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Metáforas do corpo, metáforas do pensamento – discutindo identidades

2. MEDIAÇÕES COMUNICATIVAS: CORPO, AMBIENTE E CULTURA

2.3. Metáforas do corpo, metáforas do pensamento – discutindo identidades

Entender como se dão alguns processos cognitivos parece fundamental como via de análise da comunicabilidade do corpo, a partir dos pressupostos com os quais se trabalha aqui. Como lembra Katz, pensamento não é o que vem depois da ação; pensar e mover o corpo não são acontecimentos separados (2005). Considerando, assim, a ruptura com a tradição filosófica guiada pelas dicotomias clássicas como mente e corpo, dentro e fora, razão e imaginação, vemos emergir uma profunda mudança acerca do que se conhece.

As metáforas às quais se faz referência não são apenas consideradas como figuras de linguagem. No começo da década de 1980, George Lakoff e Mark Johnson lançam um novo paradigma, mudando o status da metáfora, ao reconhecê-la como operação cognitiva fundamental, com a publicação do livro “Metaphors we live by”20.

O deslocamento dos sentidos dominantes nos processos significativos, comentados ao longo do texto, se dá pela experiência, e não poderia ser diferente. Lakoff e Johnson ajudam a pensar assim quando propõem que “compreendemos o mundo por meio de metáforas construídas com base em nossa experiência corporal. Nossa corporeidade e nossa mente interagem para dar sentido ao mundo” (LAKOFF e JOHNSON, 2002: 22). As metáforas ajudam a entender os processos de comunicação, os quais comportam sempre algum tipo de deslocamento, do interno para o externo, e vice-versa, de uma linguagem para outra ou de um texto para um movimento, por exemplo.

A partir de um enfoque experencialista, os autores usam o termo metáfora como parte fundamental do aparato cognitivo, que influencia nosso pensamento e nossa ação.

Enfim, a maneira como compreendemos o mundo, a cultura e nós mesmos. O conceito

20 A edição que usamos é a tradução brasileira desta obra, publicada somente em 2002 (ver em Referências Bibliográficas).

de metáfora, nesse sentido, refere-se ao fato de que sempre experenciamos uma coisa em termos de outra.

Dando continuidade à pesquisa, Mark Johnson publicou anos mais tarde o livro

“The Body in the Mind – the bodily basis of meaning, imagination, and reason”

(1987)21. Esta obra enfatiza ainda mais a importância do corpo, especialmente as estruturas de entendimento que emergem de nossa experiência corporal. Tal assertiva lança um golpe ainda mais forte às teorias da significação e da racionalidade calcadas no Objetivismo. Johnson argumenta, ainda no prefácio, que o corpo vinha sendo ignorado nas teorias tradicionais porque traz elementos subjetivos que colocam em crise uma visão objetivista do mundo. Ao privilegiar a experiência corporal como base de nossas estruturas de pensamento, Johnson desmonta o entendimento da razão como algo transcendental ou abstrato, sem qualquer conexão com aspectos corporais.

A categorização, o sistema conceitual, a estrutura de nosso conhecimento, a maneira como agimos e nos relacionamos no mundo depende da natureza do corpo humano, depende da experiência humana nas suas culturas específicas. Não há conceitos universais, nem objetivos. Nosso conhecimento sempre depende do contexto. Não há teoria neutra, que valha para qualquer lugar ou ocasião: a maneira como se organiza a racionalidade sempre depende de nossos propósitos e interesses (JOHNSON, 1987).

A metáfora aparece como o modo pelo qual o entendimento humano se estrutura, como a experiência física organiza nosso entendimento mais abstrato – uma maneira de estruturar uma experiência em termos de outra. Mas isso não acontece arbitrariamente, não funciona como a projeção metafórica de qualquer coisa em termos de outra, sem restrições. A própria experiência corporal concreta restringe os tipos de conexões que podem ocorrer entre os diferentes domínios. A experiência é entendida de maneira complexa, articulando diferentes dimensões – sistema sensório-motor, emoções, cultura, linguagem, e assim por diante.

