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3. PERCURSO METODOLÓGICO

3.1 METODOLOGIA

Realizei uma etnografia nas aulas de ciência de duas turmas de uma escola pública, de sistema integral, que oferta a primeira fase do ensino fundamental9. A pesquisa foi feita durante um ano letivo (2016) numa turma do 4º e outra do 5º ano. Mesmo sendo as aulas de ciências meu foco principal, não desvalidarei dados construídos durante a etnografia em outros espaços de socialização da escola, como refeitório, pátio e aulas de outras disciplinas.

A abordagem qualitativa utilizada nesta pesquisa se justifica pois, segundo Pedro Demo (2000, p. 152), esta abordagem quer “fazer jus à complexidade da realidade, curvando-se diante dela”. O problema de pesquisa aqui proposto é complexo, possuindo diversas relações, diversos atores e atrizes e diversas identidades subjetivas que não podem e nem devem ser resumidos em números.

No campo da educação, as metodologias qualitativas, segundo Heraldo Vianna (2003, p. 82) “procuram ir além da superfície dos eventos, determinar significados, muitas vezes ocultos, interpretá-los, explicá-los e analisar o impacto na vida em sala de aula”. Nesta perspectiva, tal abordagem torna-se adequada a busca dos objetivos desta tese.

Entre as diversas metodologias utilizadas em pesquisas de abordagem qualitativa, optei pela etnografia. Segundo Angel Aguirre Báztan (1995) etnografia é o estudo descritivo (graphos) da cultura (ethnos) de uma comunidade. Em sua

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De acordo com a Lei Federal nº 11.114, aprovada em maio de 2005, a primeira fase do ensino fundamental, ou Fundamental I, compreende o Ensino Infantil V, 1º ano, 2º ano, 3º ano, 4º ano e 5º ano, e a segunda fase do ensino fundamental, ou Fundamental II, compreende o 6º ano, 7º ano, 8º ano e 9º ano.

origem, a etnografia se debruçava no estudo de diferentes culturas, especialmente àquelas consideradas “atrasadas”, como indígenas, aborígenes e nativos de sociedades não ocidentais.

Os avanços nos estudos de gênero, por exemplo, foram beneficiados pela etnografia. Nos anos 1930, a antropóloga Margaret Mead foi a primeira a falar de “papeis sexuais”, comentando a partir de etnografia realizada em tribos indígenas da Nova Guiné sobre as funções diferenciadas de homens e mulheres no cotidiano das referidas tribos (THÉBAUD, 2005).

Etnografia é “uma observação profunda, a mais completa e avançada possível, sem esquecer nada de uma tribo” (MAUSS, 1974, p. 19), de uma cultura, de determinados aspectos concretos de uma cultura e/ou de um grupo social. O/a etnógrafo/a vai a uma determinada comunidade, participa, de maneira coberta ou encoberta, do dia-a-dia da mesma por um determinado tempo, e descreve, tradicionalmente em diários, práticas e saberes de sujeitos e grupos sociais a partir de técnicas como observação e conversações.

O/a etnógrafo/a deve, segundo Martyn Hammersley (2005, p. 5), observar o que acontece, escutar o que se diz, fazer perguntas e, anotar qualquer dado disponível que possa “lançar um pouco de luz sobre o tema em que se centra a investigação”. Utilizar a etnografia para a descrição cultural permite colocar o/a pesquisador/a em condições de observar comportamentos em seu quadro natural, obtendo das pessoas observadas as “estruturas de significação que tornam compreensível a trama de um comportamento” (SIROTA, 1994, p. 29).

Por ser a etnografia orientada teoricamente, ou seja, o/a pesquisador/a vai à campo com uma base teórica definida para solucionar o seu problema de pesquisa, o fazer etnográfico não deve ser considerado como um processo de coleta de dados, tendo em vistas que os dados não estão simplesmente postos. O que ocorre de fato é um processo onde os dados serão construídos, a partir da interação entre o/a pesquisador/a e o/a pesquisado/a, tendo por base a fundamentação teórica do/a pesquisador/a, que influenciará na subjetividade desta construção de dados (OLIVEIRA, 2013a; OLIVEIRA, 2013b).

Segundo Amurab Oliveira (2013b) o trabalho etnográfico irá variar dentro de dois extremos, onde, por um lado, buscará captar o sentido que os sujeitos atribuem a suas próprias práticas e vivências, sem que com isso, a investigação se reduza a uma mera reprodução das falas daqueles/as que são investigados/as; e por outro se

assentará sobre a fundamentação teórica e metodológica que o/a pesquisador/a assume antes de ir a campo, sem reduzir a etnografia a uma tentativa de enquadrar a realidade às categorias e teorias definidas pelo/a pesquisador/a.

