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3 CAPÍTULO : AS FORÇAS DA POESIA BELO-HORIZONTINA

3.3 A metapoesia

Muito se acusa a poesia do fim do século de ser extremamente metalinguística, voltada, cega e taciturnamente, sobre ela mesma, levando à exaustão certos procedimentos. De fato, muitos poetas e poemas não conseguem ir além da mera referência à palavra, de maneira bastante limitada. Contudo, a limitação de alguns poemas e poetas não deve ser levada a uma categorização generalizadora, ofuscando a existência de uma boa reflexão sobre o ser da poesia. Nem todo poema que deseja transitar em sua própria órbita deve ser taxado como um poema raso. Muitos bons poemas, reconhecidos na historiografia literária brasileira, tratam do tema de maneira rica e inovadora, basta lembrar Drummond ou João Cabral. Desejamos tratar, nesta seção, da metalinguagem que se coloca — a partir dos textos poéticos — ao leitor como algo inusitado e reflexivo, instigando-o a desvendar os seus versos, ou como Roland Barthes nos coloca, a metalinguagem que é a “retenção do espetáculo” (BARTHES, 1978, p. 38). Nesse sentido,

De um lado o poema começa a tomar como seu objeto a própria poesia; o ato de poetar, a crise ou a possibilidade mesma do poema, tal como se o poeta estivesse assumindo em seu ofício o dilema hegeliano e marxiano, perguntando-se sobre a morte ou o devir da poesia; trata- se de uma poesia que tematiza a poiesis até no seu sentido etimológico [...]. De outro lado, a linguagem da poesia vai ganhando cada vez mais em especificidade, vai-se emancipando cada vez mais da estrutura discursiva da linguagem referencial, vai eliminando os nexos, vai cortando os elementos redundantes, vai-se concentrando e reduzindo ao extremo [...]. (CAMPOS, 1997, 255).

Para cumprir nossa proposta para esta seção, tomamos os textos que explicitamente desejam, como motivo temático e de reflexão, tratar da construção do próprio poema, aludindo ao universo da palavra poética como elemento essencial no contexto das obras dos poetas, em uma linguagem “concentrada”, como diz Campos.

Nos interessa, portanto, a reflexão metalinguística que aponte caminhos de leitura para a poesia de determinados autores do fim do século XX, bem como reafirmar a intensa preocupação desse tempo com a prática do poetar. Ou seja, nos parece sintomática a insistência desse tema em momento específico da poesia brasileira. Momento esse em que as soluções poéticas não estão mais atreladas de maneira normativa a escolas literárias ou estilo de criação. Parece mesmo que a singularidade de cada escrita tenha tomado um primeiro plano e daí a busca consciente de uma definição de estilo próprio de cada autor, por meio da reflexão metalinguística. Essa singularidade da palavra poética faz parte do que Alfredo Bosi chama de “relação entre palavra e realidade vital” (BOSI, 2000, p. 132) e que pertence aos elementos comuns a grandes textos poéticos. Nas palavras desse autor:

A linguagem da poesia é mais singularizada que a da não-poesia. A existência, enquanto ainda não repartida e limitada pela divisão do trabalho mental (que produz o código das ideias abstratas), apresenta- se na sua variadíssima concreção de aspectos, formas, sons, cores. A palavra poética recebe uma espécie de efeito mágico do seu convívio estreito com o modo singular, pré-categorial, de ser de qualquer um desses aspectos. (BOSI, 2000, p. 132)

Para compreendermos a singularidade poética é preciso, novamente, recorrer à análise de textos como um instrumento de crítica. Comecemos com um texto de Carlos Ávila:

Olho as coisas que me olham Penso e sou pensado

Escrevo-me

Poeteu:

Um existir de palavra No papel

(ÁVILA, C., 1989, [s.p.])

Para esse poeta, o exercício da palavra poética passa pela reflexão do e sobre seu próprio “eu”. É preciso olhar e saber estar olhando. É preciso se inserir, se escrever, para que o poema possa ser concretizado, mesmo tematizando os próprios passos de sua construção. O neologismo “Poeteu” lembra “Prometeu”, personagem mitológico que rouba o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens e assim fornecer anima a eles. O poeta, com as palavras, talvez exerça o mesmo papel: o de “roubar” a chama divina

(inspiração) para aquecer, para fornecer alma/ânimo aos homens. A consciência do poder da palavra e a sua construção também é preocupação de Maria Esther Maciel:

ofício Escrever a água da palavra mar o voo da palavra ave o rio da palavra margem o olho da palavra imagem o oco da palavra nada. (MACIEL, M., 1999, p. 13)

A consciência da palavra poética como aquela que vai além do sentido ordinário da comunicação é a temática do texto de Maria Esther. Trabalhar a partir das sugestões, do inusitado, da compreensão imagética da palavra é o ofício do poeta, título do poema precisamente escolhido. A palavra se revela para além de seu sentido direto e o poema ganha, com a multiplicidade, um caráter estético, próprio da arte.

Mas a metalinguagem apresenta também outras facetas. Através do reconhecimento de certo estilo em sua escrita, alguns poetas acabam lendo a tradição e legitimando certa escrita no presente. Como no poema de Dolabela, que alude a Castro Alves e a sua poesia de denúncia, bem como a Gregório de Matos, ao tratar de maneira irônica e ferina uma realidade brasileira:

Átropos, Cleto & Láquesis

canto eito o velho poeta condoreiro

poeta que refaz cada rima de infernal braseiro e rebate os pregos deste imortal madeiro para desfazer do feito um novo cancioneiro cantor que joga na bateia do mineiro pedra sem valor que vale muito cruzeiro que agradece hoje a este povo hospitaleiro a estada que me deu aqui neste chiqueiro pois se aqui queres sucesso, sejas embusteiro filho de político ou filho de banqueiro amante de padre ou neto ou filho ou herdeiro pois se imbecilidade valesse dinheiro

aqui seria um paraíso verdadeiro. (DOLABELA, 2006, p. 32)

A metalinguagem trabalhada nos textos acima acaba por contribuir na leitura da escrita dos poetas, na medida em que fornecem pistas para o jogo autor/leitor na percepção de um estilo atribuído à poesia pelo próprio poeta ou, ainda, uma afirmação de sua concepção de poesia. Percepção essa que, aproximada de outras desse mesmo universo poético, pode nos fornecer uma maior e melhor compreensão sobre o que os poetas entendem por palavra poética em seu tempo e contexto.

As forças poéticas da poesia investigada neste texto estão centradas nesse eixo essencial: palavra-espaço-corpo, que, no nosso entendimento, traduz uma resposta artística/estética para a percepção do poeta e de sua poesia em seu tempo, contexto e estilo. É através dessas forças que a poética de Belo Horizonte vai se construindo e reafirmando um lugar na literatura nacional.

No documento 26 poetas ontem: Belo Horizonte literária (páginas 149-152)

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