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3. O filme e suas representações como despertadores de reflexões políticas

3.2 Representações do filme como contribuições para um despertar político

3.2.2 À mesa do café da manhã

O café da manhã é outro momento significativo. Na manhã seguinte à chegada de Klaatu à pensão, o personagem principal está sentado junto a um grupo de hóspedes quando uma conversa tem início. Paralelo à conversa do grupo, um locutor de rádio está expondo o seu ponto de vista sobre os acontecimentos de repercussão internacional. A câmera concentra- se na personagem da Sra. Barley, uma das residentes da pensão, que está espantada com uma ilustração no jornal, com a seguinte frase no topo da página: “Somos muitos para este mundo?”, que acentua o evento da chegada extraterrestre, mostrando vários discos voadores no céu e alguns alienígenas voadores, vestidos com os mesmos trajes de Klaatu, disparando raios por meio de rifles, enquanto o robô Gort aterroriza a população no solo.220 Ela procura se aprofundar na leitura do periódico, mas, incomodada pela transmissão do noticiário de rádio, pede para que o aparelho seja desligado a fim de que ela se concentrasse na leitura do jornal. Alguns detalhes importantes da conversa surgem à tona. O primeiro deles é a permanência do robô Gort, companheiro do alienígena, que está imóvel no local de pouso da espaçonave alienígena. Especula-se sobre qual é o motivo de sua inércia e se isso é uma estratégia para uma ação de maiores proporções, tendo em vista o estrago efetuado por ele no primeiro contato com o exército.

Imagem 10: O espanto da Sra. Barley com a ilustração no jornal.

220 O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still) Direção: Robert Wise, 1951. Estados Unidos,

Fonte: http://teladecinema.net/o-dia-em-que-a-terra-parou-dual-audio-1080p-1951/ O robô Gort transmite a sensação física da destruição em massa concentrada que uma arma tecnologicamente avançada possui, tal como a bomba atômica demonstrou ser desde os seus testes iniciais pelos cientistas até o seu uso mais emblemático quando do ataque às cidades japonesas durante a II Guerra Mundial. Hellen, a viúva de guerra, parece ser a única a ter uma visão positiva do estrangeiro, mesmo diante de tudo que ocorrera. Ela explicita o seu ponto de vista, colocando-se no lugar dele, que se sentiu ameaçado por ter sido ferido, e consequentemente escolheu a ocultação em favor de uma retomada da sua abordagem inicial que era o contato público.

Torna-se fundamental a abrangência desta mensagem a nível universal, já que a ela vem do exterior, de fora de nosso mundo. Esse elemento externo nos remete à síntese de nossas próprias relações intraterrenas: o conflito de raças. Os Estados Unidos acentuaram esse estigma social ao propagarem continuadamente o preconceito contra os imigrantes que se estabeleceram em suas terras, como os latino-americanos e, até mesmo, sendo palco de constantes instabilidades sociais entre brancos e negros. E não somente grande parte dos norte-americanos, como os próprios alemães, com o seu histórico recente, tomando-se como base o período circunscrito à Segunda Grande Guerra, onde os sentimentos de ódio afloraram contra judeus, e também a outros estrangeiros que eles julgavam ser inferiores.

E é justamente a alteridade racial que se mostra como poderosa estratégia narrativa no gênero de ficção-científica, pois o antagonismo proveniente do choque de culturas221 é o precursor de todos os eventos em cadeia, e aqui neste filme, esse elemento torna-se um objeto importante na exploração de nossas próprias relações históricas à época do filme.

Durante a exposição de Hellen, Carpenter (Klaatu) toma partido e indica outra questão, a de que o alienígena desejaria conhecer melhor o seu agressor antes de tomar outra ação

precipitada, o que nos remete a uma das principais estratégias de uma guerra, de acordo com suas palavras: “orientar-se em um ambiente estranho para conhecer o inimigo”. É nesse instante que outro diálogo-chave desta conversa em torno da mesa é iniciado pela personagem Sra. Barley:

Sra. Barley: “Não há nada de estranho a respeito de Washington, Sr.

Carpenter.”

Carpenter: “Para um ser de outro planeta, poderia ser confuso.”

Sra. Barley: “Se quiserem minha opinião, ele vem daqui da Terra, e vocês

sabem do que estou falando”.

