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Capítulo I – Cor local: entre a metáfora e o exotismo

1. A dimensão metafórica da cor local

1.3 Metáfora retórica

Afinal, a escrita dispõe de elementos e recursos que interferem na construção da figura do historiador, seu caráter, e no estabelecimento de sua argumentação. A metáfora, nesse sentido, possui um valor significativo, pois, como será demonstrado a partir de Aristóteles, ela confere vivacidade à narrativa, retém um instrumental pedagógico e possibilita com seu emprego criar imagens. É possível, no limite, afirmar que a metáfora participa inclusive do processo de construção de provas, na medida em que a comprovação também requer um tratamento narrativo. Isso porque “é a metáfora sobretudo”, argumenta Aristóteles, “que fornece perspicácia, prazer, e exotismo, e que não pode ser aprendida de nenhuma outra forma; mas precisa-se fazer uso das metáforas e epítetos que são apropriados”.68 Ricoeur lembra que é, mormente, a reflexão sobre a

67 Nesse sentido, é importante, desde já, estabelecer um pressuposto. Não se trata aqui de equivaler

persuasão e prova, convencimento e verdade. O debate é antigo e remonta, pelo menos, às discussões platônicas acerca da retórica sofística. No campo historiográfico, mais recentemente, tem recebido atenção constante de historiadores como Ginzburg. GINZBURG, Carlo. “Introdução”. In: Relações de força, op. cit., pp. 13-45. Reconheço, pois, a distância e a separação entre estes elementos. Segundo Chaïm Perelman, por exemplo, persuadir e convencer são atitudes diferentes. Se o destaque é dado ao resultado, o âmbito da persuasão se torna mais importante. PERELMAN, Chaïm. “Lógica e retórica”. In: Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 59. Se, contudo, o processo racional é valorizado, a primazia passa a ser concedida ao convencimento. Ibidem, p. 60. Perelman, todavia, tende a considerar tal oposição simplória e insuficiente para as pretensões retóricas. Ibidem, p. 63. Neste sentido, é válido ressaltar que mesmo a prova é, no limite, uma forma de convencimento – que poderíamos classificar como incontestável ou passível de refutação somente por outra prova. Para Megill e McCloskey, o historiador, ainda hoje, tem como fim persuadir o leitor. MEGILL, Allan; McCLOSKEY, Donald. “The Rhetoric of History”. In: NELSON, John. The Rhetoric of the Human Sciences. Language and Argument in Scholarship and Public Affairs. Madison: The University of Wisconsin Press, 1987, p. 221. O historiador estabelece um pacto com o leitor e é isso que lhe permite ser crível. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, pp. 274-275. Fatores como a caracterização do narrador, na medida em que ele se afirma historiador ou proclama que seu texto é uma obra de história, continuam a participar dessa credibilidade. Afinal, é a partir disso que o pacto é assinado. Não pretendo aqui defender que a história não depende de fontes e provas, longe disso, mas sustentar que ela se faz com recursos e instrumentos que ultrapassam esses elementos, como o estilo, por exemplo, conforme lembra Gay. GAY, Peter. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burkhardt. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 177.

68 ARISTÓTELES. The “art” of rhetoric, op. cit., p. 355, (III, 2, 8). Na versão para a língua portuguesa realizada por Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena, a expressão exotismo traduz foreign air utilizada na edição inglesa da obra. Cf. ARISTÓTELES. Retórica. op. cit., p. 180.

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elegância e a vivacidade da expressão que fornece observações sobre o uso retórico da metáfora, pois é aí que reside seu valor instrutivo.69 De fato, Aristóteles defende o uso da metáfora na prosa devido ao seu caráter pedagógico. No capítulo X da Retórica, dedicado justamente ao recurso, ele assevera:

Fácil aprendizagem é naturalmente agradável a todos, e as palavras significam algo, assim, todas as palavras que nos ensinam algo são mais agradáveis. Há palavras estranhas que nos são desconhecidas, e termos próprios que já conhecemos. É a metáfora, portanto, que acima de tudo, produz este efeito [...].70

Isso é significativo porque outro elemento fundamental a este estudo é a noção aristotélica de que a metáfora faz imagens, ou seja, coloca as coisas sob os olhos do público ou do leitor. Ela possui, enfim, o poder de presentificar. As metáforas, aliás, são extraídas das coisas belas em som e efeito, das formas de percepção e também do poder de visualização.71 É justamente esse efeito que torna a expressão elegante. Observemos, novamente, a fala aristotélica:

