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2 LÍNGUA ESTRANGEIRA: UMA TEIA QUE SE TECE COM SUJEITOS

2.5 MEMÓRIA NA/DA LÍNGUA: FIO QUE TECE O SIMBÓLICO

Ao longo deste capítulo, venho fazendo referências ao papel da memória discursiva que joga no funcionamento da relação entre o sujeito e a língua no processo de aprendizagem/inscrição de/em uma língua estrangeira, pois, para se subjetivar, o sujeito se submete às formas de dizer e à memória de sentidos produzidos na/pela língua (Serrani, 1999, 2000), Celada (2008).

A reflexão sobre a memória sempre esteve presente no escopo teórico da Análise do Discurso sem, contudo, receber essa designação, como observa Indursky (2011, p. 68). Pensava-se a memória sob as noções de repetição, pré-construído, discurso transverso, interdiscurso, formuladas por Pêcheux, e que remetem à noção de memória uma vez que se trata de “diferentes funcionamentos discursivos através dos quais a memória se materializa no discurso”. Com base nessa afirmação, já se constata de imediato que a noção de memória com a qual trabalha a AD se distancia dos estudos psicologistas baseados na cognição. É o caráter social e coletivo, e não individual, que constitui a memória que, atravessada pela história e ideologia, manifesta-se por meio de processos sócio-histórico e ideológico. Dessa afirmação, depreende-se que o discurso funciona como um lugar de memória, dado o caráter de anterioridade de todo dizer que circula na história e na sociedade, como já havia formulado Pêcheux ([1975] 1995, p. 162) que “algo fala” sempre “antes, em outro lugar, independentemente”.

Formulado por Courtine em 1981, o conceito de memória discursiva é “distinto de toda memorização psicológica do tipo daquela cuja medida cronométrica os psicolinguistas se dedicam a produzir” e diz respeito à “existência histórica do enunciado no interior de práticas regradas por aparelhos ideológicos” (COURTINE, 2009, p. 105-106 – grifos do autor). Para o autor, sobre a noção de memória discursiva subjaz a análise das FD, formuladas por Foucault em a Arqueologia do saber, segundo as quais “toda formulação apresenta em seu ‘domínio associado’ outras formulações que ela repete, refuta, transforma, denega..., isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória específicos” (COURTINE, 2009, p. 104). Nestes

termos, no seio da memória discursiva, são produzidos a lembrança, o esquecimento, a reiteração ou o silenciamento.

Dessa (re)visitação às formulações foucaultianas, a memória discursiva é abordada como memória do enunciado enquanto campo associado de formulações responsáveis pela produção de sentidos e efeitos de memória. Ele busca demonstrar como as marcas da memória podem ser identificadas na estrutura linguística dos enunciados, analisando-as a partir das formas de supressão das citações de um discurso, com base na qual se pode observar o funcionamento simultâneo da memória e do apagamento, e da recitação de discursos que são retomados. É com base nessas duas formas que os indícios da memória discursiva podem ser encontrados na estrutura da língua, conforme Payer (2009).

O efeito de repetibilidade e a regularização dos sentidos são apontados por Pêcheux (1983) como um funcionamento constitutivo da memória discursiva. Esse argumento pode ser observado na seguinte passagem:

Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão da memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita (PÊCHEUX, [1983] 2015, p. 45-46)

A partir dos dois posicionamentos descritos, podemos concluir que a concepção de memória defendida por Courtine (2009) e por Pêcheux (1983) coincide, principalmente, em um ponto: a repetibilidade, pois ambos admitem que se trata a memória de um espaço de regularização de sentidos que ocorre, sobretudo, por meio do efeito de repetibilidade que, atrelada ao esquecimento, provoca no sujeito, ao produzir seu discurso, a ilusão de estar na origem do dizer. Isso ocorre pelo fato de que a natureza da repetição é da ordem do não- sabido, do anônimo, já que para a AD, repetir “não significa necessariamente repetir palavra por palavra algum dizer, embora frequentemente este tipo de repetição também ocorra. Mas a repetição também pode levar a um deslizamento, a uma ressignificação, a uma quebra do regime de regularização de sentidos” (INDURSKY, 2011, p. 71), ou seja, a repetição representa um lugar onde se produzem resistências.

Baseando-se no apagamento de enunciados a que se refere Courtine (1981) e as formas de silêncio teorizadas por Orlandi (1992), Payer investiga a língua como um modo

material específico de aparecimento da memória. Embora a autora trabalhe em um contexto específico – o português e o italiano em situação de imigração –, a meu ver, sua abordagem pode ser aplicada ao trabalho com o ensino de outras línguas em espaços institucionais. Dizendo de outra forma: no caso dessa pesquisa, buscamos compreender como se dá a inscrição do sujeito, falante do português, na discursividade da língua espanhola, promovendo uma nova subjetivação que se inscreve numa rede de memórias discursivas. Desse modo, é a partir desse deslocamento teórico promovido pela autora que vejo a possibilidade de também promover um deslocamento e observar os traços de memória na estrutura da língua portuguesa presentes nas produções escritas em espanhol, objeto dessa pesquisa. Para tanto, considero a seguinte afirmação da autora:

Considerando na estrutura linguística os traços de memória, compreendemos como a memória histórico-discursiva se materializa, além do discursivo, e além dos enunciados, na língua ela mesma, isto é, em formas específicas da língua enquanto transpasse de sistemas – o italiano no português (PAYER, 2009, p. 49).

