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Mets et merveilles − Cozinhar ou morrer: eis a questão

No documento Maryse Condé, relatos (auto) biográficos (páginas 106-128)

4. Os sabores da palavra literária

4.2. Mets et merveilles − Cozinhar ou morrer: eis a questão

Cozinhar e escrever são as duas paixões de Maryse Condé que, na velhice, parece optar pela cozinha, uma vez que a escrita vem se tornando algo repetitivo; ou, pelo menos, com medo de que isso aconteça, ela opta por cozinhar, ato em que a repetição torna-se marca louvável, já que repetir este ou aquele prato que satisfez alguém é algo excepcional nessa arte. Ainda que traga a marca da repetição como algo admirável, Condé, mesmo na cozinha, reivindica o seu direito à criação, como se observa na fala da narradora-personagem, cujo nome próprio coincide com o da autora antilhana:

Cozinhar é uma arte. Ela se apoia na fantasia, na criatividade, na liberdade de cada um. Os livros de receitas são apenas utensílio para otários. Não há regras imutáveis, não há orientações obrigatórias.160 (CONDÉ, 2015, p.49)

Cozinhar também parece ser um elo familiar. Uma herança que a escritora resgata com orgulho. Ela herdou de sua avó, mesmo que apenas geneticamente e por relatos de outros, e já fica feliz simplesmente com a possibilidade de possuir um herdeiro na arte culinária, seu neto Mounir, como afirma na página final de Mets et

merveilles:

Recentemente experimentei uma falsa alegria. Mounir, único menino de uma grande ninhada de netos, me disse que queria se tornar um chefe e me pediu para escrever algumas receitas. Encantada, imediatamente imaginei-o vestindo um chapéu de cozinheiro branco, movendo-se soberano entre um bando de assistentes.161 (CONDÉ, 2015, p.376)

Segundo a autora, sua mãe menosprezava a avó, excelente cozinheira, que para ela era símbolo de incultura. Ela inculcou em seus oito filhos a rejeição às coisas ordinárias da vida e uma espécie de deferência pelo intelectual, afirma Maryse Condé

160 Cuisiner est un art. Il s'appuie donc sur la fantaisie, l'inventivité, la liberté de chacun. Les livres de

cuisine ne sont que des gadgets pour gogos. Il n'existe pas de règles immuables, pas de directives contraignantes.

161 Récemment j'ai connu une fausse joie. Mounir, seul garçon d'une large couvée de petits-enfants,

m'informa qu'il voulait devenir un chef cuisinier et me demanda de lui écrire quelques recettes. Ravie, je l'imaginai aussitôt coiffé d'une toque blanche, évoluant doctement parmi un peuple d'assistants.

em entrevista concedida ao Le monde em maio de 2015. Em Mets et merveilles, a narradora-autora-personagem reconhece a herança dessa avó:

Eu dei vazão a esse talento, a essa arte de cozinhar, talvez menor, feminina, mas que encanta tantas pessoas. Só muito mais tarde e apenas por divertimento atribuí meus dons à minha avó Victoire, renomada cozinheira, que nunca conheci. Eu teria herdado dela à minha revelia.162 (CONDÉ, 2015, p.53)

Durante longo tempo, segundo Maryse Condé, ela aceitou a imposição materna, mas depois se deu conta de que a literatura e a cozinha eram duas artes vizinhas e assim afirma ao final do prefácio de Mets et merveilles: “A história de meu longo crime de lesa-majestade é o tema deste livro.”163 (CONDÉ, 2015, p.15). Cozinhar é também inventar, usar os artifícios que tem e inovar. Aliás, na obra dedicada à avó cozinheira, Maryse Condé já fazia diversas alusões à analogia entre cozinhar e escrever e, em Mets

et merveilles, a autora reforça essa analogia e afirma:

O escritor, quando envelhece, vive no terror de ficar caduco, de sempre repetir o mesmo livro. Uma vez que são as mesmas obsessões circulando em sua cabeça, os mesmos pensamentos e as mesmas angústias que o assediam, uma pergunta lhe vem incansavelmente:

− Eu já não contei essa história? Em qual livro? (...)

Para a cozinheira, pelo contrário, a repetição é garantia de excelência. Quando os amigos exigem: “Faça-nos este prato que você fez tão bem,” alegro-me e enfrento.164 (CONDÉ, 2015, p.375)

O desejo de criatividade que anima o escritor é o mesmo da cozinheira. Um serve-se de palavras, o outro utiliza ingredientes, sabores e especiarias para criar beleza, o agradável, reunir as pessoas, dar-lhes prazer (embora o resultado nem sempre seja o esperado). Fazer um prato com misturas inesperadas e um livro com um assunto impactante, metáforas, imagens, é similar.

