Para problematizar alguns aspectos da constituição identitária do professor de espanhol como língua estrangeira, sem formação acadêmicouniversitária na área do ensino e aprendizagem de língua estrangeira, pautamonos em uma dimensão que busca ir além do tratamento de questões de ordem prática.
Nessa dimensão, consideramos a possibilidade de focalizar os processos de identificação que, a nosso ver, apontam para alguns aspectos da constituição identitária desse professor.
Assim, para a realização desta investigação tomamos depoimentos de quatro professores de espanhol, brasileiros, falantes de português, sem formação acadêmico universitária na área do ensino e aprendizagem de língua estrangeira, que estão atuando em institutos de línguas e/ou em escolas públicas e/ou particulares, em uma cidade do interior do Estado de Minas Gerais.
Para obter os depoimentos, entregamos aos enunciadores, com disposição para participar da pesquisa, um roteiro de perguntas, que se encontra anexo. Os dizeres relacionados ao roteiro de perguntas foram gravados, e posteriormente transcritos.
Os professores que participam desta investigação estão na faixa etária entre vinte e cinco e cinqüenta e cinco anos e possuem formação acadêmicouniversitária em diferentes áreas do conhecimento como Direito, Psicologia, Comunicação Social e Matemática. Sobre a experiência desses professores no ensino de espanhol, constatamos que o tempo de atuação dos mesmos está entre sete e quinze anos.
As seqüências discursivas produzidas pelos professores de espanhol constituem o nosso corpus, que analisamos buscando verificar que (des)identificações marcam a constituição identitária desse professor, e suas possíveis implicações na constituição identitária de um sujeito que se inscreveu (ou não) em uma língua estrangeira, no caso espanhol, e que assumiu a posição de professor dessa língua.
Ao depararmonos com a materialidade lingüística, buscamos encontrar os equívocos que comparecem na enunciação. É nesta perspectiva que compreendemos nosso trabalho de análise que se fundamenta em alguns conceitos advindos da Análise do discurso de linha francesa atravessada pela psicanálise lacaniana.
Assim, buscamos desenvolver a argumentação de nossa análise dos dizeres dos participantes da pesquisa sobre a língua espanhola, sobre o ser professor dessa língua e sobre a formação do professor de língua estrangeira. Consideramos que esses dizeres apontam para elementos que podem constituir ou não o professor de língua espanhola.
Na análise dos processos discursivos, partimos dos níveis intradiscursivo e interdiscursivo, elaborados por Pêcheux (1997).
O nível intradiscursivo referese à dimensão linear do discurso. É o fio do discurso da formulação efetivamente produzida, considerandose nesta a relação que se estabelece entre a materialidade lingüística do dito com o que se disse antes e com o que se segue. Segundo Pêcheux (1988), a expressão intradiscurso aponta para:
[...] o funcionamento do discurso com relação a si mesmo, o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto o conjunto dos fenômenos de “coreferência” que garantem aquilo que se pode chamar o “fio do discurso”, enquanto discurso de um sujeito. (PÊCHEUX, 1997, p.166)
Sobre o nível intradiscursivo, Serrani (2000) considera que o intradiscurso está vinculado ao registro imaginário, conforme proposto pela psicanálise lacaniana:
tratase da construção do tecido do representável, no qual se mostram relações como as de semelhança e dessemelhança, se enunciam propriedades atribuídas a objetos que se apresentam ou se supõem organizados em classes, localizados em um tempo e um espaço específicos. Tratase do âmbito discursivo no qual os objetos se ligam, isto é, do registro imaginário do discurso. (SERRANIINFANTE, 2000, p.111)
O nível interdiscursivo, por sua vez, remetenos à dimensão vertical, não linear do discurso, à complexa rede de formações discursivas em que ele está inserido. Sobre essas formações discursivas, Serrani (2000, p.111) afirma que as entende como “condensações de regularidades enunciativas no processo – constitutivamente heterogêneo e contraditório – da produção de sentidos no e pelo discurso, em diferentes domínios de saber”.
