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CAPITULO 1: “Não quero a morte como solução” A espiral da violência

1.3. Mesmos lugares, tudo diferente: Espiralização da violência

Como já explicitado, os movimentos entre os tempos diegéticos, o uso do flashback e as “pontes” entre as épocas representadas em Quase dois irmãos são importantes para o efeito de espiralização do filme. De acordo com Casetti, as imagens de um filme adquirem um valor que não pertencem a elas mesmas, isoladamente, ao se unirem às outras, seja por semelhança, por contraste ou pela simples sucessão. Seria, portanto, a sua conexão dentro da obra que forneceria sentidos e implicações concretas para o conjunto de planos, que compõem uma produção cinematográfica.45

O valor dos planos na análise fílmica se estabelece da união com os demais planos, e a partir destas conexões o sentido da obra é produzido. Em Quase dois irmãos, as opções estéticas pelo uso de uma forma narrativa não linear transfere à conexão entre as épocas pelo uso do flashback a função fundamental do sentido de continuidade e acirramento dos conflitos sociais.

Partindo da metodologia utilizada por Ismail Xavier, compreendemos que o filme estabelece relação com a sociedade, a partir dos movimentos internos da forma com a qual imagem e som são elaborados dentro da obra. A compreensão dos significados internos e externos da obra é fundamental para alcançar a sua relação com a sociedade de forma a construir “uma crítica que mostre a forma estética como decantação da experiência histórica”46

Após a exposição dos problemas sociais do presente diegético no bloco 4, através do flashback, retornou-se à Ilha Grande e os conflitos que originaram a facção de Jorginho, assim como o estabelecimento do crime organizado enquanto poder paralelo. Inicialmente, com a cisão física entre alas de presos comuns e presos políticos

45 CASETTI, Francesco. Teorías del cine, 1945-1990. Traducción de Pepa Linares. Madri: Ediciones Cátedra, 1994. P. 84.

46 XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007 p.203.

39 e, posteriormente, com a conquista do comando dos presos comuns por Jorginho. Nas sequências finais da obra foram intercaladas cenas do embate entre os presos comuns e o assassinato do grupo rival de Jorge, culminando na consolidação do poder deste no presídio na década de 1970, juntamente com cenas do conflito no morro dos Macacos no qual o grupo de traficantes rivais à Jorge e Deley dominam o lugar, com o assassinato do primeiro.

Apesar da conformação da ala com apenas presos comuns, Jorginho quis instituir apenas uma quadrilha no qual seriam proibidas a perseguição e humilhação dos outros presos. Em um plano contínuo, após Pingão obrigar dois presos a dançarem no meio da galeria, Jorginho afirmou que a separação não seria motivo para “causar terror” dentro da ala. Pingão retrucou, afirmando a ausência de regras para eles. Em plano americano contínuo, a câmera registrou a discussão, com movimentos rápidos entre um personagem e outro, assumindo o ponto de vista de um espectador diegético do conflito, abrindo mão da técnica de campo e contra-campo que sugere um narrador onipresente. Com o deboche de Pingão sobre a influência da forma de organização dos guerrilheiros, Jorginho decretou a criação de uma quadrilha única na ala dos presos comuns, o que levaria a eliminação daqueles que não se integrassem.

Na sequência desta cena, o plano no Morro dos Macacos, com um movimento de câmera de baixo para cima, destacou uma pedra com a escritura C.V., fazendo referência ao Comando Vermelho. A transição do plano da Ilha Grande para a pedra estabelece a conexão entre a quadrilha formada por Jorginho (Falange Vermelha) com a atual facção do morro.

Nos planos-sequência, intercalam-se o plano do grupo de Deley fumando maconha, armados em um ponto do morro, e o grupo de Duda descendo o morro, armados e à espreita. Retornou-se ao presídio no plano no qual Pingão se negou a contribuir para fuga de integrantes da quadrilha de Jorginho, e afrontando a autoridade deste.