162 Je donnai libre cours à ce talent, à cet art de la cuisine, peut-être mineur, féminin mais qui enchante

tant de monde. Ce n'est que beaucoup plus tard et un peu par jeu que j'attribuai mes dons à ma grand-mère Victoire, cuisinière de renom, que je n'ai jamais connue. J'aurais hérité d'elle à mon insu.

163 Le récit de mon long crime de lèse-majesté fait l’objet de ce livre.

164 L'écrivain, quand il vieillit, vit dans la terreur de radoter, de répéter toujours et encore le même

ouvrage. Puisque ce sont les mêmes obsessions qui tournent en rond dans sa tête, les mêmes pensées et les mêmes angoisses qui l'assiègent, une question lui revient inlassablement:

- N'ai-je pas déjà raconté cette histoire? Dans quel livre?(...)

Pour la cuisinière, au contraire, la répétition est gage d'excellence. Quand des amis exigent: "Fais-nous ce plat que tu réussis si bien", j'exulte et je m'affaire.

A relação entre cozinhar e escrever é mais próxima do que parece à primeira vista. Entre as duas atividades, de naturezas distintas, há semelhanças inesperadas. Na origem, as palavras sabor e saber têm significados semelhantes. O verbo latino sapare significa tanto saber quanto ter sabor.

O cozinheiro procura despertar o olfato e o paladar de quem quer agradar. Enquanto prepara os pratos, diverte-se. Já o escritor também deseja o prazer do leitor, só que despertando a sua imaginação. E o escritor e o cozinheiro têm o prazer de ver a sua obra concluída. Para o cozinheiro, um prazer efêmero. Para o escritor, um pouco mais duradouro. Aliás, Condé associa o prazer do texto ao prazer de preparar a comida, tecendo um parentesco íntimo entre a escrita dos gestos e a escrita das palavras; nos dois casos haveria uma ideia de dispêndio, de dispensar tempo e energia para algo que vai desaparecer. Segundo Giard (2013), sobre a sensação de desespero − citada por Marie Ferrier ao entrevistar Irene, uma cozinheira − quando pensa que em pouco tempo tudo some, tudo desaparece, afirma:

Essa hesitação, instante fugidio de desânimo, as cozinheiras a conhecem muito bem, mas se esforçam para não cair nela. Amanhã será outro dia, tudo vai recomeçar, outra comida será feita, outro sucesso virá. Cada invenção é efêmera, mas a sucessão das refeições e dos dias tem valor durável. Nas cozinhas, luta-se contra o tempo, o tempo desta vida que sempre caminha para a morte. A arte de nutrir tem a ver com a arte de amar, portanto também com a arte de morrer. (GIARD, 2013, p.233)

Utilizando o recurso da paráfrase (também muito utilizado por Condé, sobretudo nas autobiografias de 2012 e de 2015, como será observado em capítulo posterior) em

Cozinhar ou morrer: eis a questão (parte do título dado a este subcapítulo), outra

intenção estaria presente, (para além da paráfrase de Shakespeare, um dos autores ingleses de referência da escritora antilhana) a ênfase a esse viés apresentado por Giard de que a arte de nutrir também está relacionada à arte de morrer.

Cabendo aqui exercer o poder de leitora, Condé, em diversas entrevistas, afirma ser Mets et merveilles sua última obra, em função da doença que lhe atinge os movimentos, impedindo-a de fazer suas errâncias físicas e literárias. Sendo assim, nessa obra autobiográfica (uma necrologia antecipada, como se viu) em que ela opta por apresentar-se pelo viés de suas experiências culinárias, talvez tenha a intenção de colocar todos à mesa; não só amigos, filhos, marido, pessoas queridas com as quais convive ou conviveu, mas também oferecer um último prato a ser saboreado por seus

leitores, oferecer a última sobremesa ou a refeição principal (o que for de melhor, de acordo com os gostos), para deixar aquela impressão marcante, saborosa e, sobretudo, inesquecível de quem já está próximo da morte.

O trabalho intelectual que Condé sempre exerceu não excluiu a prática culinária; ela atribui à sua atitude o valor de fidelidade e reconhecimento em relação às gerações de mulheres que a antecederam, sobretudo à sua avó Victoire que, como aquelas mulheres, preparava as refeições, passando horas em volta do fogão, sem esperar nada além do bem-estar da família.

