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Memória e identidade: questões específicas

2 MEMÓRIA E IDENTIDADE: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS

2.7 Memória e identidade: questões específicas

No momento anterior, apresentamos um quadro geral sobre o que entendemos serem as considerações teóricas mais importantes dentro do campo de memória e identidade. No entanto, achamos necessário pontuar alguns outros tópicos, de cunho mais teórico-epistemológico, dentro dessa discussão. Aqui será utilizado basicamente o pensamento de Joel Candau, visando o maior esclarecimento de questões já esboçadas.

Em toda essa problemática se sobressai a recorrência à questão indivíduo/coletividade. Até este momento caminhamos até chegar à admissão de que os processos identitários e memoriais se dão pelas e nas relações sociais; nas relações dos indivíduos entre si e destes com o seu meio material e simbólico. Ao mesmo tempo, são essas mesmas relações que produzem e mantém estas realidades.

Nestes recortes anteriores, pudemos perceber um debate que se aproxima da epistemologia, aqui compreendida como a análise do valor de verdade dos conceitos e das afirmações científicas. Penetrando neste debate, Candau (2005, 2014) propõe uma caracterização para a memória, onde, para esta proposição, destaca os diferentes níveis de relação entre a memória individual e a coletiva.

Inicialmente sugere a memória no seu nível de protomemória. Ao enunciá-la, o autor admite o seu parentesco com as outras proposições semelhantes - a “memória- hábito” de Bergson; a “inteligência profunda, de Jousse, ou a “memória social incorporada”, de Connerton. Esta é uma memória exercida pelo sujeito sem reflexão, atuando “na penumbra”. São “costumes introjetados no espírito sem que nele se pense” ou sem que disso se duvide” (CANDAU, 2014, p. 22).

É com o pensamento de Bourdieu, porém, que a ideia ganha maior semelhança: são as aprendizagens primeiras, básicas, recebidas pelo indivíduo, incrustadas no nível corporal e traduzidas nos gestos, no andar, na linguagem. Assim, “o passado não é representado e age pelo corpo” (Candau, 2014, p. 22). Não é representado, mas

está presente, agindo naquilo que dispôs precocemente. Na protomemória é onde mais se pode perceber a atualidade do passado. Não sendo a memória do passado, visto atuar sem que dela se tome consciência; uma memória alienada. O fenômeno denominado por Bordieu de habitus depende da protomemória.

Já a memória propriamente dita (ou de alto nível) seria a memória mais comumente reconhecida como “memória”, nas suas duas formas de acontecer: o reconhecimento - ou evocação voluntária de algo - e a recordação - a lembrança que nos assalta de lembranças autobiográficas ou memorias que nos vem de saberes, sensações, sentimentos ou crenças.

Finalmente, a metamemória, que se refere ao processo consciente e deliberado de tomar a própria memória como objeto. É a representação que cada indivíduo ou cada grupo tem da sua própria memória, o que diz dela: suas qualidades, extensão e profundidade, de quais itens se compõe, onde e em que ela é falha ou lacunar, etc. Vista assim, é a dimensão da memória que se confunde com a própria identidade reivindicada ostensivamente pela pessoa ou grupo que dela fala. Quando se exerce está se construindo também a identidade.

A consideração dessa taxinomia da memória parece adequada à compreensão dos processos realidade mnemônica mas, para Candau, de fato ela só pode ser aplicada quando se refere ao indivíduo. Os três aspectos podem ser verificados no nível individual. Sua aplicação para fenômenos coletivos, no entanto, se torna sem possibilidade de aplicação e perde o valor científico.

Falar em uma protomemória coletiva carece de sentido, pois se o indivíduo tem uma maneira singular de andar ou falar, ou gesticular, mesmo que estes sejam encontrados numa grande proporção de outros indivíduos daquele grupo, isso não faz este grupo dotado de uma protomemória coletiva. A protomemória é uma faculdade e apenas indivíduos a possuem.

