• Nenhum resultado encontrado

A memória e sua relação com os processos cognitivos é objeto de estudo de obras relevantes da filosofia e das ciências sociais, como é o caso de Matéria e memória (1999) do filósofo Henri Bergson. Bergson, como Alfredo Bosi em O tempo e os tempos, volta-se para a questão do tempo e suas relações com a memória, na organização de imagens do passado projetadas sobre o presente, com vistas ao futuro.

A dualidade corpo e espírito é o ponto de partida do pensamento do filósofo para definir a matéria como um conjunto de imagens, sendo a imagem algo que se situa entre o concreto e o abstrato, entre o corpo e o espírito, ente a a coisa e a representação. A memória é aproximada da imagem, e vive nessa mesma dicotomia, entre matéria e espírito. Uma das projeções da memória, a lembrança, é definida por Bergson como uma imagem que é a representação de um objeto ausente.

A percepção sensorial é matizada por elementos os mais variados de nossas experiências passadas. Não há percepção apreendida pelos sentidos que não esteja mesclada por lembranças. Percepção e lembrança estão estreitamente relacionadas. Quase sempre estas lembranças deslocam as percepções reais, que passam a ser meros signos capazes de trazerem à memória antigas imagens. Ora, a percepção está na base do conhecimento das coisas. Em Matéria e Memória, Bergson define o caráter da experiência da percepção que se prolonga no tempo. Uma percepção ocupa sempre uma certa duração de tempo e exige um esforço de memória que se prolonga em uma pluralidade de momentos. A memória, sendo inseparável da percepção, insere o passado no presente, condensa momentos múltiplos da duração e, nessa operação dupla, faz com que a matéria seja de fato percebida.

O passado, evocado em forma de imagem, abstrai-se da ação presente e é, por isso, aproximado da experiência do sonho. A lembrança, para Bergson, pode apresentar-se de duas formas: a espontânea e a voluntária. A maioria de nossas lembranças vêm espontaneamente e têm por objeto os acontecimentos e detalhes de nossa vida, cuja essência é estar presa a um momento preciso, e, dessa forma, constituir-se numa experiência única, não repetível.

As lembranças que se adquirem voluntariamente por repetição são raras. Ao contrário, o registro pela memória de fatos e imagens únicos em seu gênero se processa em todos os momentos da duração. A lembrança espontânea é imediatamente perfeita; o tempo não poderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturá-la, ela reservará para a memória seu lugar e sua data. Esta lembrança

espontânea, que se oculta atrás da lembrança adquirida, é capaz de se revelar por clarões repentinos, mas, ela se esconde, ao menor movimento da memória voluntária.

Constantemente inibida, pela consciência prática e útil do momento presente, essa memória aguarda, somente, que uma fissura se manifeste entre a impressão atual e o movimento concomitante, para fazer passarem aí suas imagens.

O papel da percepção, da atenção e da memória assume aqui grande importância. A atenção tem efeito relevante, na medida em que torna a percepção mais intensa, fazendo sobressaírem os detalhes, o que não deixa de ser um fortalecimento do estado intelectual, que procede de dentro e revela uma certa atitude adotada pela inteligência ou, pelo menos, uma concentração do espírito ou ainda um esforço perceptivo para colocar a percepção sob o olhar de uma inteligência perceptível.

Segundo Bérgson, a atenção, com sua qualidade de análise e síntese, permite a reflexão sobre a imagem recebida, o que implica em uma série de tentativas, de hipóteses, uma vez que a memória escolhe diversas imagens semelhantes e as lança na direção da percepção nova.

No que diz respeito à semelhança, por mais profundas que sejam as diferenças que separam duas imagens, existe sempre um gênero comum ao qual essas diferenças pertencem e, em consequência, uma semelhança que lhes serve de traço de união. Buscar a lei que vincula os objetos aos diversos tons da vida mental, mostrar como cada um desses tons é ele próprio determinado pelas

As lembranças estão ligadas a um certo tom determinado, no qual o mais alto é o das lembranças dominantes, verdadeiros pontos brilhantes em torno dos quais os outros formam uma vaga nebulosidade. Esses pontos brilhantes multiplicam-se à medida que dilata a memória.