Sr. Krull: “Eles não viriam em naves espaciais, viriam em aviões.” Sra. Barley: “Não estou muito segura disso”.222

A desconfiança da origem ‘não-extraterrena’ do visitante é uma alusão ao inimigo principal dos Estados Unidos naquele período: os soviéticos, e a consequente possibilidade de uma invasão tramada por eles. Tal conclusão precipitada da personagem vai ao encontro da própria mitologia criada em torno dos chamados discos-voadores e que Roland Barthes enfoca dentro das relações políticas terrestres:

Supunha-se que os discos voadores vinham do desconhecido soviético, desse mundo tão privado de intenções claras quanto qualquer outro planeta. Esta forma do mito continha já, em seu germe, o seu desenvolvimento planetário; se o disco transformou tão facilmente, de engenho soviético em engenho marciano, foi porque, de fato, a mitologia ocidental atribui ao mundo comunista a própria alteridade de um planeta: a URSS é um mundo intermediário entre Terra e Marte. Simplesmente o maravilhoso, no seu devir, mudou de sentido: passou-se do mito de combate ao do julgamento. (...) A grande contestação URSS-EUA é assim considerada doravante como um estado culpável, porque não existe aqui medida comum entre o perigo e os direitos recíprocos, daí o apelo místico a um olhar celeste suficientemente potente para intimidar as duas facções. 223

Mas, a personagem da Sr. Barley, em seus poucos pontos de vista, demonstra a mentalidade de grande parte dos cidadãos norte-americanos que se sintonizavam com os ideais políticos do país naquele momento, com seu patriotismo fiel, moldado pela ideologia nacionalista não somente do governo, como também de toda a sociedade americana, desde o início do século XIX. A crença cega de segurança transmitida na frase “Não há nada de

222 O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still) Direção: Robert Wise, 1951. Estados Unidos, 20th

Century Fox. 1 Blu-ray (93 min) NTSC, son. Preto e branco. (00:27:33 – 00:27:51).

estranho a respeito de Washington, Sr. Carpenter” mostra essa noção idealizada de um governo do povo, para o povo e com o povo 224.

Em ambos os trechos, com mais atenção, podemos captar as impressões deixadas pelos personagens de como a governanta e os outros ao redor da mesa sentiam-se com relação aos eventos de ordem nacional e internacional, tendo como foco os recentes eventos. A questão da chegada do extraterrestre, encarada como invasão, supostamente arquitetada pelos soviéticos, o pânico do público diante do desconhecido, mesmo que este não oferecesse nenhum motivo para alarme e o incidente ocorrido durante o contato, mediante a ação não pensada do militar encarregado de cercar o veículo espacial. Robert Wise concentra, na construção desta cena, um diálogo com elementos inerentes àquele presente em questão, onde, por meio da discussão entre os personagens, o espectador é indiretamente despertado para a reflexão. Concebida com um leve tom de humor, as falas retratam bem esse aspecto, uma vez que os residentes da pensão discutem seus pontos de vistas sobre os recentes acontecimentos nacionais, num misto de preocupação e conclusões que, a princípio, pareciam ingênuas, mas que eram aquelas possíveis para a maioria da sociedade.

O locutor do rádio contribui para moldar os ânimos, promovendo uma transmissão que procura inflamar os ouvidos com frases de incentivo à caça e ao expurgo da ameaça externa por quaisquer meios disponíveis. É inevitável o paralelo político com as práticas discursivas difundidas por membros do governo no que tange à caça aos comunistas. Como parte dessa política, pré-identificadas, pessoas suspeitas poderiam ser denunciadas e, sem prévia explicação, seriam enquadradas numa perspectiva de subversão segundo os critérios do governo. A fala de seus personagens e a influência da imprensa é uma representação de peso da sociedade norte-americana. A mesa do café é o palco de debate que funciona como meio informativo e de desabafo. Klaatu exerce um papel de analista social que, camuflado em seu alter ego Carpenter, consegue justamente alcançar o que ele mesmo proclamou em suas palavras: orientação e consequentemente a solução para suas perguntas.

E é também a partir desta cena que vão se desenvolver os elementos que levarão o personagem principal a uma maior ligação com o mundo exterior. Em seguida, Klaatu vai ao encontro do professor. Por meio deste pretexto, ele poderá conhecer melhor a própria cidade de Washington através da companhia do menino Bob.

224 Frase pronunciada por Abraham Lincoln naquele que se tornou o seu mais famoso discurso realizado no

Cemitério Militar de Gettysburg em 19 de novembro de 1863. Em um pequeno discurso ele invocou os princípios de Igualitarismo originais da Declaração de Independência dos Estados Unidos.