O deslocamento que propus reside exatamente nesse traspasse entre sistemas, ou seja, o português no espanhol, que possibilitaria explicar a “memória de uma língua na outra”, considerando que a memória discursiva está presente já na língua, em suas estruturas fonético-fonológicas, lexicais, morfossintáticas e expressões, cujo funcionamento representa um lugar de memória. Essa posição vai permitir analisar os vestígios do português nas produções em língua espanhola, não como mera interferência, a partir da qual se joga o jogo do certo/errado, do gramatical/agramatical, mas como funcionamento da identificação de um sujeito que busca singularizar-se e vê a materialidade da língua como lugar onde as identificações simbólicas que o determinam se realizam, possibilitando-lhe inscrever-se na ordem dessa nova língua que será por ele ressignificada, ao mesmo tempo que nela ele se ressignificará. Enfim, nessa relação sujeito/língua, pode-se configurar uma modalidade própria de identificação que se dá em torno da memória da/na língua, responsável pela representação simbólica dos sujeitos em sociedade. É por esse viés, a meu ver, que o funcionamento da memória na língua nos possibilita ver como funciona a identificação do sujeito com o simbólico.

Apoiado nessas afirmações e considerando que a noção de língua ocupa um lugar de destaque na teoria do discurso desde sua fundação, torna-se necessário observar como os traços de memória se manifestam e funcionam em sua estrutura e a posição de sujeito do

discurso inscrita na própria língua. Nessa relação língua e lugar discursivo, ainda segundo as formulações da autora, os elementos de língua estranhos podem ser compreendidos como traços de memória da língua: traços de memória de uma língua em outra, traços de memória de uma língua que estrutura psiquicamente o sujeito. A compreensão desses traços é importante para se compreender, a partir dos elementos de sua estrutura, o desdobramento da memória em memória da língua e memória na língua, que se distinguem entre si a partir do seguinte funcionamento: se a ênfase recai sobre a memória histórica, sob a forma de memória discursiva presente na língua, estamos observando o funcionamento da memória na língua, já que ela é tomada como parte da história, que “a história significa com a, através da língua”. Mas se, ao contrário, a atenção se volta para compreender, a partir da língua, o que ela significa por sua relação com a história, estamos considerando a memória da língua, ou seja, “a língua é que está em foco, que significa por sua relação com a história” (PAYER, 2000, p. 5).

Como já abordamos, a repetibilidade é constitutiva da memória e é por meio do mecanismo de repetição na língua que se constrói a possibilidade de reconhecimento do funcionamento da memória que se inscreve na materialidade da língua, posto que, “criando ligações, rastros, sinais, a repetição domestica a memória, ao se dar como língua. O reconhecimento do mesmo (o repetido) cria memória na e para a língua. Cria memória para as imagens significadas, os sentidos, os percursos de sentidos, os discursos” (PAYER, 2000, p. 8 – os grifos são meus). Nesses termos, falar de língua significa falar também de memória, já que a repetição nela funciona, e a memória trabalha e é trabalhada na própria língua que, para significar, supõe memória que funciona como repetição, como retorno no processo de significar constitutivo da língua.

O olhar sobre as faces dessa relação que funciona tanto na história do sujeito quanto na constituição da(s) língua(s) revela que as memórias da língua funcionam na constituição histórica do sujeito de linguagem, uma vez que,

[...] enquanto modo de remissão de um enunciado a outro, de um discurso a outro, de uma língua a outra, a memória discursiva pode ser compreendida, para além dos efeitos textualmente observáveis, efetivamente ditos, como um princípio presente na própria significação, de maneira ampla, em seu próprio modo de se dar na relação do homem com a língua (PAYER, 2000, p. 8).

E é por isso que insisto em defender que a análise dos traços de memória da/na língua do sujeito aprendiz de uma língua estrangeira pode explicitar algumas características de sua prática discursiva. Contudo, importa assinalar que não se trata aqui de enfatizar os fatos linguísticos, mas a compreensão deles para entender os fatos discursivos e, assim, concebê-los como traços de memória e não apenas como erros que devem ser combatidos, interditados na aprendizagem de uma língua estrangeira, pois, no campo discursivo, a memória histórica é constitutiva dos discursos e dos enunciados e pode se inscrever, também, na estrutura da língua, cujos traços podem ser observados tanto na estrutura quanto na relação que os sujeitos mantêm com as línguas (Payer, 2009).

Considerar (e mais ainda proporcionar), enfim, condições para que os sujeitos desenvolvam a possibilidade de construir sentidos em suas formulações e de estabelecer uma relação com as formas materiais e os seus efeitos de sentido – sem, no entanto, serem denegados e sim reconhecidos –, exige uma mudança no modo de conceber a relação sujeito/língua, ou seja, deve-se voltar o olhar para a relação constitutiva sujeito/língua(gem) e, por conseguinte, a relação sujeito/sentido e sujeito/memória discursiva, esta funcionando como observatório dos sentidos de onde se podem constatar a contradição, o silenciamento de alguns dizeres e o deslizamento de sentidos.