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[é necessário] aceitar se confrontar com essa memória sob a história

que sulca o arquivo não escrito dos discursos subterrâneos. O interesse desse heterogêneo discursivo, feito de cacos e de fragmentos, é que ele permite recuperar as condições concretas da existência das contradições através das quais a história se produz, sob a repetição das memórias estratégicas (Michel Pêcheux, O estranho espelho da

Análise do Discurso, 1981)

Pêcheux (1999) nos chama a atenção ao afirmar que a AD é o espaço incerto onde a língua e a história se encontram mutuamente submetidos e submersos na/pela interpretação.

Para esse autor, a memória deve ser entendida como nos “sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas e da memória construída do historiador” (PÊCHEUX, 1999, p.43). Sendo assim, a memória é um espaço móvel, de deslocamentos, de retomadas, de conflitos, de regularização e desdobramentos. Nessa perspectiva, os implícitos residem na memória discursiva e são encontrados na forma de “regularização”, “remissões” e efeitos de paráfrase (repetível) ou polissemia (o outro, diferente).

Para nós professores, é essencial o trabalho com a memória discursiva, pois nela há possibilidades de discursos e dizeres que se (re)atualizam no momento da enunciação. Essa memória faz parte das interpretações que são da ordem do acontecimento, mas que estão na tensão com a estrutura do processo sócio-histórico, assim, a linguagem é o tecido da memória (ORLANDI, 1993), pois, o sujeito toma como suas palavras a voz anônima que se produz no interdiscurso.

Aqui buscamos relacionar memória discursiva ao Discurso Pedagógico Escolar (DPE), dessa maneira, o funcionamento discursivo coloca em ativa a memória trazendo entre o acontecimento histórico, o dispositivo singular de uma memória, que coloca em jogo “uma crucial passagem do visível ao nomeado”. Esse percurso de movimento da memória reestabelece implícitos através dos efeitos de repetição e de regularização de sentidos já-lá, ou seja, de um retorno que se repete numa aparição instantânea entre a estrutura e o acontecimento.

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Pêcheux (1999) afirma que a memória não se restitui em frases escutadas no passado, mas de julgamentos verossímeis que deslocam o sujeito a uma posição discursiva enunciativa, pois a memória suposta pelo discurso é sempre (re)construída na enunciação. Assim, a memória é tudo que deixa marcas nos tempos desjuntados que vivemos e que nos permite a todo momento reunir e emergir temporalidades passadas, presentes e por vir.

A memória discursiva seria aquilo que “face de um texto que surge como acontecimento de ler, vem (re)estabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc), de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio ilegível” (PÊCHEUX, 1999, p.52). Lembramos que o pré-construído é o enunciado proveniente de discursos outros, de formulações de um já-dito constituído em outras Formações Discursivas (FD).

Assim, a memória discursiva trabalha na tensão entre a paráfrase e a polissemia, entre o interdiscurso e o intradiscurso. Aqui a memória é retratada como eixo vertical em que as enunciações se estratificam de tal maneira que qualquer formulação se dá pelo conjunto de formulações já feitas, que presidem nossa formulação e formam o eixo de constituição do nosso dizer. Sendo assim, essa memória ecoa dizeres marcados pelo esquecimento do já-lá, fazendo (res)soar as ilusões e/ou esquecimentos 1 e 2, como se o dizer nascesse em nós e a partir de nós.

São importantes e constitutivos da memória discursiva a polissemia e a paráfrase, sendo essa segunda um processo que retoma o já-dito e legitima o dizer produzido no interdiscurso pelos efeitos de sentidos, pois dá manutenção à memória discursiva, sendo essa responsável pela produtividade na língua. Assim, a paráfrase se (re)faz na tensão entre o mesmo e a possibilidade do diferente, porém, repete sentidos do já-lá.

Já a polissemia desloca, rompe, emerge o discurso outro trazendo o diferente, o novo da multiplicidade que se dá pelos/nos sentidos discursivos. É um processo da linguagem criativa, pois desloca as regras e se movimenta entre os sentios, a história e a própria língua. Dessa maneira, é nos processos polissêmicos que podemos observar o objeto simbólico passando por processos de (res)significação.