Para se compreender o nível interdiscursivo, operamos as noções de préconstruído e de discurso transverso. Conforme Pêcheux (1997, p.166172), a articulação da noção de pré construído com a noção de discurso transverso aponta para o “sempre já” históricosocial, que fornece a matéria prima, na qual o sujeito se constitui e que remete simultaneamente a uma “construção anterior, a partir da qual se produz o sentido ‘construído’ pelo enunciado”.
O discurso transverso se caracteriza pelas “possibilidades de substituição entre ‘diferentes’ palavras, expressões, proposições com ‘o mesmo sentido’ e cuja análise diz respeito ao estabelecimento de posições subjetivas, afetadas por condicionamentos sócio históricos e inconscientes” (SERRANI, 2000, p.112). Para esta autora, as substituições podem ser simétricas ou orientadas. No caso das primeiras, temse uma relação de equivalência dentro de enunciados; e nas segundas, a relação entre os substituíveis não advém de uma relação simetricamente equivalente do ponto de vista sintáticosemântico, como no caso das formulações cujo efeito discursivo é explicativo.
No que se refere ao funcionamento do discurso transverso, Pêcheux (1997, p.166) pontua que este funcionamento remete a “ordens como as da metonímia, da relação da causa com o efeito, do sintoma com o que ele aponta”.
Assim, consideramos as noções de intradiscurso e interdiscurso na análise que fazemos das seqüências discursivas produzidas pelos participantes da pesquisa.
Ainda, a respeito do interdiscurso, cabe lembrar, conforme mencionamos antes, que o consideramos “como um rastro de memória que, sem ser visível na seqüência lingüística, constitui também o sentido do discurso” (TEIXEIRA, 2000, p.190), e que o compreendemos como efeito do Outro que constitui o sujeito.
Ademais, nesta investigação, consideramos o sujeito do inconsciente que ao dizer sempre diz mais. Assim, empreendemos nossa análise, a partir do dizer do participante da pesquisa, como uma tentativa de “recuperar os indícios da pontuação do inconsciente” (AUTHIERREVUZ, 1990, p.28).
Cabe ressaltar que, por ser o sujeito do inconsciente o que nos interessa nesta investigação, consideramos, também, a possibilidade de depararmonos com o nãosentido. Assim, compartilhamos do pensamento de Kehl (2005) quando afirma:
o sujeito, sujeito do desejo inconsciente, manifestase quando fala; não onde oeu fala e sim onde oisso irrompe, justo onde a fala nos parece mais carente de sentido. O sujeito da psicanálise é um cartesiano às avessas: “Penso onde não sou; sou onde não penso”. (KEHL, 2005, p. 124)
Nesta perspectiva, compreendemos que diante da falta de sentido, o deterse antes de atribuir algum sentido não se constitui uma tarefa fácil. A dificuldade de trabalhar com o não sentido repousa no fato de que, a todo instante, recorremos ao imaginário para explicálo, porém não temos a possibilidade de nomeálo. A construção de sentidos não é nossa proposta, o que nos interessa, neste trabalho, é buscar as equivocidades do sentido.
Mencionamos, ainda, que na identificação dos sujeitos participantes desta pesquisa utilizamos um código que se constitui de uma letra e um número. Elegemos a letra “P” para nos referir a professor; e os números 1, 2, 3 ou 4 que acompanham essa letra nos remetem ao enunciador.
Assim, temos na apresentação dos excertos os seguintes códigos P1, P2, P3, P4 que fazem referência a professor de número um, professor de número dois, professor de número três e professor de número quatro. Esses códigos aparecerão no final do excerto que, também, como forma de organização, tem uma numeração que o antecede.
Além disso, na transcrição dos dizeres dos professores de espanhol, participantes da pesquisa, buscamos observar alguns elementos que caracterizam a produção oral. Nessa tentativa, não nos preocupamos em seguir, na íntegra, a prescrição de regras gramaticais. Recorremos, também, em nossa transcrição, ao uso da seguinte legenda: /.../, o que equivale a uma marca de pausa; [...], o que equivale a excertos incompletos; e (xxx), o que equivale à omissão de nomes próprios. Cabe notar, ainda, que a apresentação de alguns excertos longos se deve à tentativa de evitar prejuízos na contextualização da enunciação dos participantes da pesquisa.
Com essas considerações, passamos, no próximo capítulo, à análise dos dizeres dos professores de espanhol.