Foi dito que passagens inteligentes [smart sayings] são derivadas de metáforas proporcionais e expressões que colocam as coisas diante dos olhos. Agora é necessário explicar o significado de “diante dos olhos”, e o que precisa ser feito para produzir isso. Quero dizer que as coisas são colocadas diante dos olhos pelas palavras que significam.72

Ricoeur complementa: “ela [a metáfora] dá à captação do gênero a coloração concreta que os modernos denominarão estilo imagético, estilo figurado”.73 E acrescenta: “‘Pôr sob os olhos’ não é, nesse caso, uma função acessória da metáfora, mas, antes, próprio da figura. A mesma metáfora pode assim comportar o momento lógico da proporcionalidade e o momento sensível da figurabilidade”.74 Ademais, na Poética, Aristóteles também argumenta que o aprendizado é agradável e, por extensão, a visualização produz aprendizado:

69 RICOEUR, Paul. A metáfora viva, op. cit., pp. 58-60.

70 ARISTÒTELES. The “art” of rhetoric, op. cit., pp. 395-397, (III, 10, 2). 71 Ibidem, p. 359, (III, 2, 13).

72 Ibidem, p. 405, (III, 11, 1-2). Uma vez mais recorro à tradução portuguesa para potencializar a compreensão: “Na verdade, chamo ‘pôr diante dos olhos’ aquilo que representa uma acção”. ARISTÓTELES. Retórica, op. cit., p. 200. Neste aspecto, retórica e poética se assemelham, pois Aristóteles argumenta que na construção da fábula, o poeta precisa ter a cena o mais possível diante dos olhos, afinal isso lhe permite evitar as contradições. ARISTÓTELES. Poetics, op. cit., 1455a.

73 RICOEUR, Paul. A metáfora viva, op. cit., p. 60. 74 Ibidem, p. 60.

46 A razão do porquê apreciamos ver o semelhante é que, enquanto olhamos aprendemos e inferimos o que isso é, por exemplo, isto é isso e aquilo. Se acontece de nunca vermos o original, nosso prazer não é devido à representação como tal, mas à técnica, à cor ou devido à outra causa semelhante.75

Aí está, pois, a razão pela qual o estudo da cor local principia por uma análise das potencialidades da sua dimensão metafórica.76 As teorizações antigas apontam para a dimensão imagética da estrutura metafórica. Ora, a subsistência de propriedades retóricas no século XIX, permite identificar e evidenciar igualmente esta dimensão na metáfora da cor local. Isso porque o vocabulário pictórico que a cor local origina e do qual participa, tem como função, tornar as coisas presentes. Explico: a utilização da retórica pictórica possui como um de seus escopos tornar visível o que é descrito, isto é, presentificar o que está ausente.77 Ao tratar do emprego da cor local pelos narrativistas franceses, Fluckiger recorda que os historiadores defendiam uma mediação transparente entre o passado e o presente, ou, em outras palavras, o próprio passado deveria emergir na narrativa. Esta contiguidade seria capaz, inclusive, de ressuscitar o tempo precedente.78

Desta forma, o passado é presentificado por meio de imagens do pretérito. Isto remete ao que Liliane Louvel denomina de iconotexto, ou seja, a introdução de imagens na narrativa a partir das palavras. A pesquisadora lembra que essa introdução promove o ingresso no domínio da retórica, posto que se trata de um pensamento por analogia ou metáfora que é capaz de transportar o sentido de um receptáculo a outro.79 Ademais, quando se trata da descrição de imagens reais – como da paisagem nacional, por exemplo – a autora acredita que o objetivo passa a ser autenticar o relato, ancorar a narrativa no tempo e em um lugar real facilmente verificável por quem lê a obra. O intuito seria, enfim, persuadir o leitor.80 A persuasão, nesse caso, se dá através da autópsia, procedimento legítimo de constituição da argumentação historiográfica no oitocentos e que permite ao leitor “observar” o que é narrado. Vejamo-lo.

