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4.3 Os Processos de GR da partícula embora

4.3.1 Metáfora e Metonímia

Feito o mapeamento histórico de embora, a verificação dos contextos que provavelmente favoreceram o surgimento do novo significado, e a(s) fonte(s) da concessiva embora, nota-se que o item tal como empregado nos séculos XV ao XIX ganhou traços sintáticos de conjunção e semânticos de concessão. Essa trajetória diacrônica poderia ser disposta no seguinte cline proposto por Hopper e Traugott (1993):

(01) item menos gramatical > item mais gramatical

Para melhor visualizar essa passagem, adoto o esquema proposto por Heine et al. (1991ab), discutido em 1.5. Segundo os autores, a passagem de uma categoria a outra da língua se dá por dois mecanismos, a saber, a metáfora e a metonímia. A fim de melhor explicar a passagem de em boa hora para um novo domínio semântico, recorro ao conceito de metáfora proposto pelos autores, e, para depreender a gradualidade desse processo, recorro ao conceito de metonímia. Para tanto, utilizo os esquemas dos autores, já mencionados anteriormente, para dispor a passagem de tempo a concessão.

Na formação de embora, o advérbio temporal que originou a conjunção concessiva poderia ser inserido entre uma das categorias cognitivas propostas por Heine et al. (1991ab):

(02) PESSOA > OBJETO > PROCESSO > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE

(HEINE et al. 1991b; p.157)

A fonte da concessiva embora poderia ser inserida na categoria cognitiva tempo, que deve ter passado, metaforicamente, à categoria qualidade, em que se encontram os itens que denotam causa, condição, concessão, etc. Desse modo, confirmando a afirmação dos autores de que há uma abstratização de significado na passagem de uma categoria da esquerda para a direita, o significado concessivo de embora é, portanto, mais abstrato que sua fonte temporal.

Assim, por metafóra, a locução temporal em boa hora foi usada para denotar concessão, passando a ser entendida cognitivamente pelos falantes da língua. O esquema metafórico do desenvolvimento dessa concessiva pode ser o seguinte:

(03) tempo > qualidade

locução adverbial > conjunção concessiva em boa hora > embora

Porém, como foi verificado nos dados diacrônicos, essa passagem não se deu de forma abrupta, já que houve contextos de ambigüidade, e, como os dados sincrônicos revelaram, a conjunção ainda preserva traços sintáticos do advérbio de origem. Dessa forma, é provável que ainda haja momentos de sobreposição entre o advérbio e a conjunção, uma vez que o advérbio é reconhecido por sua mobilidade sintática e a conjunção pela sua maior rigidez dentro da sentença.

Para comprovar o processo gradual do desenvolvimento do conector concessivo no português, retomo o seguinte type caracterizados nos dados da sincronia atual da língua, a saber, a conjunção concessiva. A fim de ilustrar, cito novamente um exemplo desse padrão:

(21) Dotado de flora riquíssima e variada, conta o Brasil com grande número de espécies vegetais que o povo emprega para debelar os mais diversos males, faltando-lhe embora competência para julgar dos resultados. (CEL:Beblt)

Como foi discutido anteriormente, embora apresenta mobilidade sintática muito parecida com advérbios que podem ser deslocados para qualquer ponto do enunciado. Em (21), sua posição entre verbo e complemento poderia ser trocada por:

(21’) Dotado de flora riquíssima e variada, conta o Brasil com grande número de espécies vegetais que o povo emprega para debelar os mais diversos males, embora faltando-lhe competência para julgar dos resultados. (CEL:Beblt)

Pela possibilidade do item aparecer anteposto ao verbo e ainda preservar o sentido concessivo dentro desse contexto, nos permite aproximar o item da classe dos advérbios. Além disso, como já foi dito na metodologia, a forma de gerúndio, presente nesse contexto de uso, não permite que embora apresente características daquelas conjunções mais prototípicas como o se e o porque.