No livro “Philosophy in the Flesh” (1999), novamente uma colaboração entre Goerge Lakoff e Mark Johnson, as teses sobre as metáforas e a noção de “embodied mind” ou “mente corporificada”, nossa opção de tradução entre muitas possíveis22, aparecem revistas e ampliadas. Evidencia-se ainda mais a não separação entre corpo e

21 Ver em Referências Bibliográficas.

22 A esse respeito, vale lembrar Christine Greiner em seu livro “O Corpo – pistas para estudos indisciplinados”: “Mas não é uma palavra fácil de traduzir em português, sem sugerir uma ideia equivocada a seu respeito. ‘Encarnado’ ou ‘incorporado’ que seriam possíveis traduções, podem lembrar a ação de ‘baixar um espírito num corpo’, o que nada tem a ver com ‘embodied’” (GREINER, 2005: 34-35).

mente como premissa para compreender nossas relações com o mundo. Eles teorizam a partir da ideia de que o pensamento é estruturado por nossas experiências corporais, pelas especificidades do nosso corpo e por suas interações com o mundo.

“O que emerge é uma filosofia perto do osso. Uma perspectiva filosófica baseada em nossa compreensão empírica da corporificação da mente, é uma filosofia na carne, uma filosofia que leva em conta aquilo que basicamente somos e podemos ser” (LAKOFF & JOHNSON, 1999: 08)23.

Nessa perspectiva, a metáfora volta a ganhar papel central na argumentação dos autores para entender a natureza da mente corporificada. Mas há um aprofundamento na discussão, trazendo à tona algo novo em relação às metáforas – a noção de um sistema de metáforas primárias adquirido automática e insconscientemente através das relações cotidianas que estabelecemos com o mundo nos primeiros anos de vida.

Ultrapassando a inevitabilidade desse sistema metafórico básico, gostaria de enfatizar uma outra dimensão do procedimento metafórico – a sua potência produtiva e criativa. A mudança de metáforas pode ser uma estratégia que abre novas possibilidades de significação nos processos artísticos e culturais. Novas metáforas trazem novas configurações, assim como trazem também a condição de tornar visível esses novos entendimentos do corpo e do mundo, na sua própria corporificação.

Partir desse entendimento de metáfora parece dar uma outra perspectiva teórica para compreender as experiências artísticas pesquisadas. Os artistas se guiam por metáforas em seus processos de treinamento e criação, tentando traduzir informações de outros contextos no próprio corpo, de modo a produzir ainda outras metáforas. Nesses processos de tradução, de projeções metafóricas, abrem-se possibilidades de exercitar a profanação, no sentido orientado por Agamben.

Os experimentos artísticos de Kaitaisha e Cristian Duarte, cada um à sua própria maneira, parecem utilizar metáforas para desenhar novas conexões com as informações do mundo ao seu entorno. Dessa maneira, reconfiguram os seus corpos, o seu ambiente, e a longa história de interação entre eles ao propor outras possibilidades de uso, que não apenas aquelas capturadas pelos dispositivos de poder.

Impossível pensar experiência sem corpo. As bases dos processos de cognição, percepção e significação são corporais. Nem a mente, nem a razão são independentes do

23 Tradução da autora, a partir do original em inglês: “What emerges is a philosophy close to the bone. A philosophical perspective based on our empirical understanding of the embodiment of mind is a philosophy in the flesh, a philosophy that takes account of what we most basically are and can be”.

corpo, e a experiência vivida estrutura o conhecimento, apontando para a dimensão sensível na compreensão do mundo. Deste modo, não há mais possibilidade de sustentar que o conhecimento do mundo seja objetivo e universal, abrindo espaço para que as singularidades ganhem uma outra atribuição, como a do “sentido em potência” (SODRÉ, 2006).

Assumir a complexidade de nosso tema parece ser a única saída para não cair em armadilhas que podem simplificar processos que não conseguem ser descritos de uma única maneira, que precisam se deixar atravessar por diferentes campos do conhecimento para serem reconhecidos.

“O estudo das metáforas, entendidas como metáforas do pensamento, nos ajudam também a compreender que as mudanças de nomeação do corpo, no decorrer da sua história, apontam questões que seguem além das classificações gerais, destacando também o modo singular como o entendimento do corpo e das suas relações com o ambiente, os sujeitos, a consciência, a linguagem e o conhecimento, vêm sendo rediscutidos e redimensionados” (GREINER, 2005a: 48).

A emergência dos saberes do corpo implica uma complexificação do próprio conceito de corpo e de suas metáforas. Não mais considerado como um recipiente de órgãos ou informações, o corpo passa a ser entendido como um sistema onde se dão as relações entre o espaço de dentro e o espaço de fora, onde se encontram inseparavelmente entrelaçadas natureza e cultura.

Nos próximos capítulos, a intenção é olhar para as questões colocadas por Gekidan Kaitaisha e Cristian Duarte e seus coletivos temporários nos seus processos de criação, de maneira articulada com as conexões estabelecidas até aqui, explorando também as metáforas por eles criadas.