Tendo em mente esta construção subjetiva dos dados de uma etnografia e do problema de pesquisa que motivou a ida a campo, pode-se afirmar que

A pesquisa etnográfica requer estratégias de investigação que conduzam à reconstrução cultural. Primeiro, as estratégias utilizadas proporcionam dados fenomenológicos; estes representam a concepção de mundo dos participantes que estão sendo investigados (...). Segundo, as estratégias etnográficas de investigação empíricas e naturalistas. Se recorre à observação participante e não participante para obter dados empíricos de primeira mão (...) Terceiro, a investigação etnográfica tem um caráter holístico. Pretende construir descrições de fenômenos globais em seus diversos contextos e determinar, a partir deles, as completas conexões de causas e consequências (sic) que afetam o comportamento e as crenças em relação aos ditos fenômenos10 (GOETZ; LE COMPTE, 1988, p. 28, tradução nossa).

A etnografia, nesta perspectiva, também deve ser entendida em uma matriz de reconstrução social, ou reflexão de determinadas relações/ações que podem ser geradas no compartilhamento de diferentes pontos de vista durante o processo etnográfico, seja no envolvimento do/a pesquisador/a com o/a pesquisado/a, seja na divulgação do trabalho final. Realizar uma etnografia, segundo José Guilherme Cantor Magnani (2009), não se trata de atestar a lógica da visão de mundo do/a pesquisador/a, mas sim de interação, reflexão a partir de uma base teórica e problematização, que pode ser seguida por uma proposta de mudança.

Essa potencialidade reflexiva rumo a mudança/aperfeiçoamento, é o fio condutor que aproximou a etnografia ao campo da educação. No final dos anos 70, pesquisadores/as educacionais começam a mostrar interesse pela etnografia, “especialmente motivados pelo estudo das questões de sala de aula e pela avaliação curricular” (ANDRÉ, 1997, p. 46).

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Tradução livre de: El diseño etnográfico requiere estrategias de investigación que conduzcan a la reconstrucción cultural. Primero, las estratégias utilizadas proporcionan datos fenomenológicos; éstos representan la concepción del mundo de los participantes que están siendo investigados (…). Segundo, las estrategias etnográficas de investigación empíricas y naturalistas. Se recurre a la observación participante y no participante para obtener datos empíricos de primera mano (…) Tercero, la investigación etnográfica tiene un carácter holista. Pretende construir descripciones de fenómenos globales en sus diversos contextos y determinar, a partir de ellas, las complejas conexiones de causas y consecuencias que afectan al comportamiento y las creencias em relación con dichos fenômenos.

Podemos pensar a etnografia na educação como “o resultado de aplicar uma prática etnográfica e uma reflexão antropológica11 ao estudo da instituição escolar” (VELASCO; RADA, 2006, p. 10), porém não podemos deixar de relevar e exaltar a principal finalidade desta metodologia para o campo da educação, que é a melhora da prática (ALVARÉZ, 2008).

As etnografias não devem ficar exclusivamente em sua dimensão descritiva, tendo em vista que, como modalidade de pesquisa educativa que são, devem também sugerir alternativas, teóricas e práticas, que levem a uma intervenção pedagógica melhor (TORRES, 1988, p. 17).

O fato de a educação ser “um processo cultural pelo qual as crianças e jovens aprendem a atuar adequadamente como membros de uma sociedade, faz dela um âmbito particularmente idóneo para a investigação etnográfica” (MAROTO, 1992, p. 18). Dentro das escolas, subjetividades aprendidas fora da mesma ganharão novo significado, ou serão validadas, durante a constante troca de conhecimentos entre os/as atores/atrizes envolvidos/as no processo educativo, das crianças aos/às escritores/as do material didático. Considera-se, então, a “sala de aula como um microcosmo da sociedade global na qual a escola está situada e onde as características da sociedade são recriadas na interação cotidiana” (SIROTA, 1994, p. 29).

As pesquisas etnográficas em ambiente escolar têm em comum, segundo Régine Sirota (1994, p. 29), “o fato de centrar-se na interação face a face a fim de descrever e compreender a organização social da sala de aula, bem como na relação adulto-criança no interior e no exterior do quadro escolar, a partir das perspectivas dos atores”. Permite-se, então, uma reflexão a partir da “experiência escolar subjacente às formas de transmitir o conhecimento, à organização das atividades de ensino e às relações institucionais que sustentam o processo escolar” (ROCKWELL, 1995, p. 13). A partir da etnografia pode-se então lançar vistas aos múltiplos agentes que constituem o dia-a-dia da escola, analisando e apontando falhas ou discrepâncias seja na relação entre docente-discente, entre discentes,

11 Por reflexão antropológica, entendes-se, “trabalho reflexivo e pessoal, levando em consideração a pesquisa prévia existente sobre os estudos das culturas, com um caráter construtivo da realidade investigada, o qual será fundamentalmente de gabinete” (ALVAREZ, 2008, p. 2).

e/ou na estrutura curricular, trazendo, a partir da análise desta realidade concreta, proposições de mudança.