Ainda segundo Giard (2013),

Com seu alto grau de ritualização e seu considerável investimento afetivo, as atividades culinárias são para grande parte das mulheres de todas as idades um lugar de felicidade, de prazer e de invenção. São coisas da vida que exigem tanta inteligência, imaginação e memória quanto as atividades tradicionalmente tidas como mais elevadas, como a música ou a arte de tecer. (GIARD, 2013, p.212)

Indagada sobre se existiria um novo gênero literário que se inscreve na tradição da mulher que nutre e a cozinheira, Condé responde:

A mulher sempre foi a que alimenta, sempre alimentou seus filhos e seu marido que vivem em torno dela. Eu não diria que é novo, mas eu arriscaria dizer que o esforço de criar na culinária se parece muito com o esforço de criar literariamente. Alimentar seu marido e seus filhos, alimentar seus leitores com muitas imagens e metáforas, são duas propostas que se parecem muito.

Victoire, les saveurs et les mots et Mets et merveilles tentam

provar que a criação é multifacetada e que não há hierarquia entre alimentar com as mãos e alimentar com as palavras, é o mesmo esforço.165 (Apud PFAFF, 2016, p.74)

Aqueles que sabem apreciar um bom livro têm grande chance de saber apreciar um bom prato. São saberes lapidados com o passar dos anos. A leitura de um livro é enriquecida pela experiência de vida − é o sabor do saber. A apreciação de um prato bem feito, também. Não é mais uma simples reposição de energias. É um momento sublime de prazer − é o saber do sabor. O escritor e o cozinheiro oferecem prazer e

165 La femme a toujours été nourricière, a toujours nourri ses enfants et son mari qui vivent autour d'elle.

Je ne dirais pas que c'est nouveau, mais j'ai essayé de dire que l'effort de créer culinairement s'apparentait beaucoup à l'effort de créer littérairement. Nourrir son mari et ses enfants, nourrir ses lecteurs avec beaucoup d'images et de métaphores, ce sont deux propositions qui se ressemblent beaucoup. Victoire, les saveurs et les mots et Mets et merveilles ont essayé de prouver que la création est multiforme et qu'il n'y a pas de hiérarchie entre nourrir avec des mains et nourrir avec des mots, c'est le même effort.

satisfação, mesmo sabendo que a literatura também pode acarretar inquietação, desgosto e reflexão, assim como o sabor de um prato pode não ser do agrado de todos.

As obras de Condé sempre foram espaços de transgressão, de reivindicação e descobertas. Também na cozinha, a escritora parece reivindicar. Por que seguir o convencional? As recomendações costumeiras? Por que não misturar os sabores? O salgado e o doce? A carne e o peixe? Reivindica o direito de criar (sobretudo e também) na cozinha. No primeiro capítulo de Mets et merveilles, “Les années d’apprentissage” (“Os anos de aprendizado”) a autora-narradora-personagem fala de como e com quem aprendeu a cozinhar e, em vários momentos, cita Adélia (outra doméstica da casa de seus pais, responsável pela cozinha) que desaprovava suas invenções, suas alterações dos pratos convencionais, em desacordo com os costumes, e apresenta de que modo retrucava:

Adélia muitas vezes me deixava temperar as carnes e os peixes. − Eu não entendo você, comentava, você é a primeira na escola, mas tudo o que lhe interessa é meter o nariz na cozinha.

Já inventiva, aventurava-me em sugestões. Propunha, por exemplo, trocar as batatas da brandade de bacalhau166 por batata-doce. Ela ria:

− O que é isso?167 (CONDÉ, 2015, p.21)

Apesar dos protestos de Adélia, tradicional como o diabo, eu inventava saladas de toranja rosa168 e abacate, amplamente temperadas com suco de limão. No entanto, agora cada vez que eu entrava na cozinha, tinha a sensação de transgredir, de desafiar uma proibição, sentimento que experimentaria alguns anos mais tarde quando comecei a beijar os meninos na boca como se fazia no cinema.169 (CONDÉ, 2015, p.23)

166 Prato francês da região da Provence, a brandade de morue é um purê feito com bacalhau, alho, leite,

creme de leite e azeite de oliva. Normalmente é servido com torradas, e às vezes com trufas pretas picadas.

