrimento, que foram narrados de geração para geração oralmente e em espaços grupais mais restritos, como o espaço familiar. Em determinados momentos, quando a conjuntura política e social é favorável, essas memórias subterrâneas podem vir à tona, provocando uma renegociação e reorganização das diferentes formas de memória coletiva, inclusive a memória nacional. Paul Ricoeur (2007) observa que a mobilização da memória a serviço da reivindicação da identidade se depara com dois pontos extremos: o excesso de memória, em alguns lugares, e a insuficiência em outros. No primeiro caso, temos um acúmulo de informações sobre um determinado evento do passado que, por ser excessivo, acaba funcionado como um obstáculo à seleção e à articulação necessárias ao discurso memorialístico. No segundo, os eventos do passado não encontram, na atualidade, quem seja capaz de lembrá-los. Assim, o filósofo suscita uma reflexão sobre a fragilidade da memória, que pode ser manipulada, dificultando os processos de construção e reconhecimento de identidades.

Vemos, então, que a construção da memória coletiva está intimamente ligada à política e à questão do poder. Para o historiador Jacques Le Goff (2003), o discurso justificativo do poder é constituído a partir da ideologia do dominador, que manipula as narrativas da memória coletiva, auxiliado por um narrador com potencial de persuasão, que transforma o relato num instrumento de manobra de massa. Nesse processo de manipulação, temas como a religiosidade e os heróis comunitários são transformados em instrumentos de dominação nas narrativas dos governantes. Isso justifica os relatos enunciados pelo opressor e também promove a glória de uns e a humilhação de outros. De acordo com o historiador, essas distorções do passado sustentam o discurso ideológico do poder e ilustram o processo de imposição da memória, pela forma como esta é tecida, apreendida, celebrada e exposta publicamente, para ser autorizada e reconhecida com naturalidade como a história oficial.

Também Halbwachs, Bosi e Nora observam que a memória oficial é constituída a partir do discurso selecionado ideologicamente de acordo com o grupo ou com o indivíduo. Esse discurso, tembém de acordo com os teóricos citados, é construído pelo dominador, responsável pela propagação e manutenção da narrativa histórica. Por outro lado, o dominado tem sua narrativa suprimida e negada ao longo da história, como evidencia Michael Pollak, quando fala da importância do indizível e do não dito na sobrevivência das memórias subterrâneas:

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa (...) uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. (POLLAK, 1989, p.8)

Assim, os teóricos reconhecem a necessidade de buscar as vozes subalternas enquanto possibilidade de reconstrução da memória histórica. A memória coletiva é um espaço de luta e questionamento. Enquanto prática social, a memória busca guardar registros materiais dos acontecimentos, criando arquivos que guardam esses registros de forma escrita, em audio ou audiovisual. A partir desse material, é possível também lutar contra o esquecimento das memórias subalternas e colocar em foco o sentimento de acúmulo de dívidas passadas, cobradas ou não, de acordo com o processo histórico de cada sociedade.

As memórias guardadas ao longo do tempo tomam novas dimensões e ganham novas versões. Assim, elas se multiplicam e se expandem, de acordo com as

oportunidades históricas. Como um discurso que tem origem na coletividade, o discurso memorialistico é eminentemente polifônico, trazendo dentro de si a multiplicidade das vozes que compõem os grupos ao qual o memorialista pertenceu:

A narrativa das Memórias se multiplica em mil e uma histórias diferentes, que podem ter base histórica real, mas não se concatenam segundo uma ordem propriamente histórica ou conforme as conexões necessárias à interpretação historiográfica. Na verdade, se encadeiam e se justapõem porque são galhos ou ramificações de um mesmo tronco, de uma árvore comum, que elas recompõem infindavelmente, com semelhanças e dessemelhanças entre si, parecendo-se ou não a fatos históricos universais, como se reproduzissem, num diagrama, a imagem natural da formação familiar. A prosa das Memórias imita literalmente uma metáfora, um ícone das relações de família – a árvore genealógica –, e tornando-se ela própria um diagrama por assim dizer arbóreo da formação familiar, sempre diferenciado, imita ainda, oblíqua e analogicamente, o movimento mesmo da natureza em seu processo de perene diferenciação. (ARRIGUCCI, 1987, p.96, itálicos no original)

Com essa metáfora da árvore, Arrigucci Jr. capta o caráter múltiplo e polifônico do discurso da memória, que está em constante processo de diferenciação e para o qual sempre contribui alguma dose de imaginação. E isso é fundamental para a sua longevidade, pois através dele as lembranças vão ganhando novas versões e adaptações, num trabalho de criação que nunca se interrompe, nem perde sua ligação com o presente.

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