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2 A FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL EM KANT E

2.1 Kant e a recusa da psicologia na elaboração da

2.1.2 A metafísica como rainha das

Kant sustenta ainda que o problema da liberdade apresenta-se inicialmente “na reflexão crítica como um dos três objetos cuja constelação – Deus, imortalidade da alma, liberdade – constitui o fim supremo da Razão pura, no seu uso transcendente” (VAZ, 1999, p.

334). Com efeito, desde o racionalismo de Descartes, Leibniz e Wolff, se pretendia atingir verdades absolutas e constituir uma metafísica a partir delas (PASCAL, 2001, p. 30)29. Contudo, o filósofo ao admitir que Hume o despertou do seu sono dogmático, não podia acolher em sua doutrina os mesmo erros cometidos pelo racionalismo e deveria, se quisesse fazer a metafísica seguir o caminho seguro da ciência, levar em consideração a tese de Hume que o conhecimento tem início na experiência.

Embora Kant concorde com Hume que o conhecimento tem início na experiência, não é todo ele que deriva da experiência. Isso por que, para Kant, o conhecimento é uma síntese dos dados da experiência com os elementos a priori. Outro ponto de discordância em relação à Hume é o fato de Kant não mostrar nenhuma predileção pelo ceticismo, ao contrário, sua crítica ao ceticismo está no fato deste não ser plenamente sincero ao mostrar indiferença aos objetos da metafísica, uma vez que “é vão, com efeito, afetar indiferença

perante semelhantes investigações, cujo objeto não pode ser indiferente à natureza humana” (KANT, CRP, A 10).

Isso por que, segundo Kant, os objetos mais importantes de nossa curiosidade, tais como: “Deus”, “imoralidade da alma”, e a “liberdade do homem no mundo” estão

29No prefácio da tradução portuguesa da CRP, Alexandre Mourão afirma que “destas ideias não podemos ter um

conhecimento. Para que este se realize é necessária a conjugação da sensibilidade e do entendimento, e as ideias são como conceitos hiperbólicos, que não podem encontrar na experiência conteúdo adequado. Delas não pode haver conhecimento objetivo equivalente ao conhecimento científico. São pois "transcendentes" e, para Kant, é uma "ilusão transcendental" atribuir a essas ideias uma existência real ou "em si". Fora precisamente o vício da metafísica dogmática deixar-se enganar por esta ilusão natural e inevitável, "que repousa sobre princípios subjetivos considerados objetivos"; por isso, a alma era, para a metafísica wolffiana, objeto da psicologia racional, o mundo, objeto da cosmologia racional e Deus, da teologia racional”.

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relacionados com as investigações metafísicas, problemas estes a que não se pode demonstrar indiferença, pois, mesmo que não estivesse ao nosso alcance resolvê-los, não poderíamos deixar de formulá-los, uma vez que

a razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades (KANT, CRP, A 7).

A metafísica aparece como disposição natural no homem, impelindo-o a se perguntar por questões que, não obstante extravasem sua capacidade de explicá-las, são, contudo, inelimináveis, pois lhes são inerentes. Tal disposição natural que se observa nos homens se manifesta no fato “de nunca se poderem satisfazer com nada de temporal (insuficiente para as necessidades do seu destino completo)” (KANT, CRP, B 32). Ao se referir às investigações metafísicas, afirma que

existe como disposição natural (metaphysica naturalis), pois a razão humana, impelida por exigências próprias, que não pela simples vaidade de saber muito, prossegue irresistivelmente a sua marcha para esses problemas, que não podem ser solucionados pelo uso empírico da razão nem por princípios extraídos da experiência (KANT, CRP, B 21).

Como se pode depreender dessas considerações, embora Kant demonstrasse grande interesse pela Lógica, Matemática e Física, seu maior interesse residia na Metafísica. Na sua concepção tradicional legada por Leibniz e Wolff, “pretendia ser a ciência a priori dos princípios e objetos puramente inteligíveis sendo, portanto, a ciência própria da Razão pura” (VAZ, 1999, p. 329). Segundo Vaz (1999, p. 329), dentre esses objetos, “três ocupavam lugar eminente e eram como a chave de abóboda do edifício metafísico: Deus, a alma imortal e a liberdade”. Comenta ainda que, para Kant, “esses objetos, ou seja, a própria metafísica, são alvo de uma tendência natural e incoercível da razão humana para conhecê-los, o que faz da Metafísica a mais antiga das ciências e indispensável à razão”.

Conquanto Kant considerasse a metafísica como a mais antiga das ciências exatamente por que a razão se via, defrontada com seu destino inerente, impelida a dar conta de tais objetos, considera que os filósofos do seu tempo demonstravam grande desprezo por tão nobre dama. Tal constatação o leva a propor, na sua primeira Crítica, um conhecimento que pusesse fim no “teatro destas disputas infindáveis” que se “chama-se Metafísica” (KANT,

CRP, A 8). Por isso procurar as condições de possibilidade da metafísica como ciência, cujos objetos mais importantes são: “Deus”, “a imortalidade da alma” e a “liberdade”.

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Por serem considerados os objetos mais nobres de nossa curiosidade, Kant considera a metafísica como a rainha das ciências e, portanto, todas as demais deveriam estar ao seu serviço na resposta a tais questões que coagem a razão humana a perscrutá-las. É por entender que a filosofia há muito se dedicara a tais questões que o filósofo afirma que “houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada rainha de todas as outras e, se tomarmos a intenção pela realidade, merecia amplamente esse título honorífico, graças à importância capital do seu objeto” (KANT, CRP, A 8).

Segundo Kant (CRP, A 319), o alcance desse conhecimento que pusesse fim ao teatro das disputas acerca da metafísica, isto é, que colocasse os homens do conhecimento de acordo acerca dos principais objetos da razão: “Deus”, “imortalidade da alma” e “liberdade”, teria como conseqüência a construção de um “majestoso edifício moral” que possibilitaria, por sua vez, a “ordem social”, rompida de “tempos em tempos” devido ao tratamento que os

dogmáticos, de modo despótico, dispensavam a tão nobre dama (metafísica) e que, “devido guerras intestinais”, “caiu essa metafísica em completa anarquia e os céticos, espécie de nômades, que tem repugnância em se estabelecer definitivamente numa terra, rompiam, de tempos a tempos, a ordem social”. Destaca ainda que, “nos tempos modernos houve um momento em que parecia irem terminar todas essas disputas, graças a certa fisiologia do entendimento humano (a do célebre Locke) e a ser decidida inteiramente a legitimidade dessas pretensões”.

Por isso, com o propósito de “investigar a origem, certeza e extensão de nosso conhecimento”, John Locke se pôs a considerar as faculdades discernentes do homem e como elas são empregadas sobre os objetos que lhe dizem respeito (ver metafísica como rainha das ciências).

Assim, após ampla avaliação sobre o estágio atual das reflexões filosóficas do seu tempo, chega à conclusão de que, por um lado, o interesse por tal campo de investigações se manifestava no enfado e no indiferentismo apresentados por alguns, mas que, “ao mesmo tempo, são origem, ou pelo menos prelúdio, de uma próxima transformação e de uma renovação dessas ciências, que um zelo mal entendido tornara obscuras, confusas e inúteis”. De acordo com tais considerações, pode-se perguntar: seria a CRP um prelúdio à filosofia do futuro e, esta, uma nova metafísica livre de todo “dogmatismo arcaico e carcomido”? A metafísica da Vontade de Schopenhauer dirá que não.

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