O poema “Noite”, de Cecília Meireles, movimenta as lembranças de um eu lírico às voltas com reminiscências sensoriais desfiadas em descrições, em que as emoções da voz ocultam-se em enumerações e personificações dos elementos da natureza.

NOITE

ÚMIDO GOSTO de terra,

cheiro de pedra lavada,

–– tempo inseguro do tempo! ––

sombra do flanco da serra,

nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,

sabor de folhas mordidas,

–– lábio da voz sem ventura! ––

suspiro das madrugadas

sem coisas acontecidas.

A noite abria a frescura

dos campos todos molhados,

–– sozinha com o seu perfume! ––

preparando a flor mais pura

com ares de todos os lados.

Bem que a vida estava quieta.

Mas passava o pensamento...

–– de onde vinha aquela música?

E era uma nuvem repleta

entre as estrelas e o vento.

(MEIRELES, 1972, p. 81-82)

Cecília Meireles organiza os elementos formais do poema “Noite” em quatro estrofes regulares e harmônicas – sete sílabas em todos os vinte versos, acentuação nas primeira, quarta e sétima sílabas – em que a rima cruzada deixa de fora o terceiro verso da estrofe (esquema de rima:

abcab defde fghfg icjic). O ritmo cíclico do poema, com sua repetição na metrificação, na acentuação e

na rima, sobe de tom em cada terceiro verso da estrofe. O travessão que abre a frase, através do qual a voz poética grafa com mais intensidade sua presença, prepara para a explosão da emotividade,

representada pelo sinal de exclamação nas três primeiras estrofes, e interrogação na última estrofe. A coesão do “eu”, obtida pelo domínio da técnica e pela imaginação criadora do poeta, instala um cenário com elementos naturais: terra, pedra, serra, folhas, areia, flor, nuvem, vento, entre outros. A partir desses elementos, vai dando relevo à sua paisagem pelas qualidades atribuídas aos mesmos. Concorrem para os matizes do cenário a superposição de sensações, envolvendo os sentidos da visão, do gosto, do olfato, da audição, de modo que as coisas no ambiente acabam ficando

contaminadas desses efeitos sinestésicos:

úmido gosto de terra

cheiro de pedra lavada,

. . .

Brilho de areias pisadas

sabor de folhas mordidas.

Aos poucos, um tom de nostalgia vai impregnando tudo em volta do “eu” lírico que se mantém discreto. Não há, pelo menos, à primeira vista, evidência da pessoa do discurso, de modo explícito. São poucas as formas verbais. A autora pinta o seu cenário, usando a enumeração para apresentar os elementos que nomeia e qualifica.

E assim, vai definindo o primeiro plano da sua poesia, cujo tom de saudade pode ser sentido nas reiterações sobre o próprio tempo e as suas ações de temperatura ao longo dos estágios da noite, quando tudo volta à sua quietude.

O tempo inseguro do tempo

serra nua e fria, sem mais nada.

. . .

–– lábio da voz sem ventura! ––

suspiro das madrugadas

sem coisas acontecidas.

Há um despojamento físico da natureza e uma fragilidade, agora do “eu” lírico, manifestando-se de modo tímido, pouco audível, marcado pela tristeza traduzida em “suspiro das

madrugadas”. O tempo da natureza e o tempo do poeta se articulam em uma perfeita simbiose. As coisas como que tomam os tons dos sentimentos do poeta, que rememora as suas lembranças de um passado resgatado através da criação de imagens: uma profusão de imagens visuais.

A poesia, diferentemente dos textos datados, recorre aos índices e símbolos reservados na memória, que recicla o tempo mítico. Na memória, podemos encontrar a fonte pura das imagens, sons e sensações aí retidas, e que reconhecemos como sendo verdadeiras.

Prosseguindo nessa tentativa de decodificar os matizes que dão realce à invenção do poeta, nos situamos na perspectiva de quem focaliza o segundo plano do texto em exame, no qual a “noite” se descortina, iniciando sua performance.