Contudo, embora, nessa ocorrência, não admite ser colocada na posição mais recorrente dos advérbios, no final de orações. Nesses termos, seria improvável:

(21*) Dotado de flora riquíssima e variada, conta o Brasil com grande número de espécies vegetais que o povo emprega para debelar os mais diversos males, faltando-lhe competência para julgar dos resultados embora. (CEL:Beblt)

Por isso, é possível concluir que se, por um lado, o item compartilha características com os advérbios, ele não pertence totalmente a essa classe de palavras. Pelo contrário, embora, nesse exemplo, também apresenta funcionamento muito parecido com as conjunções, como, por exemplo, estabelecer relação semântica entre orações. Por esse motivo é que o item não pode ser deslocado para o final do enunciado, já que deixaria de estabelecer a relação de concessão entre as orações.

Desse modo é que se configura a gradualidade do desenvolvimento da conjunção embora do português, a sobreposição entre sua forma de origem, locução adverbial e sua forma alvo, a conjunção.

Se a investigação sincrônica permitiu verificar essa sobreposição sintática de embora, na descrição diacrônica foi possível captar também a mudança semântica em sua gradualidade, que segundo Heine e et. (1991ab) pode ser apreendida pela noção de metonímia.

O processo de natureza metonímica se dá sempre por pressões do contexto lingüístico, que sugerem uma ambigüidade na transposição entre as categorias. Assim, as categorias estão relacionadas umas com as outras. Para melhor visualizar esse momento de ambigüidade na passagem de advérbio temporal à conjunção concessiva, vale a pena retomar o seguinte esquema proposto pelos autores:

PESSOA OBJETO PROCESSO ESPAÇO TEMPO QUALIDADE

(HEINE et al. 1991b; p.162)

Como foi visto, o momento de ambigüidade na trajetória de mudança de embora foi localizado século XVI, com a ocorrência (54), e no século XVII, com os exemplos (58) e (59):

(54)Agora, agora, agora Esta doma que lá vai Soma que casei embora Sem licença de meu pae;

E diz que a não quer por nora. (16APP, 24)

(58) Oh boa razão para hum fervuo de Iefuf Chrifto ! zombem, & não goftem embora, & façamos nós noffos officio. A doutrina de que elles zombão, a doutrina q elles defeftimão, effa he a que lhes deuemos prégar, & por iffo mesmo: porq he a mays hão mifter. (17SS, 78)

(59) Algum dia vos engãnaftes tanto comigo, que fahieys do fermão muyto contentes do prégador: agora quizera eu defengãnaruos tanto; que fahireys muyto defcontentes de vós.

Semeadores do Evangelho eys aqui o que deuemos pretender nos noffos fermoens, não que os homens fayão contentes de nós, fenão que fayão muyto defcontentes de fi: não que lhes pareção bem os noffos conceytos; mas que lhe pareção mal os feos coftumes; as fuas vidas, os feos paffatempos, as fuas ambiçoens, & em fim todos os feos peccados. Com tanto que fe defcontentem de fi, defcontentem fe embora de nós. (17SS, 84)

Como já foi analisado, nesses exemplos, a leitura temporal é conservada pela posição do item na sentença, mas, por outro lado, o contexto adversativo/negativo sugere sua leitura concessiva.

Por essa razão, os dados corroboraram a afirmação sobre a gradualidade do processo de GR, em que há um momento de sobreposição na formação do novo significado. Desse modo, aspecto da formação da concessiva embora pode ser ilustrado com a seguinte representação:

TEMPO CONCESSÃO

FIGURA 02: SOBREPOSIÇÃO DE SIGNIFICADO NA FORMAÇÃO DE EMBORA

Conforme previsto, a trajetória de GR da concessiva embora por ser explicada pelos processos cognitivos retomados de Heine et al. (1991ab). Pela metáfora, explica- se a passagem do domínio cognitivo tempo ao domínio qualidade, no qual estariam as concessivas, como mostrado em (03), ao passo que, pela metonímia, percebe-se a gradualidade, conseqüentemente os casos de ambigüidade na formação da concessiva embora, conforme representado na figura acima.

Além disso, os dados sincrônicos permitiram confirmar a gradualidade que ocorre no processo de GR, pelas características que embora demonstrou compartilhar com advérbios e com conjunções. Desse modo, pela verificação do desenvolvimento de

embora foi possível confirmar um dos atributos dados ao processo de GR em sua definição, a saber, a gradualidade do processo.

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