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MEMÓRIAS REMOTAS E A LINHA DO TEMPO NO

No documento joseaparecidodasilva (páginas 41-44)

No romance Infância, os capítulos são momentos ou fatos isolados, e a maioria deles pode ser lida separadamente, pois possui coesão interna; já alguns outros dependem de leitura de capítulos anteriores pois são citados personagens que, para compreensão do texto, necessitam de ser conhecidos previamente. Isso não interfere, no entanto, na leitura da obra que, no todo, mantém uma continuidade narrativa e cronológica. A idade do narrador-personagem compreende desde sua infância, com 2 ou 3 anos, até a puberdade, com 11 entre 12 anos.

A fim de estabelecer um continuum na narrativa, é importante identificar a sequencia dos fatos e a idade correspondente do narrador-personagem nos capítulos do romance. No percurso do romance, percebe-se, mesmo que superficialmente, seu crescimento etário, começando com sua tenra infância e passando discretamente pela adolescência nos capítulos finais. Há pouquíssimas indicações de sua idade. Por exemplo, já nos primeiros parágrafos, o narrador- personagem declara que estaria com dois ou três anos. Um pouco mais adiante, sua

idade é novamente mencionada, quando declara estar com nove anos e ainda ser analfabeto. Já no final, percebe-se sua passagem pela puberdade, estando com onze ou doze anos.

O primeiro capítulo, Nuvens, constitui-se de breves relatos das mais remotas memórias do narrador-personagem, quando então estava com dois ou três anos de idade: “Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos” (RAMOS, 1981, p. 9). O nome escolhido para o capítulo indica ser bem apropriado, pois o narrador-personagem admite em alguns relatos, ter dúvidas quanto à exatidão de algumas memórias, o que ele posteriormente comprova após a confirmação de pessoas neles envolvidas. Isso pode ser percebido em um destes relatos:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá- lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. [...] De qualquer modo a aparição deve ter sido real (RAMOS, 1981, p. 9).

Ainda no mesmo capítulo, o narrador-personagem relata sobre a viagem de Quebrangulo para uma fazenda próxima à Vila de Buíque. Durante a viagem a família pernoita numa escola, da qual o narrador-personagem, com três anos de idade, tem fragmentos de memórias recuperados de momentos intercalados entre a sonolência e o despertar: “E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido preto” (RAMOS, 1981, p. 11). Já morando na fazenda de propriedade de seu pai, o narrador-personagem inicia suas memórias descrevendo lembranças ainda incertas:

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio” (RAMOS, 1981, p. 12).

A partir daí, a narrativa prossegue e encerra o primeiro capítulo citando com mais detalhes os momentos e pessoas que lhe marcaram a vida na fazenda. O segundo capítulo, Manhã, continua com a descrição, abrangendo também a 41

movimentação das pessoas na fazenda, a saber, vaqueiros, visitantes idosos, o avô, bisavós, ciganos e cangaceiros. Apesar dos detalhes descritos, o narrador- personagem continua reafirmando a dificuldade em resgatar e remontar as memórias:

Naquele tempo a escuridão se ia dissipando, vagarosa. Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu próprio mundo incongruente. Às vezes as peças se descolavam ̶ e surgiam estranhas mudanças. Os objetos se tornavam irreconhecíveis, e a humanidade, feita de indivíduos que me atormentavam e indivíduos que não me atormentavam, perdia os característicos (RAMOS, 1981, p. 20).

A seca na região se prolongou e com ela veio a perda dos animais, do pasto, das plantas e da água. O negócio da fazenda estava arruinado. O próximo capítulo,

Verão, descreve os sofrimentos da seca, onde o narrador-personagem sentiu seus

efeitos: “Um dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. A carga de ancoretas chegaria logo. Tardou, a fonte era distante – e fiquei horas numa agonia, rondando o pote, com brasas na língua” (RAMOS, 1981, p. 20). A narrativa parece indicar que os empregados estavam retirando água dos mandacarus para suprir a sede: “Amaro e José Baía, armados de facões, estariam enchendo cestos com pedaços de mandacaru?” (RAMOS, 1981, p. 28). Com a fazenda em prejuízo financeiro, a família agora se muda para a Vila de Buíque, para o centro da Vila, onde abrem um comércio de miudezas, ferragens, grãos, fumos, arames e produtos agrícolas em geral. A intenção final era levar a família para Viçosa, Alagoas, e a morada em Buíque seria passageira, até que tivessem condições financeiras para fazê-la. Os capítulos Chegada à vila, A vila e Vida Nova tratam dessa mudança que causa grande impacto no narrador-personagem. Apesar de ser uma pequena cidade, ele ainda não conhecia locais maiores que Quebrangulo e fazendas de gado. Na vila conhece botequins, festas, nova linguagem, casas de dois pavimentos, novas pessoas, novas vestes, policiais com uniformes coloridos, jogos, novas personalidades, enfim, nova cultura. Assim, descreve o impacto cultural em sua mudança de ambiente, trazendo consigo sua cultura e obrigatoriamente absorvendo uma nova. Os capítulos seguintes, até Antonio do Vale contêm as narrativas memoriais referentes à vila de Buíque.

Tendo condições financeiras, a família realiza a esperada mudança para Viçosa, Alagoas. O capítulo Mudança resgata esse acontecimento. A partir deste

capítulo e prosseguindo até o final da obra, o narrador-personagem relata suas memórias recuperadas de fatos ocorridos em Viçosa. Nesse ínterim, com dez anos de idade, ocorre uma mudança significativa que iria definir a vida do narrador- personagem personagem, transformando-o num futuro escritor: a leitura de romances. No capítulo Jerônimo Barreto, o narrador-personagem se dedica a relembrar esse importante fato, quando solicita ao escrivão Jerônimo Barreto o empréstimo de sua vasta biblioteca. Sem titubear, este lhe empresta primeiramente o grosso volume de percalina vermelha da obra O Guarani, de José de Alencar. Inicia-se então sua paixão pela literatura. O capítulo Mário Venâncio narra a participação do narrador-personagem no jornal local, Dilúculo, e seu primeiro trabalho como escritor. O capítulo final, Laura, remete o narrador-personagem aos seus onze entre doze anos de idade. Encerram-se aí as memórias de infância.

No documento joseaparecidodasilva (páginas 41-44)