A noite abria a frescura

dos campos todos molhados,

–– sozinha com o seu perfume! ––

A noite prepara a canção, a poesia que dá sentido à vida, criando um novo habitat, a realidade recriada pela sensibilidade e poder criador do poeta.

preparando a flor mais pura

com ares de todos os lados.

A flor, para C. Meireles, é a própria canção no sentido de “poesia pura”, no dizer do clássico Hegel. Os elementos “frescura” e “perfume” denotam essa mudança trazida pela poesia. O signo “noite” é símbolo por excelência da poesia romântica. E o signo “sozinho”, por sua vez, expressa a condição solitária da voz lírica, ao criar o seu universo, razão por que acaba se distanciando do coletivo, por força de sua atividade criadora.

O poema encerra por onde poderia ter começado, isto é, fala-nos da força desencadeadora da poesia.

Bem que a vida estava quieta.

Mas passava o pensamento...

É o pensamento que mobiliza a potência da memória e favorece a recordação, a reflexão, o questionamento. Esses são os fundamentos da poesia. Indaga o poeta:

A voz lírica chega de modo imprevisível e, na sua habilidade sutil e delicada, promove belas mudanças.

E era uma nuvem repleta

entre as estrelas e o vento.

Com a memória, na analogia estabelecida entre lembrança e imagem, estamos no domínio do espírito. O espírito sendo memória, conforme desenvolvido nas teorias de Henri Bergson, é também ideia que Santo Agostinho apresenta em suas Confissões (1996), que coincide com muitas das teorias bergsonianas sobre o tempo.

Santo Agostinho discorre, no Livro X de suas Confissões, em vinte e um capítulos curtos5, suas teorias sobre a grande potência e importância da memória.

A memória pode ser vista como um palácio de tesouros de imagens. A sua faculdade de reter tudo que a percepção nos traz, através das sensações, a torna um verdadeiro recipiente das impressões das imagens das coisas sensíveis. As imagens capturadas que possibilitam o pensar e o recordar criam esse depósito de sentimentos, ações, conhecimentos. É um conjunto de imagens que possibilitam criar analogias de coisas experimentadas, e nas quais se acreditou, com vivências do presente, tornando o passado, presente, mediante a seleção do depósito da memória.

Além do acervo das sensações, encontra-se na memória a lembrança do que foi o

aprendido. Os conhecimentos, segundo Santo Agostinho, são armazenados como a “própria realidade”; isto é, diferentemente das sensações, armazenadas sob a forma de imagem, o conhecimento aprendido não sofrerá transformação. A teoria agostiniana distingue ciência e imagens de objetos, ou seja, a ciência está em nós sem imagens, mas os objetos estão em nós pelas suas imagens.

Um tipo de conhecimento, reconhecido como verdadeiro pelo nosso espírito, é aquele que é inato ao homem. A teoria da reminiscência agostiniana, derivada da teoria platônica, entende que certos conhecimentos estão no homem desde seu nascimento e que foram depositados nele por Deus. Dessa forma, recordamos o que nunca aprendemos, pois este conhecimento já estava conosco desde nosso início.

A dificuldade de definir com exatidão o que é memória, sua relação com o corpo físico, e sua relação com a fé em Deus, traz para Confissões um tom poético, em que o Santo, de forma apaixonada, expõe suas dúvidas e perplexidades sobre as conclusões que vai extraindo de suas reflexões. Se a memória é recipiente que não se deixa ver completamente, mas cujos conteúdos permitem ao homem contemplar uma verdade parcial, será nela que compreenderá seus próprios descompassos e titubeios?

Eu, Senhor, cogito este problema, trabalho em mim mesmo, transformei-me numa terra de

dificuldades e de suor copioso. Agora já não escalo as regiões do firmamento; não meço as

distâncias dos astros; não procuro as leis do equilíbrio da Terra; sou eu que me lembro, eu, o meu

espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais

perto de mim do que eu mesmo? (SANTO AGOSTINHO, 1996, p. 275).

