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A memória entre o passado e o presente

1. A MEMÓRIA É UM DIAMANTE BRUTO

1.2. A memória entre o passado e o presente

No sol fervilhante das minas de Manica, o encarregado-geral ainda sonha com a princesa russa. Fortin vai quebrar as barreiras do presente com o passado para entrar em contato com aqueles que já se eternizaram no mundo dos mortos. O personagem molda a própria memória, de tal maneira, e tão forte, a construir um pequeno barco que só a ele cabe remar. Sobre um rio de sonhos, o remador, lentamente, chega à outra margem onde está a mulher amada. As lembranças que alimentam o passado de Fortin também salvam o seu presente. Há um verdadeiro sentido na sua vida em meio aos sentimentos de paixão, presos no corpo e na alma. Nem ele saberia explicar se é amor.

O encarregado geral evoca as lembranças das minas de Manica através de sua paixão pela princesa russa, um sentimento antigo que insiste em continuar vivo na memória. Um sentimento tão forte que é capaz de arrastá-lo de volta para os caminhos da velha mina, ajoelhar-se diante de um padre e se confessar. Há um crescente desejo de viver o passado no presente e, como um arquiteto da vida e do tempo, agasalhar o destino outra vez. Desejo que vai esculpindo fragmentos do passado, torneando lembranças, reminiscências profundas, agarrando-se à teia da memória. Preso as suas recordações, ele constrói para si imagens capaz de levá-lo de volta ao passado. A voz que confessa “pecados de muito tempo” traz consigo doces lembranças de uma paixão. Mas Fortin, não tem esperanças nesse amor. A coragem nos sentimentos multicoloridos é coisa dos incautos em um mundo preto e branco. Sem saber, nas ruínas de uma mina, o negro coxo vive um platonismo disfarçado. Sua única alegria, diz ele, são as recordações dessa mina de ouro que já não existe mais. Um mundo que faleceu junto com a mulher amada. Quem se propõe ao amor também escolhe caminho de mão única, e está disposto a suportar uma solidão sem provável recompensa.

Fortin não escolheu sofrer por amor, mas escolheu viver e sentir, ser alguém. Em meio ao seu tormento, as lembranças de Nádia são como bálsamos na sua pobre vida. Sofrer por um amor perdido ou, como ele mesmo diz: “viúvo de mulher que não tive.” (PR. p. 86). É resignificar a vida e ter coragem para enfrentar até mesmo a morte.

Todas as lembranças estão carregadas de sentimento de culpa16 e precisam

ser contadas para alívio da alma. O escritor trata o conflito interior de maneira transcendental e utópica, buscando uma explicação no “mito do andrógeno17”. Fortin

se vê miscigenado pelas pegadas de homem e mulher que se completam harmoniosamente:

Aquela mina já fechou, faleceu junto com a senhora. Eu caminho-me lá sozinho. Depois sento num velho tronco e olho para trás, para esses caminhos onde pisei. E sabe o que vejo então? Vejo duas pegadas, diferentes, mas ambas saídas do mesmo corpo. Uma de pé grande, pé masculino. Outras são marcas de pé pequeno, de mulher. Esse é o pé da princesa, dessa que caminha ao meu lado. São pegadas dela, padre. (PR. p. 87)

Ao olhar para trás, vê o resultado daquilo que foi feito, aprende com os erros, melhora aquilo que ficou defeituoso, aprimora os próprios conceitos de vida. Tudo isso faz parte do espírito humano. Mas superar a solidão da morte, naquele momento, é, sobretudo, tarefa muito difícil, mesmo para alguém não assimilado. Assim, o encarregado geral prefere as curvas sinuosas das lembranças. Nada melhor do que a certeza de que alguém estará ali para apoiá-lo em uma nova jornada, para tirar-lhe os espinhos do caminho e aliviar a sua dor. Tão perto dos sonhos, Fortin era capaz de sentir o gosto da princesa: “Porque enquanto estou ali, frente à campa, só lembro o sabor do corpo dela” (PR, p. 86). Essa vida que ficou no passado é o que hoje dá significado para ele no presente. É a certeza que há alguém, mesmo no além, que vai acompanhá-lo pela eternidade, alguém que um dia já esteve ao seu lado e compreendeu a sua angústia. É com este pensamento que Fortin inicia a sua história no confessionário. Conta, não somente para ser ouvido, mas principalmente para ganhar forças, para continuar a vida sem a mulher que um dia lhe despertou um sentimento, verdadeiramente digno – o amor.

