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1. A METALINGUAGEM

1.3 Metalinguagem e Paródia

Diversos são os procedimentos metalingüísticos possíveis de serem encontrados na arte. Dentre eles, a paródia é, talvez, um dos mais pertinentes para esta dissertação. Etimologicamente, paródia é entendida como contra-canto, “uma ode que perverte o sentido de outra ode (grego: para – ode)” (SANT'ANNA, 2007, p. 12). Assim, uma obra de arte paródica – como jogo intertextual – remete-se a uma obra de arte anterior (ou várias obras), apropriando-se de seus elementos constitutivos, suas formas, seus temas, alterando seus sentidos originais, geralmente ridicularizando-os. A paródia põe em destaque a diferença, a assimetria, e opera um efeito de deslocamento entre o plano “original” e o plano paródico. Se na paráfrase o sentido original é mantido e estendido, caracterizando uma transcrição, uma tradução, na paródia o sentido é subvertido e desviado, invertido.

Para Linda Hutcheon, a paródia diferencia-se da imitação, da citação, do pastiche e do plágio pois, além da intencionalidade declarada, embute em seu corpo a diferença:

Por esta definição, a paródia é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença (Deleuze 1968); é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Versões irónicas de “transcontextualização” e inversão são seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial (HUTCHEON, 1989, p. 54).

A teoria desenvolvida pela estudiosa canadense defende que, ao distanciar- se criticamente da sua referência original, a paródia não se prende exclusivamente ao seu efeito vexatório, ridicularizador (como a maioria dos críticos considera, inadvertidamente). A paródia pode assumir, inclusive, um caráter conservador, ou de homenagem mais ou menos direta ao parodiado. Ou seja, o “alvo” da paródia nem sempre é o parodiado. Desta maneira, a paródia deixa de se confundir com a farsa e o burlesco, que, segundo a autora, envolvem, estas sim, necessariamente o ridículo.

Na esteira de Bakhtin, tanto Sant'Anna (2007) quanto Hutcheon (1989) afirmam que através da paródia o artista insere-se e dialoga com a tradição da linguagem e dos cânones artísticos, retrabalhando-a, subvertendo-a e, em última instância, renovando-a e continuando-a. A despeito de ser considerada por alguns como uma arte parasitária, a paródia atesta a consciência histórica do seu autor que, desse modo, faz um “acordo” com o passado e transcontextualiza os códigos em questão (HUTCHEON, 1989, p. 128), marcando não apenas onde a arte está, mas também de onde veio. Mesmo que ridicularize (o que não acontece sempre) a obra original, o simples fato de tomá-la como referência já demonstra a legitimidade do parodiado: só se parodia algo suficientemente importante e reconhecível.13

Neste sentido, a paródia apresenta o mesmo paradoxo apontado por Bakhtin (1993) em seu estudo sobre o carnaval: se no carnaval ocorre um processo de inversão (deposição de reis, coroamento de loucos ou animais, travestimentos, etc) temporária, ou seja, delimitada e permitida somente em determinadas datas do ano, também na paródia ocorre uma espécie de transgressão autorizada ou subversão legalizada, pois, por mais transgressora que se pretenda, a paródia

postula, como pré-requisito para a sua própria existência, uma certa institucionalização estética que acarreta a aceitação de formas e convenções estáveis e reconhecíveis. Estas funcionam como normas ou regras que podem ser – e logo, evidentemente, serão – quebradas. Ao texto paródico é concedida uma licença especial para transgredir os limites da convenção, mas, tal como no carnaval, só se pode fazê-lo temporariamente e apenas dentro dos limites autorizados pelo texto parodiado – quer isto dizer, muito simplesmente, dentro dos limites ditados pela “reconhecibilidade” (HUTCHEON, 1989, p. 96).

13 Por conseqüência, a paródia não tem relação necessária com inovações radicais, sejam formais ou

ideológicas. Se essas inovações acontecem, vem acompanhadas de outras motivações paralelas e complementares ao procedimento paródico.

Um aspecto bastante importante, também, é a relação entre paródia e ironia. Na sua teoria da paródia, Hutcheon (1989) considera a ironia como o procedimento discursivo, como a estratégia retórica que garante a necessária distância crítica entre parodiador e parodiado. A inversão semântica e a avaliação pragmática características da ironia são instrumentos utilizados pela paródia para efetuar seus deslocamentos, seus jogos de cópia e recriação. Assim, a ironia atuaria em nível microscópico (semântico) e a paródia em nível macroscópico (textual). Alguns anos mais tarde, em um estudo dedicado especificamente à prática irônica, a autora revê essa relação a partir de um refinamento do conceito de ironia (HUTCHEON, 2000), como poderá ser visto no próximo capítulo.

De qualquer modo, a utilização da ironia é um dos elementos de aproximação e diferenciação entre a paródia e a sátira: ambas partem da imitação e implicam um distanciamento crítico (baseado na inversão e avaliação irônica); no entanto, enquanto o objetivo da paródia é “intramural”, mais ligado a questões estéticas e textuais, acolhendo simultaneamente posicionamentos contrários e também reverentes ao parodiado, o objetivo da sátira é “extramural”, no campo social ou moral, mais agressivo, julgador, e prioritariamente depreciativo, escarnecedor.

Dentro dos limites desta dissertação, interessa ressaltar o caráter de auto- referencialidade que a paródia confere à arte. Auto-referencialidade que evidencia, metalinguisticamente, a dependência da obra em relação ao seu contexto histórico, estético e de enunciação. As relações de poder implicadas na idéia de “autoria” e de “originalidade” (sob um ponto de vista romântico) são desmistificadas quando a obra as revela em toda a sua arbitrariedade, expondo a si própria como fruto dessa arbitrariedade (HUTCHEON, 1989, p. 113). Se, assim como a ironia, a paródia necessita da participação ativa do leitor ou do espectador na construção da sua significação (através da identificação e da leitura intertextual dos elementos paródicos), a idéia de autoria é relativizada, sendo compartilhada (em maior ou menor grau) entre todos os participantes do processo enunciativo: reverberações da crise da noção do sujeito como fonte coerente, unidirecional e constante de significação14. No entanto, é prudente não vincular diretamente a participação do

espectador na geração do sentido com ideais de democracia e liberdade – embora tal situação geste mais fertilmente essa possibilidade.

14 A metalinguagem proposta pela paródia assume, assim, particular importância metodológica para as práticas artísticas que serão aqui analisadas.

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