Discussão semelhante é encontrada na psicanálise, quando alguns dos seus teóricos reivindicam a legitimidade de seu admitir um inconsciente grupal, o que justificaria certas modalidades terapêuticas baseadas no legado freudiano como a análise do inconsciente daquele grupo em atendimento. Esta postura conceitual- prática é contestada por outros autores (Costa, 1989), num raciocínio semelhante ao de Candau: quem tem inconsciente são indivíduos e não o grupo. Assim como não

algo comum a todos os grupos, uma grupalidade, não visível, que faz de todo grupo ser grupo, assim também, não haveria um inconsciente acima deste inconsciente pessoal e intransferível. Ou seja:

Quanto à sociedade, se por isso se entende um termo genérico, aplicável ao conjunto de fatos sociais, então ela é visível e nada temos contra a ideia. Se, no entanto por sociedade se quer designar uma substância invisível, a sociedade das sociedades, então sustentamos que isso é um mito, o qual nem se vê nem se pode deduzir coerentemente do que é visível e audível (Costa, 1989, p. 49).

Ou seja, nesta dimensão, a protomemória não existe como faculdade.

Da mesma forma, igualmente não se sustenta a proposição de que se encontre a memória propriamente dita em nível coletivo. “Um grupo não se recorda de acordo com uma modalidade culturalmente determinada e socialmente organizada”. Diz Candau (2014), “apenas uma proporção maior ou menor de membros deste grupo é capaz disso”, (p. 24).

A expressão “memória coletiva” não passaria de uma representação, de uma metamemória, uma afirmação que os membros do grupo podem fazem acerca de uma suposta memória comum a todos, que comumente serve como suporte para que se fale de modo positivo de uma “identidade coletiva” de uma nação ou comunidade. Mas, qual o grau de realidade desta afirmação, quase sempre usada como conceito? Esta é a pergunta que não quer calar, mas que muitas vezes é silenciada.

Na discussão sobre a identidade, o embaraço não é menor. Se podemos falar de um indivíduo como um estado, como uma representação ou como um conceito, e todas acepções seriam válidas, o mesmo não se poderia dizer quando transpostas ao plano coletivo, pois parte da simples constatação de que duas pessoas nunca são idênticas. Portanto, quando se usa o termo identidade coletiva, baseado em semelhança, está se lançando mão de uma representação. Sim, pode ser percebido um núcleo protomemorial comum, mas é abusivo tomar isso para se referir a um pretenso estado comum ao grupo. É, ainda, reducionista, pois há uma sofisticação maior no jogo memorial e identitário do que os baseados na protomemória. De fato, como já mostramos acima, as identidades são situadas:

[...] são produzidas e se modificam no quadro das relações, reações e interações sóciossituacionais – situações, contextos circunstâncias – de

onde emergem os sentimentos de pertencimento, de visões de mundo identitárias ou étnicas, e não apenas por serem detentores de traços culturais (CANDAU, 2014, p. 27).

Assim, o “nós/eles” é escorregadio, cambiável. São posições situacionais da identidade, que impedem de reifica-la, de reduzi-la a uma essência ou substância comum.

Só as metamemórias podem ter, para Candau, valor epistemológico pleno, por se prestar ao compartilhamento, e isso por ser o conjunto das representações da memória, no grupo considerado. O ganho de tais distinções é significativo, pois

Candau aperfeiçoa o conceito de memória coletiva ao reduzir a possibilidade de confusão entre memórias individuais e coletivas, angústia que pode eventualmente surgir para alguns pesquisadores. Ele soluciona o problema propondo que as duas primeiras memórias, a protomemória e a memória propriamente dita, constituem faculdades individuais, logo, não podem ser compartilhadas. Para ele, só a terceira memória, a metamemória, aquela que se refere à memória coletiva, pode ser compartilhada, pois é um conjunto de representações da memória (MATHEUS, 2011, p. 304).

Com isso há que se admitir a parcimônia com que se deve fazer uso de retóricas holísticas, não tomando por conceitos o que são apenas inferências (memória ou identidades coletivas, social, familiar; a comunidade; a sociedade; a identidade cultural; a classe operária etc.). Tomando este cuidado, há que se admitir que o seu uso seja necessário, “se não se quer impedir a possibilidade de qualquer teoria” (CANDAU, 2014, p. 29). Afinal, elas podem nos levar encontrar “alguma coisa”, conclui (p.29). O cerne da questão está no grau de pertinência que pode ser atribuído a essas retóricas holísticas para encontrar sentidos. A rigor, nenhuma dessas retóricas chegaria a encontrar:

[...] conjuntos supostamente estáveis, duráveis e homogêneos, conjuntos tidos como outra coisa que simples soma das partes e tidos como agregadores de elementos considerados, por natureza ou convenção, como isomorfos (CANDAU, 2014, p. 29, grifo do autor).