Sabendo que há, no discurso, a constituição da linguagem e dos dizeres em sua heterogeneidade discursiva (AUTHIER-REVUZ, 1990), trazemos a dinamicidade que é atribuída à memória e está imbricada no conceito de discurso, que se (re)faz e se implica aos enunciados que se apresentam como pontos de deriva, e oferecem ao sujeito lugares de interpretação. Assim sendo, mobilizamos o acontecimento discursivo que instaura uma nova forma de dizer, e a cada nova posição-sujeito mobiliza a tensão que perturba a memória, e que pode desmanchar a regularização.

Uma vez que tratamos a “memória como espaço móvel”, Pêcheux propõe olharmos a variância que a caracteriza, assim como a condição de plurivocidade dos sentidos que coexistem na ilusão do homogêneo dentro do processo de produção de sentidos.

Sendo sempre já-sujeito, sabe-se que

[...] as palavras, as proposições, mudam de sentido segundo posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que significa que elas tomam seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem (PÊCHEUX, 1990, p.96). Segundo o autor, o sentido de uma palavra, expressão, proposição, não existe em si mesmo, mas é determinado pelas formações ideológicas, colocadas em jogo no processo sócio- histórico em que as palavras, expressões e proposições são (re)produzidas.

Nesse mesmo sentido, Achard (1999) acentua que se deve à estrutura do discursivo a constituição da materialidade de uma memória social, sempre (re)formulada via novas, outras ou mesmas enunciações concretas, pelas quais o sujeito temporaliza o mundo, a partir de lembranças ou esquecimentos.

Entende-se que é no movimento e no deslocamento que se dão e se fundamentam as noções de sujeito, e se o sujeito se movimenta, se desloca e se posiciona, a cada possibilidade suas palavras podem falar e estar sobre outras palavras, sendo esse um sujeito (des)centrado em que as identidades não são fixas e permanentes, mas se movem também. Assim, todo discurso já traz em si a definição

[...] mais ou menos precisa, de lugares ou de posições subjetivas a serem ocupados por este ou aquele indivíduo, segundo relações políticas e sociais e, portanto, ideológicas admitidas e construídas num dado momento histórico- social, num dado discurso – sempre em formação -, determinantes da(s) verdade(s) a ser(em) assumida(s) (CORACINI, 2005, p.30).

Considerando o exposto, é válido salientar que a formação discursiva é o lugar da constituição do sentido e da identificação do sujeito. É nela que todo sujeito se reconhece (em sua relação consigo mesmo e com os outros) e aí está a condição do famoso consenso intersubjetivo (a evidência) de que eu e tu somos sujeitos e que, ao se identificar, o sujeito adquire identidade. É nela também que o sentido adquire sua unidade, pois uma palavra recebe seu sentido na relação com as outras da mesma formação discursiva e o sujeito falante aí se reconhece.

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Pensando as concepções e teorias descritas acima temos com a AD, formas de reflexões, em que temos a tarefa de buscar os sentidos em ‘relação a’, compreendendo que a língua se inscreve na história para significar: quando se fala, mobiliza-se, pois, um saber que, no entanto, não se aprende, que vem por filiação e que nos dá a impressão de ter sempre estado lá.

Enquanto analistas trazemos gestos a partir desse dispositivo teórico, sem esquecer que determinar significa ser constitutivo e não relação causa/efeito, trabalhando com a questão da alteridade. Sendo assim, a nossa tarefa não é apenas de compreender, ou seja, é explicitar os processos de significação que trabalham no texto, na linguagem, no discurso, mas compreender, também, como a língua produz sentidos, através de seus mecanismos de funcionamento, compreendendo como as palavras se constituem nos e pelos sentidos (e os sujeitos, em suas posições).

Cabe, portanto, a nós, na posição de analistas de discurso, distinguir a hermeneuta, desvelar os fatos resistentes que precisam ser apagados para que os sentidos se deem, tornando visível o seu modo de funcionamento. É, enfim, como destaca Pêcheux (1999), fazer com que a opacidade do texto, que aos olhos do leitor se apresenta como transparente, faça-se visível.