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3. Memória natural, memória artificial ou memória inventada? O uso da memória na

3.1 Da memória mítica à arte da memória

Se a memória mítica tem uma de suas origens na Grécia, também é lá que nasce a arte da memória. Yates (2007, p. 17), historiadora britânica, em sua obra A arte da memória, aponta que os primeiros registros sobre a arte da memória foram feitos em fontes latinas, embora o objeto do relato fosse uma história grega. Na obra De Oratore, de Cícero, conta-se que um admirado poeta grego de nome Simonides de Ceos (556-468 aC.) foi o precursor da arte da memória. Convidado para entoar seus poemas líricos durante um banquete oferecido pelo nobre Scopas, Simonides de Ceos louvou os gêmeos Castor e Pólux. Scopas se recusou a pagar o combinado e recomendou que cobrasse a metade dos gêmeos que haviam sido mencionados. Chamado a sair do recinto para falar com dois jovens que o solicitavam, Simonides não encontra ninguém. Ao voltar vê o salão em ruínas, devido ao desabamento do teto, com anfitrião e convidados mortos. Simonides de Ceos ajuda, com o uso da memória, a identificar os corpos relatando aos parentes os locais onde os convidados se encontravam.

Desta forma começa-se a configurar a origem da arte da memória associada a lugares e imagens de memória, e a esta técnica atribuiu-se o nome de mnemotécnica. Note-se que da mesma forma que a Memória mítica, a técnica da memória nasce associada à palavra cantada, ao poeta, à doçura dos versos e a Simonides de Ceos, que era o único poeta que recebia pagamento por seus poemas e tinha, portanto, a poesia por ofício. Apresentava grande capacidade de lidar com associações de imagens, com as metáforas, tanto que os romanos o denominavam Simonides Melicus, o poeta da língua de mel.

De acordo com Yates (2007), que relaciona a memória com textos de autores clássicos, Cícero, na obra De Oratore apresenta a memória como uma das cinco partes da retórica.

A invenção é o exame aprofundado de coisas verdadeiras (res) ou de coisas verossímeis para tornar uma causa plausível; a disposição é arranjar em ordem as coisas já descobertas: a elocução é adaptar as palavras (verba) convenientes às (coisas) inventadas; a memória é a percepção firme, pela alma, das coisas e das palavras; a

pronunciação é o controle da voz e do corpo para se

adequar à dignidade das coisas e das palavras. (YATES, 2007, p.25).

É curioso notar que a memória está mais associada ao discurso que propriamente aos fatos, de onde se entende que a retórica nasce da invenção temática, que pode ser verdadeira ou não. Desta forma não há, pelo menos não claramente, uma associação entre o tempo e a memória, como de fato é na memória mítica. Torrano (2007) explica que o tempo grego é circular e não linear. Segundo Yates (2007) há dois tipos de memória:

(...) a memória natural e outra artificial. A natural é aquela inserida em nossas mentes, que nasce ao mesmo tempo que o pensamento. A memória artificial fundamenta-se em lugares e imagens. Um locus é um lugar facilmente apreendido pela memória, como uma casa, um canto, um arco etc. Imagens são formas, signos distintivos, símbolos daquilo que queremos lembrar (YATES, 2007, p.23).

A memória artificial é aquela reforçada e consolidada pelo treinamento. É, portanto, construída a partir de um repertório único e que dependerá da habilidade de seu usuário e treino, para se valer da memória de lugares e de coisas.

E se isto é verdade, então voltamos às origens míticas, pois eram os poetas, inspirados pelas musas, que cantavam os feitos dos deuses. E, por este motivo, está vinculada à memória oral, que passava de geração para geração, como foi a Teogonia de Hesíodo, ao relatar a origem dos deuses.

Aristóteles, que viveu depois de Simonides, em 384 a.C., foca a memória na teoria do conhecimento. Os cinco sentidos trazem a informação e as imagens são formadas e se tornam a matéria da faculdade intelectual. A imaginação é a intermediária entre percepção e pensamento. É dele a frase: “a alma nunca pensa sem uma imagem mental”.