O uso pode ser simplesmente desprezado (“os franceses”, “os brasileiros”), quando ganha ares de caricatura. No entanto, há de se convir que os indivíduos não criam suas memórias e identidades arbitrariamente. Já vimos sobejamente que lançam mão de referências comuns a que foram ou são expostos, daí retirando o material sobre o qual se apoiará. Partindo deste marco zero, submeterá este material a si próprio, sofrendo já nesta tarefa um maior ou menor constrangimento (ou

“enquadramento”, “manipulação”, “coerção” - as linguagens apontam na mesma direção).

Os efeitos deste cotejamento podem gerar um produto final mais próximo ou mais distante do conteúdo das comunicações a ele fornecido. Mesmo que estas comunicações tenham sido precisas e com forte componente de coerção, não se pode nunca garantir que o coletivo venha a apresentar uma homogeneidade na sua recepção, por dinâmicas já sugeridas acima.

Para chegar a uma sistematização da avaliação do grau de pertinência das retóricas holísticas, Candau distingue entre representações factuais e representações

semânticas. A primeira, diz ele, “são representações relativas à existência de certos

fatos” e a última “são representações relativas ao sentido atribuído a esses mesmos fatos” (CANDAU, 2014, p.39). Assim, quando uma retórica holística se refere à memória factual, pode-se atribuir a ela um alto grau de pertinência. Porém se o seu uso é relativo à memória semântica, esta pertinência é fraca ou mesmo nula. No Brasil, a memória factual sobre o carnaval é extremamente elevada. Mas não se pode falar de uma memória coletiva, pois há que se observar os sentidos dados a esta comemoração. Dito de outro modo, só se tem elevado grau de pertinência quando em torno do fato compartilhado se agregam a ele as mesmas crenças. Daí as comunidades religiosas estarem entre as que têm um compartilhamento semântico mais alto entre os seus membros sobre os fatos evocados.

Outro dado levado em conta pelo autor é quanto ao tamanho do grupo pesquisado e do seu fechamento ou abertura ao exterior: quanto menor for o grupo e quanto menores as chances de se colocar em dúvida os sentidos atribuídos ao fato evocado, maior poderão vir a serem encontrados os compartilhamentos factuais e semânticos, aumentando o grau de pertinência da afirmação de que ali de fato se encontra um fenômeno “coletivo”.

Finalmente, um grupo caminha na direção de uma memória ou identidade fortes, quando nela se encontram espaços de “escuta compartilhada” (DETIENNE, 1981, apudCANDAU, 2014, p. 46). Esses espaços, por sua vez, pressupõem um conhecimento e uma reciprocidade intensos entre os seus membros, como na formação de uma memória e de uma identidade familiar. As comemorações e

lugares de memória comuns favorecem a formação de referências mais próximas: ao “se abrirem umas às outras” (CANDAU, 2014, p. 46), visando um interesse comum, seus membros constroem e reforçam deliberadamente “por triagens, acréscimos e eliminações feitas sobre as heranças” (CANDAU, 2014, p. 46), o que deve ser mantido, o que bom e justo que se mantenha como representação de si.

A evocação implica em uma comunhão com o outro e, no curso deste processo, a lembrança individual, sem cessar, submetida às transformações e reformulações, perde seu caráter isolado, independente e individual (CANDAU, 2014, p. 49).

Este processo difere do que pensava Halbwachs, que entendia as memórias individuais como “fragmentos” da memória coletiva, pois, no caminho inverso, esta memória coletiva já é, ela mesma, fruto das interações entre indivíduos ou grupos:

Ao final, a memória coletiva segue as leis das memórias individuais que permanentemente, mais ou menos influenciada pelos marcos de pensamento e experiência da sociedade global, se reúnem e se dividem, se encontram e se distanciam, múltiplas combinações que formam, assim, configurações memoriais mais ou menos estáveis e homogêneas (CANDAU, 2014, p. 49).

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