O encarregado-geral nos relata a história de uma época (1946) em que a exploração do ouro na vila de Manica estava a pleno vapor. A cidade convivia com uma riqueza fabulosa de um lado e, do outro, a pobreza extrema. O ouro não trouxe os benefícios esperados ou grandes riquezas para a cidade e nem conforto para seu povo, o sonho se dissipara mesmo antes de começar. Ao que se sabe, no próprio

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O sentimento de culpa será um tema tratado no subcapítulo (4.2.1.) “Fortin: uma perna de santo e outra de diabo”.

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conto, as minas asseguraram, cada vez mais, as diferenças sociais e a escravidão, com um grande número de mortos soterrados por toneladas de rochas:

Chegamos à mina, fomos dados as pás e começamos a cavar. Os tectos da mina tinham caído mais outra vez. Debaixo daquela terra que pisávamos estavam homens, alguns já muito mortos, outros a despedirem da vida. As pás subiam e desciam nervosas. (PR. p. 79) Esta citação também nos mostra as relações da memória de Fortin com a história social de seu povo. Moçamique foi explorado por quem sonhou com as riquezas do ouro desde o ano de 150718. A astúcia do escritor move o conto para os

tempos da roedura desenfreada do colonialismo.

Em dado momento Fortin nos relata um desabamento que ocorreu nas minas de Manica onde vários trabalhadores morrem soterrados, mostrando uma completa falta de cuidado com a vida humana desses trabalhadores. Uma situação que se arrasta por séculos e é intensificada quando Moçambique precisou escoar suas riquezas de ouro e marfim. Essas memórias também nos levam a refletir sobre os custos e benefícios que a exploração do ouro vem concedendo ao território moçambicano nos dias de hoje, o que torna o conto ainda mais atual.

As lembranças da corrida pelo ouro e suas trágicas desilusões retratadas na família que veio de muito longe, da Rússia, Iúri e Nádia, onde Iúri faz o papel do marido trabalhador que veio fazer fortunas, mas está sempre ausente e longe da esposa. Nádia é a esposa que vive na solidão de seu castelo, solidão tão intensa que a faz visitar a si mesma para se encontrar com a própria alma. Uma mulher inconformada com o sofrimento alheio que quis ver de perto as minas, as casas dos operários e falar com eles, sentir o sofrimento deles nem que para isso fosse preciso quebrar as regras da ordem estabelecida. Ser amiga de um negro, tirar-lhe um espinho do pé, frequentar sua cubata, fazer passeios em sua companhia, confiar-lhe segredos. Preocupava-se com a morte de tantas pessoas nas minas, sentia-se também responsável por tudo aquilo, motivo de muita angústia e dor. As lembranças da sua distante terra, guardadas em um relógio de vidro da família, ocupava Nádia durante os seus longos dias. Ela passava oras limpando aquele relógio, confinada em uma pequena sala: “Se esse relógio partisse, Fortin, era a minha vida que toda se partia” (PR. p. 75), e foi assim mesmo que um dia a princesa quebrara o relógio e

18 Data do processo de reconstrução de uma Feitoria-fortaleza em Moçambique por estar na rota da

colocara fim a sua vida. Fugir para dentro de si foi seu único refúgio. O sofrimento, o abandono, tudo encontra seu fim na morte, a única forma da verdadeira libertação para um espírito atormentado.

A mina ruiu e o russo voltou para casa sem o ouro e sem a esposa. A tragédia nos faz pensar nos valores humanos, no que deixamos de viver ao irmos a busca de um sonho, quando tudo que queremos pode estar bem ao nosso lado. Iúri não soube valorizar a mulher amada, não teve tempo de amá-la e também não arrancou fortunas como imaginava.

