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Memórias médicas da Marinha Portuguesa

No documento Traços da medicina na azulejaria de Lisboa (páginas 155-162)

4. REPRESENTAÇÕES DE CIÊNCIA MÉDICA EM AZULEJOS DE LISBOA

4.2. Memórias médicas da Marinha Portuguesa

A primeira morada do Hospital da Marinha funcionou nas instalações do grande Arsenal, construído na baixa da cidade, após o terramoto de 1755, sobre os escombros do Paço da Ribeira. Passou por algumas instalações até ter morada própria no Campo de Santa Clara.

O hospital foi edificado no local onde existira um colégio jesuíta que ficou danificado com o grande terramoto e abandonado com a expulsão dos jesuítas, tal como acontecera com o Colégio de Santo Antão, onde se instalaria o Real Hospital de São José.

O alvará datado de 27 de Novembro de 1797 ordenava a construção de um novo hospital que viria a ter traço arquitectónico de Francisco Fabri131, sofrendo

uma renovação em Setembro de 1801, devido a problemas orçamentais que tinham feito estagnar o curso das obras.

O Ministro da Marinha e do Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi o responsável pela obra hospitalar, que só receberia os primeiros doentes no ano de 1806, altura em que foi inaugurado com pompa e circunstância132. Era considerada

uma obra de grande importância para o panorama médico de Lisboa e da Marinha, o que se reflectia num cuidado decorativo característico dos edifícios públicos.

Deste modo, do acervo artístico do Hospital da Marinha faz parte uma estátua de notável qualidade, representando D. João VI133. Um conjunto de azulejos

131 Francisco Xavier Fabri era um arquitecto de origem italiana, que se instalou em Portugal a partir

de 1790. O Palácio da Ajuda foi um dos seus principais projectos.

132 A descrição da inauguração do Hospital da Marinha é feita num artigo da autoria de Rui de Abreu,

“Uma Referência Viva de Todos os Marinheiros”, 1ª parte, Revista da Armada, Fevereiro de 2006, in www.marinha.pt/revista (Outubro de 2006).

completa um ciclo comemorativo da Medicina naval, militar e das personagens mais significativas do percurso daquela instituição. Do edifício faria parte uma galeria forrada com exemplares de Jorge Colaço134.

A Sala do Príncipe, que serve a entrada principal do hospital, apresenta um revestimento polícromo em azul, branco, amarelo e manganés. Produzido no século XIX, o conjunto apresenta dois medalhões centrais alusivos a D. Rodrigo de Sousa Coutinho e ao Príncipe regente D. João. No primeiro pode ler-se: “o Ministro da Marinha e Ultramar D. Rodrigo Sousa Coutinho obtem a assinatura do príncipe regente para a edificação do hospital real da Marinha. 27. Set. 1787”. No segundo, pode ler-se “Dr. Bernardino Antº Gomes (filho) primeiro presidente do Conselho de Saúde Naval reforma e organisa o serviço de saúde da armada e ultramar 1833 a 1847”, figura que, depois do da guerra civil que opôs miguelistas e liberais, ficou incumbida da direcção do Hospital da Marinha, bem como do serviço de saúde naval. Criou vasta obra de organização e gestão de ambas.

Além dos centrais, quatro outros medalhões lembram quatro figuras ilustres na memória da instituição, a saber, Inácio Xavier da Silva (1755-1825), Bernardino António Gomes (1768-1823), Teodoro Ferreira de Aguiar (1767-1827) e Manuel Rodrigues Bastos (1811-1875), que completam a composição.

Inácio Xavier da Silva era físico-mor da Armada e foi o primeiro director do Hospital da Marinha, quando da instalação no Campo de Santa Clara, cargo que ocupou até 1824. Bernardino António Gomes foi o primeiro físico da Armada, científico distinto no campo da Medicina e Química. Teodoro Ferreira de Aguiar foi o primeiro cirurgião- mor da Armada mas em 1805 terá pedido exoneração, sendo transferido para o Exército,

134 Francisco Matos Rodrigues, “Hospitais Militares”, Dicionário de Lisboa, dir. por Francisco

Santana e Eduardo Sucena, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1994, p. 448. Não é conhecida ainda a localização destes azulejos, que foram retirados numa fase de obras e não foram recolocados.

onde viria a cumprir importante papel, enquanto cirurgião e reformador dos hospitais militares. Teve um papel preponderante na criação das Reais Escolas de Cirurgia. Manuel Rodrigues Bastos ocupou os cargos de director do hospital e do Serviço de Saúde Naval a partir de 1857. Físico-mor em Angola, foi a figura que mais modernizou o hospital em termos de instalações e de funcionamento geral, sendo dele a autoria do

Regulamento de Saúde Naval, de 1860.

Figura 96. D. Rodrigo de Sousa Coutinho com o Príncipe D. João assinando o Alvará para a construção do Hospital da Marinha. Figura 97. Dr. Bernardino António Gomes (filho) trabalhando na organização do Hospital e do Serviço de Saúde Naval.

Assim, seis medalhões em azulejos na Sala do Príncipe dão testemunho histórico e comemorativo de seis figuras de renome para a história do Hospital da Marinha. Mais uma vez, a prática do azulejo alia-se à vertente da iconografia comemorativa e da iconografia da memória.

Uma escada revestida com flores azuis em fundo amarelo esponjado leva à Capela, cujo átrio apresenta revestimento a azulejos produzidos pela Fábrica Viúva Lamego.

Figura 98. Medalhão alusivo a Bernardino António Gomes.

A autoria é de Eduardo Leite, artesão da fábrica, numa produção executada entre as décadas de 1930 e 1940. Eduardo Leite escolheu os tons de azul, amarelo, verde e manganés, numa composição de sete episódios ricamente emoldurados. A linguagem iconográfica utilizada é claramente revivalista, remetendo por um lado para as composições emolduradas do Barroco e por outro para a pintura histórica em azulejos de Jorge Colaço. São sete episódios relacionados com a cirurgia, alguns deles de índole claramente militar e a sua evolução no tempo. Distinguem-se uns dos outros pela roupagem e pelo arsenal cirúrgico utilizado.

O primeiro destes episódios leva-nos à Pré-história, sendo perceptíveis três figuras, uma das quais tratando um ferimento na perna de outra. No segundo momento, remetendo para a Antiguidade Clássica, assistimos a uma cirurgia na parede abdominal. O terceiro episódio leva-nos à observação de um ferido de guerra medieval e o quarto para a cirurgia numa mulher, em ambiente renascentista. Num quinto momento, alusivo ao século XVIII,

dois médicos observam, dentro de uma embarcação de pequenas dimensões, um marinheiro ferido numa campanha marítima. Na mão de um dos médicos, podemos observar uma caixa com os instrumentos necessários ao tratamento de ferimentos de guerra. O momento seguinte mostra uma tenda de campanha do tempo das Invasões Francesas. Um soldado ferido é assistido por dois soldados, um deles mede a pulsação e o outro analisa o ferimento de guerra.

O último momento da série remete para a cirurgia moderna, praticada nos dias de hoje, perceptível através do material cirúrgico que compõe a cena.

Do acervo patrimonial do Hospital da Marinha, tal como acontece em outros edifícios da Marinha Portuguesa, como é o caso da Capela do Arsenal ou a Capela do Farol da Guia, em Cascais, faz parte o conjunto de azulejos aqui descrito. Apesar da ausência do trabalho de Jorge Colaço, até agora por identificar, o conjunto dá conta da própria história de outra instituição com preponderância na história hospitalar do país.

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No documento Traços da medicina na azulejaria de Lisboa (páginas 155-162)