167 Adélia me laissait souvent assaisoner les viandes et les poissons.

− Je ne te comprends pas, commentait-elle, tu es la prémière à l'école mais tout ce qui t'intéresse c'est fourrer ton nez dans la cuisine.

Déjà inventive je hasardais des suggestions. je lui proposais par exemple de remplancer dans la brandade de morue les pommes de terre par des patates douces. Elle riait:

− C'est quoi ça?

168 A toranja ou toronja, também conhecida como grapefruit, é um citrino híbrido, resultante do

cruzamento do pomelo (Citrus maxima) com a laranja (Citrus × sinensis). Ácida e azeda com uma doçura latente, a toranja tem uma suculência similar à da laranja e possui muitos dos mesmos benefícios para a saúde. A toranja é um citrino grande, parente da laranja e do limão, e é categorizada como branca (loira), rosa ou rubi. No entanto, essa terminologia não reflete a cor da sua casca (amarela ou amarela rosada), mas a cor da sua polpa.

169 Malgré les protestations d'Adélia, traditionnelle en diable, j'inventais des salades de pamplemousses

roses et d'avocats, largement assaisonnés de jus de citron. Cependant désormais chaque fois que j'entrais dans la cuisine, j'éprouvais le sentiment de transgresser, de braver un interdit, sentiment que j'éprouvais quelques années plus tard quand je commençai à embrasser les garçons sur la bouche comme on le fait au cinéma.

− Que ideia! Você colocou canela em pó! A canela não tem nada a ver no Colombo170!

Por quê? Quem decidiu isso? Eu não gostava dos pratos tradicionais, cujas receitas imutáveis parecem provir de textos sagrados legados pelos nossos antepassados. Eu gostava de criar, inventar.171 (CONDÉ, 2015, p.24)

− Isso não é mafé172. Eu te convidarei a minha casa e farei você

provar o verdadeiro mafé. Essas palavras intransigentes me lembraram as de Adélia. Verdadeiro? Falso? O que isso significa?173 (CONDÉ, 2015, p.48)

Segundo Anne Muxel (1996), a cozinha familiar é objeto de transmissão, a arte de cozinhar se confunde com a arte de transmitir; fio de memória que pode atravessar gerações; é uma maneira de celebrar um vestígio, de perpetuar a única tradição familiar. Condé confessa: “na bela casa que ocupávamos na rua Alexandre-Isaac meu refúgio favorito era a cozinha.” 174 (CONDÉ, 2015, p.21)

O reconhecimento dessa transmissão muitas vezes vem mais tarde, como se o dever de memória pedisse um adiamento. (...) Fio de memória, que pode passar por várias gerações, muitos saberes herdados, mas também os gostos, remontam aos avós. Os avós são, em muitos casos, declarados como iniciadores de prazeres e de gostos nesta matéria. (...) Isto é memória: que as coisas sejam ditas e repetidas. Mesmo quando se trata de comer, a palavra é um retransmissor. (...) Memória de um alimento como um traço de união (...), uma forma de celebrar um vestígio, de perpetuar a única tradição familiar.175 (MUXEL, 1996, pp.89-90)

Mas Maryse Condé, paradoxalmente, com a intenção de perpetuar uma tradição, oferece pitadas de rebeldia, de transgressão, de mudança; parece eliminar preconceitos na cozinha, estabelecendo uma estreita relação entre a cozinha e a vida da sociedade em que está inserida, criando, assim, um fio condutor para sua história. Ao final do capítulo

170 Prato antilhano.

171 − Quelle idée! Tu as mis de la cannelle en poudre! La cannelle n'a rien à voir dans le Colombo!

Pourquoi? Qui a décidé cela? Je n'avais aucun goût pour les plats traditionnels dont les recettes immuables semblent provenir de textes sacrés légués par nos ancêtres. J'aimais créer, inventer.

172 Prato tradicional da Guiné à base de carne ou de peixe cozido num molho de manteiga. 173 Je t'inviterai à la maison et je te ferai goûter le vrai mafé.

Ces paroles intransigeantes me rappelèrent celles d'Adélia. Vrai? Faux? Qu'est-ce que cela signifie?

174 Dans la belle maison que nous occupions rue Alexandre-Isaac mon refuge favori était la cuisine. 175 La reconnaissance de cette transmission vient souvent plus tard, comme si le devoir de mémoire

demandai un délai. (...)

Fil de mémoire, pouvant traverser plusieurs générations, beaucoup de savoir-faire hérités, mais aussi de goûts, remontent aux grands-parents. Les grands-parents sont dans beaucoup de cas déclarés comme iniciateurs de plaisirs et de goûts en la matière. (...)