Fortin é o resultado vivo dessa memória, desse intricado processo de exploração do homem pelo homem, com forte grau de perda, desalento e miséria para ele e para a vila de Manica. Pois o processo de colonização, à medida que se intensificava e se interiorizava, tratava de controlar todas as forças produtivas e destruía a cultura local. A medida era uma tentativa de anular todas as memórias da tradição cultural do africano, implantando a cultura do colonizador. Neste avanço devastador da aculturação, as memórias servem, consideravelmente, para mostrar quão importante foi esta relação de assimilação que fragmentou a cultura identitária desse povo, uma clara tentativa de desenraizá-lo da sua cultura:

Associada sempre ao trabalho como valor “civilizacional” e ao longo prazo que o método envolve – permitindo a prorrogação das formas de prestação laboral compulsiva para os indígenas –, a “assimilação tendencial” se entrelaça na economia; ela cria, em decorrência da sua “função civilizadora”, a categoria social dos assimilados, procurando, sob a ameaça da reversibilidade da sua situação jurídica, cooptar psicológica e politicamente elementos das elites africanas; ela desqualifica oficialmente as culturas locais, incluindo os chefes que servem o sistema, e busca desenraizar dos seus fundamentos culturais as elites cooptadas; a política de assimilação, enfim, corporiza o sentido de “Destino” que anima a alma lusíada, visando aplacar, no plano nacional, consciências inquietas e inserir- se, no paradigma da “missão civilizadora.” (CABAÇO, 2009, p.114).

Fortin é o personagem narrador que vivencia todo esse processo angustiante de assimilação e que precisa confessá-lo para os dias de hoje, talvez para se libertar: “A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, a nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.” (BOSI, 2009. p. 55). E para o narrador estas representações, vivas na memória, precisam ser contadas como forma de libertação para a consciência e para a própria vida presente.

Desenraizado e, sem entender completamente, seus conflitos interiores, Fortin tenta encontrar conforto em Deus e no além. Não é por acaso que a história é narrada em um confessionário e que, grande parte da narrativa, está em volta dos pecados do próprio narrador, seus desejos proibidos, seus atos de covardia, a fuga dos lugares que se apresentavam como problemas ou perigo, nunca enfrentando os obstáculos, sua traição à princesa Nádia e o fato de ser um negro assimilado e castigar seus irmãos de cor.

A memória então se torna um fardo pesado demais para carregar pelo resto da vida, como observa Fortin: “Venho confessar pecados de muito tempo, sangue pisado na minha alma, tenho medo só de lembrar.” (PR. p. 73), contar alivia o espírito, dividindo o peso da culpa: “Deus pode não me perdoar nenhum pecado e eu arriscar o destino dos infernos.” (PR. p. 87), o perdão já não interessa muito, a confissão se transforma em desejo de lembrança. São as memórias que verdadeiramente importam, que confirmam o gozo da vida.

A apropriação das memórias das minas de Manica é, na verdade, uma ponte para uma tentativa de aliviar a consciência de Fortin que, segundo ele, já pediu licença para morrer: “Por isso lhe confesso este azedo que me rouba o gosto da vida. Já pouco falta para eu sair deste mundo. Mesmo já pedi licença a Deus para morrer.” (PR. p. 86)

O desejo de morte de Fortin é também o resultado de um passado inglório e indigno que marcam suas lembranças. Um passado reevocado e que, agora, adquire uma nova representação. No presente, ele pode refletir e, mesmo não expressando arrependimento, tem em si a possibilidade de refazer sua vida diferente. Esta seria uma possibilidade de aliviar o seu desespero diante do presente. E quando mais fraquejou foi buscar forças em suas raízes: “Foram as minhas raízes que me amarraram à vida, foi isso que me salvou.” (PR. p. 85).

Deitado ao lado de Nádia, já quase desfalecido e, diante da possibilidade de concretizar um desejo impossível, ter de fato a princesa em seus braços, o encarregado recua e abandona o alvo de seus desejos. Fortin, com medo de ser castigado por Iúri, enfia os braços na terra quente para despertar de suas ilusões e voltar para a sua realidade crua. O que um negro assimilado poderia querer com sua senhora, além de parcos favores?

Mas este foi o momento mais marcante na vida e na memória do encarregado. É também, o momento em que a princesa morre e que ele foge para

outra cidade, Gondola. Mais tarde o encarregado geral voltaria àquelas minas para reviver a história da princesa russa em um confessionário.

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