No plano seguinte, Deley planejou o ataque na organização de Duda, receoso da sua insubordinação, todavia surpreendido pela ofensiva do rival. Em plano aberto, temos o tiroteio entre as duas facções. Com o uso da técnica de “câmera na mão”, o plano decorre com movimentos rápidos, e alguns momentos a câmera assume o olhar

40 dos personagens. Observamos aqui a produção da sensação de inserção do espectador como participante da cena, integrado aos movimentos rápidos e confusos. Ao final da ação foram focalizados os jovens mortos no conflito, entre eles um adolescente. Com o uso de trilha sonora diegética, apenas os sons dos tiros e dos gritos de comando forneceram essa sequência uma conotação realista, exaltando a brutalidade da ação. (Fotografias 2, 4 e 6)

Em seguida, temos o extermínio do grupo de Pingão pelo de Jorginho na Ilha Grande. Ao som de amolação dos pedaços de ferros usados como faca, e distorções de guitarras extradiegéticas, os presos que discordavam são assassinados por Jorginho. A partir do uso plano detalhe e da focalização dispersa, ora na ação, ora em locais da cadeia (como nas grades), acompanhada dos gritos de dor, a violência da ação ficou subtendida, não foi explicitada como no confronto no Morro dos Macacos. O uso da trilha sonora com sons de distorção de guitarras elétricas intensificou a violência da cena, com planos sequências em plano detalhe, produzindo sensação sufocante ao expectador.

Ao final, o enquadramento foi feito de forma a dar destaque aos corpos estendidos à frente de Jorginho com a faca na mão junto a sua quadrilha, a câmera que estava em plano detalhe afastou-se, causando a abertura do plano. (Fotografias 3, 5 e 7). Com expressões melancólicas, Miguel observou o gozo do amigo com a situação, em narração over o militante afirmou: “Não quero a morte meu irmão, por mais utópico que lhe possa parecer. Eu não quero a morte como solução. ”

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FIGURA 2 DUDA E SUA GANGUE PREPARAM O ATAQUE À DELEY

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FIGURA 4 GRUPO DE DUDA INICIOU O ATAQUE ATIRANDO NO ADOLESCENTE, QUE TRABALHAVA

PARA DELEY

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FIGURA 6 INTEGRANTES DO GRUPO DE DELEY ASSASSINADOS PE LO GRUPO DE DUDA

FIGURA 7 GRUPO CONTRÁRIO AJORGINHO ASSASSINADOS

Essa cena foi constituída de planos curtos e com rápido movimento de alternância das épocas. As configurações sociais do presente foram relacionadas a organização do passado: consolidação do crime organizado liderado por Jorge na década de 1970, originando o seu poder na favela até o presente diegético e a tomada deste poder por outro grupo, o que repetiu o ocorrido no presídio da Ilha Grande. A construção de intercalação dos planos sequências desses dois embates por poder conferem a este final um sentido de consequência e também repetição. Houve um

44 caminho similar para o desenvolvimento dos planos, como a preparação da tocaia de Jorginho e de Duda, e o destaque aos mortos no conflito.

A estética dos planos produziu a potencialização da violência no confronto no morro com relação a do presídio, havendo uma maior explicitação da brutalidade da ação pela clareza das imagens e pelo uso do recurso narrativo, além da sobreposição da visão dos personagens com a do narrador. Temos, a partir deste conjunto de planos, uma síntese do movimento que a obra realiza de espiralização da violência. Como abordado ao longo do capítulo, a intercalação das épocas de forma não-linear, produz um efeito de demonstração das continuidades e mudanças ocorridas com as pessoas pobres e negras, originando um acirramento das tensões sociais.

A sequência de intensificação da violência consolidou o movimento de escalada da brutalidade sofrida pelas camadas populares, cuja dinâmica perpassa agressões simbólicas sofridas por Seu Jorge, a violência física vivenciada e propagada por Jorginho, finalizando na guerra entre organizações criminosas no morro. A sequência de planos, conforme descrita, produziu uma relação direta entre os eventos no presídio e a escalada de violência no presente diegético, formulando a espiral de violência contínua e sem projeções de um futuro melhor. O golpe de 1964 e o estabelecimento do governo autoritário funcionou como catalisador para os problemas sociais, como veremos no capítulo a seguir.

A partir da análise formal e de gênero da obra realizada neste capítulo, concluímos que essa forma estética se consolida no hibridismo entre melodrama e tragédia, não se limitando as conformações dos gêneros. Os embates sociais postos não se restringiram às questões morais ou resoluções simples, como no melodrama, produzindo uma complexidade à representação fílmica. Entretanto, o movimento dramático da obra, com equilíbrio nos blocos 1 a 3, desequilíbrio nos blocos 4 e 5 e o retorno ao equilíbrio no último bloco, insere a obra, da mesma forma,ao melodrama.

As cenas de confronto, portanto, sintetizam o movimento da estrutura narrativa da obra de acirramento da violência, que, através da sua forma estética, sedimenta a experiência histórica. A composição dos planos-sequência com a intercalação entre presente e passado diegético, conforme expomos neste capítulo, produziu o efeito de potencialização da violência como consequência e repetição do passado.

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CAPITULO 2 “A esquerda que não sabe nada de trabalhador” -