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MEMÓRIAS E IMAGENS DO PROCESSO DE CRIAÇÃO

1.4 OS CRIADORES DE REFERÊNCIA

2. MEMÓRIAS E IMAGENS DO PROCESSO DE CRIAÇÃO

Tudo começou pelo facto de ter sio aluna da disciplina de teatro musical no meu primeiro ano de mestrado. O lugar onde tínhamos aulas era escuro, sem luz natural, onde todas as salas eram coladas umas às outras, e os professores nos pediam que trabalhássemos no corredor para não perturbarmos as outras salas de aula. Acabámos por ir trabalhar para o exterior, para os corredores das catacumbas, e a gostar daquele sítio de passagem, como se estivéssemos nos subterrâneos do mundo, da universidade. O tema era "a barca do futuro" e atrás de uma ideia surgia logo outra, limitando-nos a utilizar na performance que preparámos e apresentámos os materiais que íamos encontrando nos armazéns das oficinas e que, a maior parte deles, já não tinham nenhuma serventia.

Uma das coisas mais interessantes dos processos de criação coletiva ou de grupo, onde cada um dos diferentes componentes do processo tem de se assumir como criador, é que a cada momento somos surpreendidos por propostas que surgem no momento a partir de associações quase espontâneas, de elementos que, à primeira vista, parecem desligados.

A primeira performance ou exercício final da opção de Teatro Musical que frequentei no meu primeiro ano de mestrado chamou-se E o Barco vai…, retirado ou inspirado no La Nave Va de Fellini de que um extrato era projetado durante a narrativa. O tema central era o futuro, partindo da forma e das referências que cada um de nós tinha do futuro, das personagens e das metáforas que conseguimos construir a partir dessa ideia.

Do conjunto de personagens que ganharam forma e tomaram conta da cena, parece-me importante destacar, em primeiro lugar, a cozinheira que no decorrer do processo acabou por ganhar um papel central pois o que acabámos por estar a preparar foi a receita do futuro, centrando-se toda a trama na procura dos ingredientes capazes de ajudar a cozinhar o futuro que cada um de nós sonhou.

"O futuro será dinâmico e leve. Flutuante, basta juntar uma mão cheia de ingredientes criativos consistentes e autênticos. A substância desta receita é a energia gerada pelos pensamentos positivos, fundamental para o desenvolvimento da humanidade. Envolvemos estes ingredientes delicadamente com ternura e obtemos uma substância macia e iridescente. Aromas voláteis começam a soltar-se e a percorrer os cérebros mais ausentes com memória.

Esta troca de energia positiva produzida pelo cérebro gera momentos de enorme criatividade." 55

Um outro via a receita do futuro numa panela de barro  

"Gigantesca. Três trilhões de litros d´água. E fogo alto! O que será preparado é o que quisermos. Mas é importante que seja ao ar livre. Nunca escondido. Assim veremos o céu azul, e aquelas cores de aquarela do fim de tarde. Veremos quiçá as estrelas, por isto é que um cozinhado destes demora mesmo muito tempo. Já a fumaça poluidora, que nos impede de ver todas aquelas coisas, fica no fundo da panela - com uma pedra presa ao pé."56

A preocupação central passava pela ideia de felicidade, pela afirmação que. neste mundo há lugar para todos e que a terra é boa e rica para nos alimentar, por um estilo de vida livre e lindo, com a consciência de que, por tudo aquilo que Chaplin disse no Grande Ditador  

"nós perdemo-nos no caminho. A ganância envenou a alma do homem. Criou uma barreira de ódio. Desenvolvemos a velocidade, mas fechamo-nos em nós próprios. Máquinas que nos deram abundância, deixaram-nos em necessidade. O nosso conhecimento tornou-nos cínicos. E a nossa inteligência cruéis e severos. Pensamos muito e sentimos pouco. Mais do que máquinas precisamos de humanidade" 57

E perguntava-se porque não pode ser assim no Futuro? E talvez inspirado no Ensaio sobre a Cegueira do José Saramago uma personagem dizia

"Vocês não vêem, não olham para trás?

No passado estão as respostas. O que seria de nós sem a experiência do fogo ou da roda. Sem as obras de Beethoven. Sem Platão ou Arquimedes.                                                                                                                

55 fala integrante da peça E o barco vai... 56 Idem.

Lembrem-se da alegoria da Caverna e dos homens acorrentados voltados para a parede. Temiam a própria sombra porque não sabiam o que era…

Não podemos temer o que não conhecemos. Não podemos mudar de rumo sem percebermos o que já percorremos até aqui. Se não, como saberíamos qual a direcção certa?"

Eu tive um sonho. Sonhei que tal como no inicio, o Homem era apenas um homem. Não havia raças. Éramos todos iguais. Vivíamos em comunidade e todos se ajudavam…

Porque não pode ser assim no Futuro." 58

Um processo de procura da receita do futuro que quanto a nós é muito bem caracterizado num diálogo entre o Caminhante, uma personagem que anda à procura do futuro, e um Guru com quem se vai aconselhar e que tem também um papel crucial na narrativa.

 

Caminhante – Estou a ver que me enganei redondamente acerca da tua utilidade, Sr ESPECIAL! E pensar que percorri todo este caminho, atravessei os Himalaias e alguns rios de dinheiro para chegar a sua Santidade ou como te chamam por estas bandas, mas não me serves de nada, que desilusão! Guru – Tu não vieste em vão, mas tens de descobrir isso sozinha, eu podia mostrar-te um arco-íris de ideias, quase ficção científica em cada uma das imagens ou mil e uma receitas para a tua felicidade, mas tu tens de olhar dentro de ti e encontrar os ingredientes. Segue os conselhos de um sábio do teu mundo, que dizia que a religião do futuro será uma filosofia cósmica, que transcende o Deus pessoal e evita o dogma e a teologia. Abrangendo ambos os meios natural e espiritual, deve se basear num sentido religioso decorrente da experiência de todas as coisas como uma unidade significante. Se há alguma filosofia que possa lidar com as necessidades da ciência moderna, essa filosofia é o budismo. "E para a ementa de hoje – sonhos!" No final, como diz o guião, as pessoas juntam-se à volta duma toalha e todos provam os sonhos que foram confeccionados. Convida-se o público a comer também.

Mal imaginávamos que uma parte significativa das ideias e dos processos viriam a surgir também nos novos projetos.