C'est cela la mémoire: que les choses soient dites et répétées. Même lorqu'il s'agit de manger, la parole est un relais.(...) Mémoire d'une nourriture comme un trait d'union (...) une manière de célébrer un vestige, de perpétuer l'unique tradition familiale – Tradução nossa.

“Soul food” (“Alimento da alma”), uma reivindicação é apresentada ao leitor quando Condé opta por relatar uma conversa com a amiga Laura Adamson em que suscita o caráter de resistência associado ao seu ato de cozinhar:

− O que você quer provar? Perguntava-me ironicamente. Que você não é uma verdadeira intelectual?

Dei de ombros:

− O que você quer dizer? Cozinho porque gosto de cozinhar. E isso é tudo.

− Você sabe que as coisas não são tão simples, respondia. Para você, cozinhar é uma forma de resistência.

Resistência a quê? A esse mundo conformista no qual me afundava apesar de mim mesma?176(CONDÉ, 2015, p.308) Segundo Michael Pollan (2014),

Mesmo o prato mais banal segue uma curva de transformação, tornando-se, num passe de mágica, mais do que a mera soma de suas partes. E em quase todos os pratos podemos encontrar, ao lado dos ingredientes, os elementos de uma história: um começo, um meio e um fim. (POLLAN, 2014, p.12)

A paixão pela cozinha, segundo a autora, está associada a um sonho de liberdade – “Minha paixão pela cozinha se associou a um sonho de liberdade.” 177 (CONDÉ,

2015, p.25) e também contribui para quebrar algumas imagens pré-estabelecidas da própria autora ao longo de sua carreira literária, como se pode verificar no prefácio de

Mets et merveilles em que Condé afirma: “Ser uma excelente cozinheira contribuía

também para quebrar a minha imagem de intelectual, de militante e de feminista a que me associam facilmente.”178 (CONDÉ, 2015, p.12). Descobre-se, assim, uma outra

Maryse Condé, que se poderia imaginar entre a África, o Caribe e os Estados Unidos, sempre com um caderno de anotações ou diante de um computador, sem outra preocupação além da escrita.

Apesar de a culinária ser o fio condutor dessa autobiografia, as leituras, as influências literárias não deixam a escrita de Condé. Em Mets et merveilles, elas

176 − Qu'est-ce que tu veux prouver? me demandait-elle moqueusement. Que tu n'es pas une vraie

intellectuelle?

Je haussais les épaules:

− Que vas-tu donc chercher? Je cuisine parce que j'aime cuisiner. Un point c'est tout.

− Tu sais bien que les choses ne sont pas aussi simples, répliquait-elle. Pour toi, cuisiner est une forme de résistence.

Résistence à quoi? À ce monde conformiste dans lequel je m'enlisais malgré moi?

177 Ma passion pour la cuisine s’associa à un rêve de liberté.

178 Être une excellente cuisinière contribuait aussi pour moi à casser cette image d’intelectuelle, de

permeiam o texto como ingredientes necessários à produção intelectual da autora; pode- se dizer que essa obra seja uma espécie de mistura dos assuntos encontrados em suas obras anteriores: a herança culinária e afetiva de Victoire, les saveurs et les mots, a herança familiar de Le coeur à rire et à pleurer e a herança intelectual de La vie sans

fards. Ela revisita seu percurso literário à luz de seus pratos favoritos e da descoberta de

novos sabores durante suas numerosas viagens. Afirma ter descoberto as Antilhas estando em Paris179, pelo viés da cozinha. Condé reafirma sua descoberta “Assim meu primeiro jantar em Paris foi uma refeição antilhana.” 180 (CONDÉ, 2015, p.28)

Assim, essa obra de Maryse Condé pode ser lida como a continuação e complemento de La vie sans fards, sua autobiografia publicada em 2012, e mais uma vez uma homenagem à avó materna Victoire.

Em meu livro Victoire, les saveurs et les mots eu arrisco uma explicação descrevendo os sentimentos complexos que ela tinha por sua mãe, uma excelente cozinheira, completamente analfabeta, que trabalhava para os brancos. Era uma mistura de devoção e de vergonha.181 (CONDÉ, 2015, pp.22-23)

A cozinha, as receitas e os sabores constituem certamente o fio condutor do

No documento Maryse Condé, relatos (auto) biográficos (páginas 106-128)

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