5

O discurso sobre memória no Livro X de Confissões inicia-se no capítulo 8 e termina no 28 (SANTO AGOSTINHO, 1996, p. 266-285).

Para Santo Agostinho, o espírito é a memória, e nela o homem guarda os seus afetos, não no modo como os sente quando os vivencia, mas de maneira diferente, que depende da força da memória. A memória é como o ventre da alma: alegria, tristeza e seus correlatos, doçura e amargura, alimentam-na. Para a teoria agostiniana, essas qualidades não são inteiramente dessemelhantes, há no fundo uma semelhança entre elas: são perturbações da alma.

Segundo esse belíssimo pensar agostiniano, o ser humano é uma vivência plena de formas, cujos horizontes são infinitos. É pela força da memória que ele se comunica e chega a Deus. A imagem está presente na memória é a condição para se recordar o que uma vez se conheceu. A evocação é um meio de se acionar essas lembranças e trazer à tona imagens já apagadas. A qualificação de

reminiscência como a possibilidade de resgatar lembranças que uma vez impressionaram a memória é que define, na teoria agostiniana, o processo de recuperação de tudo aquilo que supomos esquecido e que, subitamente, aflora pela contemplação de algo análogo, que desperta essas impressões

esmaecidas.

O poema “Orfandade”, de Cecília Meireles, visita dois temas caros aos românticos: a infância e a morte, e alia-os à busca da precisão descritiva para tornar quase visível um acontecimento do passado. A voz poética revisita uma experiência dolorosa da infância e presentifica, no instante consagrado da poesia, a dor de uma perda irreparável.

ORFANDADE

A MENINA DE PRETO ficou morando atrás do tempo,

sentada no banco, debaixo da árvore,

recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,

e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,

murmurou: “A MAMÃE MORREU”.

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.

O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,

escutando na terra aquele dia que não dorme

com as três palavras que ficaram ali.

(MEIRELES, 1972, p. 95).

À primeira vista, o texto nos chama a atenção para o fato de o poeta, nas duas primeiras estrofes, narrar, de forma realística, um episódio da infância. Na primeira estrofe, temos a localização do personagem, a menina, num banco sob uma árvore; e na segunda estrofe, a chegada do emissário da trágica notícia da morte da mãe, cuja presença foi suficiente para a criança adivinhar a mensagem. A terceira estrofe afasta-se do gênero narrativo e configura, em tom lírico, o tempo presente da voz poética, em que se realiza a fusão dos dois personagens, a menina e o “eu”, e o desvelamento da dor não

superada da morte presenciada no passado.

Em “Orfandade”, o poeta trabalha as palavras combinando-as, emprestando-lhes

significados originais, até que se cria uma realidade própria, através da imaginação, de tal modo que esta realidade atinge o leitor mais diretamente do que a vivência concreta da realidade em si.

Neste texto, chega a ser pungente o tom melancólico movido pela sensação de abandono e desamparo vivenciada pela frágil e inocente figura humana (a menina de preto) instalada no espaço do texto, num tempo longínquo da sua infância:

A MENINA DE PRETO ficou morando atrás do tempo.

Destarte, há um intenso sentimento de comoção e de pesar expresso, logo de início, na imagem que abre o texto (“A menina de preto”), insinuando um clima lutuoso mediante o efeito cromático com função de espelhar, de identificar e até de particularizar, dando à realidade um matiz de

singularidade no plano memorialístico, conforme se pode ver no sintagma que encerra o enunciando: “morando atrás do tempo”. Dessa forma, através da expressão “morando atrás do tempo”, podemos aproximar as duas figuras, a voz poética do presente do poema, que ainda guarda o luto pelo

acontecimento remoto não superado, e a criança do passado, que viveu o imenso trauma da perda da mãe.

Esta habilidade de elaboração estética é uma conquista de Cecília Meireles, que trabalha unindo, de modo harmonioso, técnica e imaginação. E a maior prova disso, é a constância dessa habilidade na sua produção poética.