A teoria do conhecimento é o ramo da filosofia que explora o conhecimento do homem e existem muitos movimentos, em diferentes épocas, que trataram da questão. Apesar de Aristóteles não ter abordado a teoria do conhecimento com esta denominação, alguns pressupostos como a observação e o empirismo já estavam presentes no pensamento aristotélico.

Embora de outra forma, segundo Yates (2007), Aristóteles compartilha com Simonides e Cícero a importância das imagens para a memória. “A memória pertence à mesma parte da alma que a imaginação; é um conjunto de imagens mentais a partir de impressões sensoriais (...), afirma Aristóteles em sua obra De memoria et reminiscentia” (apud. YATES, 2007, p. 72). O filósofo grego distingue a memória e a lembrança, associando a primeira à naturalidade espontânea e a outra a um esforço deliberado para encontrar os conteúdos da memória, perseguindo aquilo que se quer lembrar.

Entretanto, Platão discorda de Aristóteles, referindo-se mais à memória natural. Aponta como um conhecimento latente das memórias, nas almas, baseados em uma realidade superior. Trata-se do conceito platônico de Mundo das Ideias, das realidades que a alma conheceu antes de descer aqui embaixo. A memória platônica deveria ser natural e não artificial. Ao conhecer a verdade, o homem se aproxima do mundo das ideias, e esta memória está associada às ideias vistas por todas as almas. Quando um sofista faz uso artificial da memória, trata-se de uma profanação. “Uma memória platônica deveria ser organizada em relação a realidades superiores e não à maneira trivial da mnemotécnica sofista”, descreve Yates (2007, p. 58).

O que para Platão (2002) é traduzido pela memória natural do mundo das ideias, como se viesse à tona o que estava submerso no espírito, é para Henri Bergson (1999), filósofo francês contemporâneo, a memória por excelência, uma memória pura. De alguma forma, o que a filosofia define por memória, se aproxima muito do que Jung (1964) tratou por inconsciente coletivo. O relato de sonhos de pacientes levou Jung a acreditar que as pessoas estão vinculadas a uma camada mental relacionada com o universo.

Nesse ponto convergem as ideias de psicólogos, psiquiatras, filósofos, sociólogos e mitólogos. O indivíduo está preso ao passado, da sua vida e da sua espécie, o que mais uma vez nos remete à ideia de atemporalidade, de universo cíclico, de realidade transversal. Jung, em sua obra Os homens e os símbolos, relata que “o inconsciente coletivo é formado por arquétipos, que são manifestados por símbolos com os quais nos defrontamos na nossa experiência humana”, (JUNG, 1964, p. 69). Os arquétipos nada mais seriam que o mundo das ideias de Platão.

Cícero, o filósofo latino mais importante na divulgação da filosofia platônica, assumiu a posição de Platão e de Pitágoras de que a alma é imortal e de origem divina. “Uma prova disso é que a alma possui memória,”, descreve Yates (2007), o que seria para Platão a rememoração de vidas anteriores. Retomando a visão do

mito fundador grego da memória, ela seria soberana e transcendente no tempo e no espaço.

O vínculo sagrado da memória também foi estudado por Agostinho, o professor pagão de retórica, que depois se converteu ao cristianismo. Ele também se vale dos loci, dos lugares, ou seja, dos palácios da memória. O que difere Agostinho dos demais estudiosos do tema é o vínculo de Deus com a memória e o fato de ele ter elencado a memória como um dos três poderes supremos da alma: Memória, Intelecto e Vontade (YATES, 2007, p.71). Em outras palavras, a trindade humana.

A discussão sobre a natureza e caminhos da memória prossegue pela Idade Média e chega até nossos dias. Embora o intuito do capítulo não seja fazer uma retrospectiva histórica do tema, é necessário recuperar um conceito medieval, abordado por Alberto Magno (apud. YATES, 2007, p. 88) e Tomás de Aquino (apud. YATES, 2007, p.95). A memória artificial, para eles, passou do âmbito da retórica e adentrou o campo da ética. E é neste campo da ética que se quer discutir o tipo de memória empresarial que hoje toma corpo no campo da comunicação empresarial / organizacional.