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Metaficção:consciência sobre a linguagem e exposição do artifício (da literatura para a

Metaficção é a literatura ficcional que se expõe como artefato, explicitando em suas linhas os artifícios de sua própria criação. É o que Patrícia Waugh (1984) chama de „escrita ficcional auto-consciente‟, que põe à mostra e questiona as relações, incorporações e trocas entre ficção e realidade na tessitura do texto. A metaficção pode ser entendida, ainda, como uma ficção sobre a ficção, por incluir em si um comentário sobre sua própria narrativa. Na explicação de Waugh:

Metaficção é um termo dado à escrita ficcional que auto-conscientemente e sistematicamente chama a atenção para seu status como um artefato, a fim de colocar questões sobre a relação entre ficção e realidade. Ao fazer uma crítica de seus próprios métodos de construção, tais escritos não só examinam as estruturas fundamentais da ficção narrativa, como também exploram a possível ficcionalidade do mundo fora do texto literário ficcional (1984, p.02).

A partir desta primeira definição, é possível apontar os principais motivos por que Hoje é Dia de Maria pode ser analisada sob uma perspectiva metaficcional. Apesar de o conceito vir de estudos literários, optamos por importá-lo para esta análise televisiva por percebermos que a microssérie é, expressivamente, construída com base em procedimentos de citação e alusão, sendo fortemente intertextual, nos termos de uma „ficção sobre ficções‟. Quanto à explicitação do artifício e à construção de uma linguagem auto-consciente, Hoje é Dia de Maria apresenta, entre outros elementos e procedimentos: um cenário deliberadamente artificial (um domo de 360o pintado à mão; marionetes fazendo as vezes de animais vivos, que

interagem com a protagonista; uma série de personagens interpretados pelo mesmo ator, que recorrentemente encaram a câmera e se dirigem ao telespectador. Com essas opções, a microssérie abre espaço para comentários sobre a própria narrativa, tornando-se, nos termos de Ismail Xavier (1977), „opaca‟, por explicitar o meio e a consciência da linguagem. Se nos textos literárias essas estratégias podem interromper a escrita ficcional, como através de um „narrador intruso‟36

, em Hoje é Dia de Maria elas aparecem na forma discursiva dos comentários para a câmera de personagens cúmplices do narrar; na voz da narradora onisciente que introduz e encerra os episódios; na encenação de animais-marionetes, cujo papel não é interromper a história, mas dar-lhe sequência, evidenciando o artifício na esfera da visualidade.

Outra peculiaridade da escrita metaficcional, delineada por Waugh (1984), é sua complexidade narrativa e discursiva, resultante da variedade e heterogeneidade de vozes e procedimentos que coexistem, um questionando ou relativizando a autoridade ou hegemonia do outro. A metaficcionalidade, portanto, caminharia no sentido oposto à narrativa clássica realista que busca unidade e suprime esse diálogo, já que “o conflito de linguagens e vozes é aparentemente resolvido [...] através de sua subordinação à voz onisciente dominante, divina, do autor” (WAUGH, 1984, p.06, tradução nossa37). Profusa em elementos e procedimentos, Hoje é Dia de Maria não parece entretanto ter como propósito central a criação de um campo de conflito entre linguagens, já que suas estratégias metaficcionais não desconstróem nem se opõem ao fluxo narrativo38, ainda que, por vezes, nos provoquem a indagar as suas referências e os seus sentidos ocultos. De todo modo, entendemos que, ao optar por uma forma narrativa auto-consciente e metaficcional, a microssérie, assim como outras ficções televisivas, sai do lugar comum ocupado por grande parte das narrativas ficcionais televisivas, principalmente pelas telenovelas39, responsáveis pela consolidação do realismo/naturalismo na teledramaturgia brasileira, como já observado.

Não é possível desconsiderar também que os textos literários metaficcionais das

36“The ostentatious, intrusive narrator or author-figure, interrupting the story to air his or her preoccupations

with the processes of fiction-writing, is perhaps the most explicit way of expressing a reflexive awareness”

(OMMUNDSEN, 1993, p.07-08).

37“The conflict of languages and voices is apparently resolved in realistic fiction through their subordination to

the dominant 'voice' of the omniscient, godlike author" (WAUGH, 1984, p.06).

38Cabe ressaltar que os elementos metaficcionais que destacamos na microssérie acabam por contribuir para o

andamento da narrativa, são meios que nos levarão ao fim da história. Apesar da inserção de elementos metafccionais na construção da trama, ela ainda é, como discutiremos ao fim deste trabalho, teleológica.

