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4 O DIREITO E A REALIDADE: A COMPLEXIDADE DO CASO CONCRETO

4.4 LUZ, CÂMERA E REFLEXÃO

4.4.2 Menina de Ouro

220 O texto encontra-se na íntegra ao final deste trabalho.

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cai de pescoço em um banco. Acaba tetraplégica e ligada a respiradores.

A partir de então a discussão poderia seguir a mesma linha do filme Mar Adentro, focando na vida da protagonista pós-acidente e nas diferentes opiniões sobre o tema da eutanásia. Porém, a trama traz um ponto de vista ímpar às proposições deste trabalho ao evidenciar a importância do background, que deve ser entendido como nada mais que o conjunto de condições e circunstâncias antecedentes ao evento em questão.

De fato, Maggie não foi uma lutadora apenas dentro do ringue. Sozinha e em péssimas condições financeiras, trabalhava duro como garçonete para conseguir pagar a academia de boxe, recolhendo os restos dos pratos de seus clientes para ter o que comer em casa. Seu único sonho era lutar. Não encontrava prazer em mais nada e, apesar de não ter sequer habilidade com o saco de areia, treinou incessantemente até convencer Frankie Dunn (personagem de Clint Eastwood) a aceitá-la.

Esforçada e determinada, aprendeu rápido e em pouco tempo, contra todos os prognósticos, tornou-se uma das melhores de sua categoria. Vencia cada uma das adversárias, às vezes com facilidade surpreendente, ganhando fama e sendo aclamada pelos fãs do esporte. Mais tarde, quando sua existência ficou limitada à cama e ao quarto do hospital, disse ao treinador:

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Não posso viver assim. Não depois do que fiz. Eu vi o mundo, as pessoas cantavam o meu nome. [...]. Apareci em revistas. Acha que alguma vez sonhei com isso? Eu nasci com 950 gramas; papai me dizia que eu lutei para entrar no mundo. E agora quero lutar para sair... É só o que eu quero, Frankie. Eu não quero lutar com você por isso. Consegui o que eu queria, consegui tudo. Não deixe que tirem isso de mim. Não me deixe aqui até que eu não possa mais ouvir aquela gente cantar.

Mais do que as circunstâncias críticas enfrentadas, parece ser o conjunto prévio de vivências e percepções sobre a vida e a morte que dá o tom da decisão sobre o encurtamento da existência. Para Maggie, a realização como atleta foi o auge da sua vida e o que viria a seguir era só declínio. Alcançar o seu grande sonho mudou toda a cadeia de significantes e significados da sua existência. Dito de outro modo, o que teria decidido antes de tornar-se uma grande lutadora pode não ser a mesma decisão que veio a tomar, pela simples mudança de background. Seu corpo – que superou todos os limites e a levou tão longe –

lhe foi privado. Não que objetivamente tivesse mais valor do que o corpo de qualquer outra pessoa, mas, subjetivamente, no que concerne aos domínios individuais da consciência e as experiências únicas vividas, pesou no momento de sua escolha.

Logo, é importante reconhecer a impossibilidade de conceitos rígidos sobre o que é certo ou errado, digno ou indigno, no que diz respeito ao tema da morte. Cada pessoa é um universo inteiro a ser considerado e não esperam menos do que isso quando pedem a tutela de seus direitos. Por este ângulo, bem expõe Leonard M.

Martin:

[...] o rosto do doente cuja vida chega ao fim não pode ser escondido em toda

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esta discussão, nem seu nome esquecido. É quando se esconde o rosto e se esquece o nome que é mais fácil despersonalizar o caso e tratar o corpo objeto de nossos cuidados – como um objeto desprovido das complicações inerentes no trato da mãe, do filho ou do avô de alguém querido.221

Ademais, quando há determinação de morrer, a única contribuição possível é impedir que as únicas opções do interessado se resumam aos meios degradantes, eis que, não havendo melhor alternativa, o fará da maneira que estiver ao alcance – como demonstra a cena em que Maggie morde a própria língua no intuito de sangrar até morrer e precisa ser sedada e atada para evitar novas tentativas. Caso fosse um direito tutelado, alternativas mais brandas e humanas, livres da dor e do sofrimento, poderiam tomar o lugar das práticas brutais e veladas a que recorrem os desamparados, além de evitar a desídia e ingerência de terceiros.

[...] quem estiver em condições de causar a sua própria morte, uma vez que assim o queira, não pode ser impedido, ao passo que alguém que, em virtude de seu sofrimento e desespero, queira pôr fim à sua vida, mas por estar enfermo e se encontrar na dependência de terceiros não pode, por sua própria força, chegar ao resultado, resta obrigado a se submeter, sem qualquer alternativa, ao que o Estado, a família e os médicos consideram seja o mais adequado.222

221 MARTIN, Leonard M. Eutanásia e distanásia. In: Iniciação a bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 191.

222 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 5. ed. Saraiva, 2016. E-book. p. 421.

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O filme termina quando Frankie, não aguentando mais ver o sofrimento da protegida, atende o seu pedido e, aqui, não parece menos relevante considerar o sofrimento vivido por aqueles que se prestam a auxiliar o outro a morrer, mesmo que por compaixão e solidariedade. Retomando um dito anterior, há de se reforçar que a morte nos atinge a todos, tanto individualmente, como resultado inevitável da existência humana, mas também como um fenômeno coletivo, que atinge a todos que o rodeiam.

Conclui-se, portanto, que os filmes cumpriram sua missão. Nas palavras de outro protagonista, “É curioso como as cores do mundo real parecem muito mais reais quando vistas no cinema” (Alex DeLarge, de Laranja Mecânia).

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