A educação, porém, e as relações existentes em sala de aula não devem ser entendidas como questões exclusivas “intra-muros” da escola. Carles Serra (2004, p. 166) afirma que “nem a educação é exclusivamente escolar, nem o que se passa na escola se explica a partir do que acontece nos limites estritos da instituição”. A cultura escolar será reflexo da sociedade em que esta está inserida, espelhando relações e significações construídas e valorizadas em espaços não escolares. Nesta perspectiva, falas, brincadeiras, brigas e determinados posicionamentos das crianças serão uma mimese (imitação, emulação, repetição) da relação e realidade da criança com sua família e comunidade.

não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa. Neste sentido, não é possível conceber uma experiência pedagógica ‘desculturizada’, isto é, desvinculada totalmente das questões culturais da sociedade. Estes universos estão profundamente entrelaçados e não podem ser analisados a não ser a partir de sua íntima articulação (CANDAU, 2010, p. 13).

Isso significa que, embora os estudos etnográficos na escola enfatizem as relações dos indivíduos no âmbito escolar, levam em conta também a existência de uma cultura histórica, mais ampla, na qual a história escolar está inserida” (GARCIA, 2011).

Ou seja, por mais que o foco seja as relações dentro da escola, com investigação na realidade selecionada para a pesquisa, “há um cotidiano escolar que se impõe” (OLIVEIRA, 2013b, p. 71), as relações intra-pessoais e as relações dos/as pesquisados/as com estruturas de significados devem ser vistas “como realidades objetivas e absolutamente dialéticas, co-implicadas, mutuamente criativas e insubstituíveis na explicação da realidade escolar” (SCHMIDT; GARCIA, 2008, p. 31).

Metodologicamente, a análise da etnografia na educação deve caminhar rumo a uma triangulação de informações oriundas de (1) observação, (2) entrevista e (3) análise documental, caminho pelo qual caminhará esta pesquisa. Segundo Manuel Sarmento (2003, p. 157) “só assim se impede que a unilateralidade de uma observação, ou de um depoimento ou ainda de um documento, se possa sobrepor à realidade, em todo o seu conjunto de complexidade”.

No processo de observação, realizei uma observação participante, nessa modalidade “o/a pesquisador/a está presente in loco” (CASAGRANDE, 2011, p. 71), e passará um determinado tempo “imerso” em uma escola. “Durante esse tempo o observador não só observa, mas também conversa [interage] com os participantes” (DELAMONT; HAMILTON, 1991. p. 390) de forma ativa, testemunhando as relações na escola, indo além da confiabilidade de dados obtidos exclusivamente com entrevista, onde o/a pesquisado/a pode mentir ou omitir dados.

Porém a entrevista não foi descartada, pois faz parte do fazer etnográfico. A interação entre pesquisador/a e pesquisado/a através de entrevista (seja ela, estruturada, não-estruturada ou semi-estruturada) garante, segundo Carmen Alvarez (2008), um fluxo de dados. O/a pesquisado/a, ao falar com o/a pesquisador/a oferece uma informação pessoal, informação esta que, somente através da observação da relação deste/a pesquisado/a com o grupo, seria impossível de conseguir. Nesta pesquisa, serão utilizadas entrevistas não-estruturadas, ou seja, “aquela em que é deixado ao entrevistado decidir-se pela forma de construir a resposta (LAVILLE; DIONE, 1999, p. 188) e entendida como “uma oportunidade para esclarecer qualquer tipo de resposta quando necessário” (MOREIRA; CALEFFE, 2006, p. 169). Ou seja, durante a observação, quando houve dúvidas sobre uma determinada ação/atitude de algum/a pesquisado/a, a conversa foi utilizada para esclarecimento.

Essa escolha por entrevistas não-estruturadas também se fundamenta no fato dos/as pesquisados/as serem crianças. Uma entrevista estruturada ou semi- estruturada poderia inibi-las, fazendo-as falar aquilo que elas acham que o/a pesquisador/a quer ouvir, levando-as a mentir, omitir ou fantasiar a realidade.

Também é validada a análise documental, considerada como um apoio a observação. Coletou-se e analisou-se a produção material (oficial e/ou pessoal) da escola e das crianças, como documentos de matrícula, documentos oficiais orientadores e norteadores da educação da escola e do município, materiais didáticos e produção intelectual material das crianças.