75 ARISTÓTELES. Poetics, op. cit., 1448b. Na Metafísica, Aristóteles destaca que a visão é o principal sentido. ARISTÓTELES. Metaphysics - Aristotle in 23 Volumes. Cambridge, MA: Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd. 1933, 1989, v. 17/18, (I, 980a). Disponível em: <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/>.

76 Ricoeur admite que a teorização aristotélica definiu o emprego da metáfora por séculos. RICOEUR, Paul. A metáfora viva, op. cit., p. 25.

77 Esta potencialidade será fundamental para a argumentação exposta neste estudo. Por isso, uma parcela do capítulo final versará justamente sobre esta dimensão presentificadora.

78 FLUCKIGER, Carine. L’histoire entre art et science, op. cit., p. 75.

79 LOUVEL, Liliane. L’oeil du texte: texte et image dans la littérature de langue anglaise. Paris: Presses Universitaires du Mirail, 1998, p. 84.

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Atuante desde a historiografia antiga, a autópsia continua presente como demanda na historiografia oitocentista, justamente no momento da definição dos mecanismos que deveriam reger o ofício histórico. Segundo François Hartog, há uma forte relação entre a visão e a persuasão. O eu vi do historiador faz nascer uma crença na audiência.81 A vista é um instrumento do conhecimento, o que permite à autópsia fundamentar a veracidade das proposições.82 Por isso é tão difundida, no período oitocentista, a ideia da viagem e da presença do historiador nas regiões tratadas nas obras historiográficas. A autópsia inclusive é capaz de dirimir as dúvidas referentes às questões nacionais, como lembra, por exemplo, Rodrigo de Souza da Silva Pontes. De acordo com o magistrado e político no seu trabalho intitulado Quaes os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possivel de documentos relativos á Historia e Geographia do Brasil?, publicado na Revista do IHGB, em 1841:

As excursões scientificas porêm não se destinam sómente a colligir copias, desenhos, ou descripções de monumentos. Pontos ha de Historia e Geographia referidos, ou indicados pelos diversos escriptores de maneira opposta e contradictoria. Alguma vez succede que se não possa ajuizar da sua maior ou menor exactidão, sem exame e conhecimento dos logares em que se passaram as scenas relatadas, ou sem determinar, segundo os principios da sciencia, a posição geographica destes mesmos logares.83

E nessa proposta, Silva Pontes não está sozinho. Joaquim Manuel de Macedo defende igualmente essa medida. No seu artigo, o autor questiona alguns fatos referentes à guerra contra os holandeses. Diante de opiniões variegadas, o sócio do IHGB esclarece:

Pois bem: o que nós pedimos, é que se nos aponte a auctoridade, a fonte, onde tantos escriptores foram beber a relação, que fizeram com a circumstancia especial, de que duvidamos. Ora no caso em questão auctoridades, e fontes só se devem considerar os

escriptores chronistas da época, em que se passou essa guerra dos vinte e quatro annos.84

81 HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 276.

82 Ibidem, pp. 275-276.

83 SILVA PONTES, Rodrigo de Souza. Quaes os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possivel de documentos relativos á Historia e Geographia do Brasil?. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, tomo 3, 1841, p. 151. E após levantar algumas dúvidas sobre a questão de Palmares, o próprio Silva Pontes sustenta o que parece ser a proposta de um método, mesmo que incipiente, para a história: “Não tomo sobre mim a solução dessas questões, que na verdade apenas podem ser decididas sendo estudadas nos lugares onde os acontecimentos passaram, estudados esses mesmo lugares, determinada a sua extensão e a sua posição geographica, ouvidas e averiguadas as tradicções, e examinados documentos, uma boa parte dos quaes será diffícil de examinar fóra das mãos de seus possuidores, pois que consistem em titulos de propriedade”. Ibidem, p. 154, grifo meu.

84 MACEDO, Joaquim Manuel de. Duvidas sobre alguns pontos da historia patria. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, tomo 25, 1973 [1862], pp. 22-23, grifo meu.

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Reitero: Cezar demonstra como as “marcas de verdade”, como a autópsia, auxiliam Varnhagen a estabelecer uma fonte fundamental para a historiografia oitocentista, como o manuscrito de Gabriel Soares que, até então, circulava apócrifo ou com autoria incerta.85 Enfim, enquanto a presença prova, recorrer a um vocabulário que presentifica – e a metáfora no seu emprego retórico proporciona isso – é uma estratégia importante.

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