39Temos observado que algumas telenovelas recentes têm lançado mão, em meio ao equacionamento da matriz

realista/naturalista, de estratégias que consideramos metaficcionais. Em Aquele Beijo (Rede Globo, 2012), cuja abertura (com uma compilação de cenas de beijos provenientes de outras teleficções) já mencionamos, notamos que em momentos de crise e clímax dramático, a voz de um narrador extra-diegético surge para comentar (por vezes através de trechos de poemas consagrados) a situação vivida pela protagonista.

décadas de 1960 e 1970 utilizavam-se de tais estratégias para engendrar, via de regra, a crítica e a desconstrução da própria realidade, para além do texto. Ao expor os mecanismos da ficção e suas construções de realidade, textos metaficcionais expunham a mediação da linguagem, não apenas no acesso à ficção literária como na percepção da realidade. Wenche Ommundsen (1993), pesquisador interessado na definição de metaficcção, considera que, se na ficção metaficcional a verdade passa a ser relativizada pela consciência da mediação da linguagem, o mesmo pode ser associado à própria realidade, já que:

A linguagem media a nossa percepção de ambos, ficção e realidade, como uma série de outros códigos e sistemas de representação. O modo reflexivo na ficção, chamando a atenção para estes processos, serve para problematizar as formas pelas quais podemos ter acesso a todo tipo de conhecimento (OMMUNDSEN, 1993, p.19, tradução nossa40).

Vale destacar, no entanto, que essa reflexividade presente em Hoje é Dia de Maria não aparece sobretudo empenhada em refletir sobre a representação ficcional do mundo, mas em compilar elementos de outras ficções brasileiras, de maneira a atualizá-los em uma nova narrativa, que assim se auto-atribui o repositório de mitos, tradições, imagens e representações, predominantemente brasileiros. Parece-nos que a microssérie tem o intuito de tematizar e pôr em cena o nacional, a seu modo. Pelas referências e decifrações que nos instiga, interessa-nos investigar se o metaficcional, em Hoje é Dia de Maria, poderia ser assimilado à alegoria. Ommundsen (1993) aponta que a alegoria é uma das estratégias metaficcionais, já que,

[...] frequentemente, um elemento no texto vai servir a uma dupla função, e cabe ao leitor determinar se ele será lido reflexivamente ou não. Alusões intertextuais nem sempre são detectadas, e mesmo que sejam, elas não são necessariamente lidas reflexivamente” (OMMUNDSEN, 1993, p.09, tradução nossa41).

Ainda que os procedimentos intertextuais não sejam igualmente identificados por todos os telespectadores, notamos em Hoje é Dia de Maria indicações claras de revisita a algumas „idéias fixas‟ da ficção brasileira, literária e cinematográfica, tais como o espaço do sertão, o mar como promessa, desejo, advento, e as figuras de retirantes e sertanejos.

40“Language mediates our perception of both fiction and reality, so do a number of other codes and systems of representation. The reflexive mode in fiction, calling attention to these processes, serves to problematise the ways in wich we gain access to knowledge of all kinds" (OMMUNDSEN, 1993, p.19).

41“Frequently, an element in the texto will serve a double function, and it is up to the reader to determine wether to read such an element reflexively or not. Intertextual allusions are not always detected, and even if they are, they are not necessarily read reflexively” (OMMUNDSEN, 1993, p.09).

Perguntamo-nos se tais elementos intertextuais, que referem e condensam um percurso vasto de representações brasileiras, desenvolvidas em diferentes circunstâncias, portam um potencial alegórico. Que imagens, afinal, se configuram a partir da utilização de tais procedimentos metaficcionais, da incorporação de recortes e citações de outras obras e de alusões a outras cenas, atualizando um trajeto de representações nacionais, e deixando à mostra alguns de seus artifícios? O uso peculiar desses elementos poderia ser lido sob a chave da alegoria?

Para entendermos melhor esse conceito, convocaremos a seguir o trabalho do pesquisador brasileiro Ismail Xavier, que lançou mão dele para a análise de uma série de filmes lançados entre 1967 e 1970. Estas produções são analisadas por Ismail Xavier sob a chave da alegoria: uma estratégia de escritura e leitura do texto, no caso, cinematográfico, que explicita a fratura entre experiência e linguagem, e incorpora uma série de recortes e intertextualidades para fazer emergir esta fratura. No caso do cinema brasileiro, o alegórico foi utilizado inclusive para problematizar questões referentes à „identidade‟ nacional, em narrativas audiovisuais que têm como marco Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), e que caracterizam a passagem, nas palavras de Xavier (1993), da „estética da fome‟ à „estética do lixo‟, marcando “[...] uma alteração do emblema do subdesenvolvimento articulada a uma revisão da experiência nacional e de sua perspectiva” (id.; ibid.; p.13). Conhecer essa trajetória demarcada por Ismail Xavier pode nos apoiar em nossa aproximação à peculiar metaficcionalidade de Hoje é Dia de Maria – 1a Jornada.