A experiência da morte é a força geradora do texto, para o qual os dados biográficos da autora podem ter contribuído. A infância de Cecília Meireles foi marcada pelo signo da perda: o pai que ela não conheceu (quando Cecília nasceu, seu progenitor já era falecido), a perda da mãe aos três anos de idade, razão por que foi entregue aos cuidados de sua avó, que preenchia a imaginação da menina com histórias de um tempo remoto e mágico. Na vida adulta, a morte trágica do primeiro marido marcou de modo indelével a vida de Cecília Meireles. Todo esse contexto de perdas sucessivas pode ser sentido no tom lutuoso do poema “Orfandade”, em que ressoa um lirismo orfânico.

Essa sensação profunda de deslocamento e orfandade, segundo Miguel Sanches Neto, em seu estudo Cecília Meireles e o tempo inteiriço (SECCHIN, 2001, p. 22), está patente na poética que recusa identificação com o imediato, considerado por ela como limitador. Há ainda a busca por uma “reunificação” de espaços e tempos, que lhe garante uma temporalidade além das amarras cronológicas. Na concepção de O.M. Carpeaux, a poética ceciliana é, ao mesmo tempo, atual e inatual (SECCHIN, 2001, p. 23).

A poesia transgride limites temporais na medida em que evoca, trazendo à tona reminiscências de épocas passadas, como teorizado por Santo Agostinho em Confissões.

Quando a própria memória perde qualquer lembrança, como sucede quando nos esquecemos e

procuramos lembrar-nos, onde é que, afinal, a procuramos, senão na mesma memória? E se esta

casualmente nos apresenta uma coisa por outra, repelimo-la até nos ocorrer o que buscamos.

(SANTO AGOSTINHO, 1996, p. 278).

As lembranças, uma vez não esquecidas totalmente, podem ser rememoradas através do espírito, que outra coisa não é senão a própria memória, cujo potencial possibilita a recuperação das experiências, de modo que se pode recorrer a essa fonte de riqueza sempre que se desejar.

A personagem (a menina de preto) vive uma situação marcada por fortes emoções e sentimento de solidão. O difícil aprendizado da morte também é o exercício espiritual que conduz à plenitude do espírito, e esse caminho Cecília Meireles elege como verdadeiro para a sua poesia. Dotada de raro dom e personalidade eclética, o poeta articula os pares: morte e vida; o efêmero e o eterno; o natural e o sobrenatural; o visível e o invisível. E, como declara a própria autora: “A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é fundamento mesmo de minha personalidade” (MEIRELES apud

DAMASCENO, 1972b, p. 58). Poeta visual por excelência, C. Meireles explora esse recurso,

emprestando-lhe a força que permite fixar, olhar demoradamente, perscrutar, ver além das aparências, o que causa espanto não só aos outros, mas a si própria.

Sentada no banco debaixo da árvore

recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados

Uma outra pessoa é referida no texto: alguém que testemunha a realidade e com quem a menina conversa:

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,

e parou diante dela, e ela, sem que ninguém

falasse, murmurou: “A MAMÃE MORREU”

A comoção da dor da “menina” contamina a outrem diante de seu sofrimento. Esse fato motiva o desencadeamento da manifestação da “menina” que murmura: A MAMÃE MORREU. Essas três palavras representam a máxima potência da linguagem, tanto que, no texto, aparecem destacadas em maiúsculas, como a expressar, na forma escrita, o grito que a menina não pode dar, a frase que na infância foi só um sussurro. Essa frase “a mamãe morreu” transforma-se, depois, no termo correlato “três palavras”, que surge ao final do poema, como uma imagem chave que permite a compreensão da mensagem.

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.

O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,

escutando na terra aquele dia que não dorme

com as três palavras que ficaram ali.

O deslocamento da “menina”, do plano terreno para a esfera da transcendência, pode ser percebido nos elementos “céu” e “nuvens”, nas transcrições anteriores. Trata-se de uma visão mística, idealista e espiritualista, cuja essência poética está voltada para uma ascensão universalizante.

A criança consegue sintonizar mais com a plenitude buscada por Cecília, cuja

Documentos relacionados