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O primeiro parágrafo do conto Miúda e o guarda-chuva (ver apêndice), eu escrevi e deixei adormecer durante muitos meses. Em parte, porque sempre tive medo

de escrever e adoecer. Em parte, porque sempre tive medo de escrever e sarar. Desde o começo, o conto evidencia a relação afetiva motriz da história: Miúda e a Planta Carnívora. O conflito central triangula as relações entre esses dois personagens e as formigas. Miúda alimenta sua planta com formigas que, cansadas de serem comidas, arquitetam planos indiretos e metafóricos, criando fatos extraordinários na vida de Miúda, para que ela perceba que elas não querem mais ser o alimento exclusivo do capricho de sua planta. No conto, as formigas são personificadas em bando, a peça e a animação adotam outra estratégia de representação, diferenciando duas formigas centrais, em torno das quais constroem uma atmosfera beckettiana. Mais dois personagens coadjuvantes são anunciados no conto, Inércia, vizinha de Miúda, e seu Zé, o carteiro amigo, que sempre traz as notícias.

No conto, Miúda é uma moça de idade imprecisa. No começo, eu não pensava em escrever uma história para crianças, apenas uma história. Miúda era meio Macabéia, em meu pensamento, meio o Pequeno Príncipe. Na ideia que ainda não era papel. Era ela e sua planta carnívora, seu bicho de estimação que era vegetal e comia formigas. Tentei construir uma atmosfera parecida com a das casas que visitei na minha infância, nos períodos de férias, em Oliveira dos Campinhos, interior da Bahia. Cheiro de café, broas e muito verde. No fluxo da escrita, não puni nenhuma das imagens que desejei ver no conto. Hoje olho para elas, compreendendo a dimensão das minhas escolhas e acatando as outras possibilidades que elas abrem, afinal, é esta abertura o que mais me interessa neste trabalho.

Miúda gosta de amoras, uma fruta difícil pelas bandas de cá, gosta de ficar sentada no banco em frente à sua casa, é cercada de um verde que sobra e sempre está atenta à limpeza dos dentes de sua planta. Por ela, nutre um misto de amor e angústia. Convive com o temperamento voluntarioso e sarcástico de sua planta e se divide entre a necessidade de alimentá-la e a piedade que sente das formigas. Dessa relação, observa que o amor é um sentimento estranhíssimo, nem por isso menos bom. Talvez menos romântico do que o que somos criados para ver. A planta carnívora é uma lembrança do último namorado que Miúda teve. Assume uma dimensão metafórica, não se sabe ao certo, pelo conto, como ela nasceu, em que ponto da vida de Miúda ela surgiu. Mas fica ali, sempre próxima, fazendo parte da vida que segue, como todas as outras memórias.

O devaneio reimagina o passado. “E na vida de um leitor chegam devaneios que o escritor tornou tão belos que os devaneios do escritor se convertem em devaneios vividos pelo leitor. Lendo outras "infâncias", minha infância se enriquece.”

(BACHELARD, 1988, p.117). É muito nebuloso, para mim, visualizar durante o ato criativo as pautas do passado presentes na pequena edição do presente. Vive-se a delícia de deixar jorrar o que se imagina e depois se trabalha para tornar a massa de linguagem coerente com alguma expectativa que se tenha. Só depois de finalizado o conto, é que pensei em muitos pares ficcionais que me acompanharam durante a infância, cujo relacionamento afetivo e/ou amoroso, tanto no âmbito da amizade, quanto do enamoramento, passava pela ideia do amor como um sentimento estranho, apesar de colorido, que teme o devoramento, mas permanece ardendo pacientemente. E lembrava do Pequeno Príncipe e sua rosa egoísta que o chantageava para que não a deixasse só e para quem ele volta, deixando a carcaça de seu corpo na Terra. Ou Snoopy, o cachorro que ignora a carência looser de seu dono, Charlie Brown, mas não concebe a ideia de viver longe dele. Ambas as experiências poéticas que, antes de sublinhar uma atmosfera masoquista, evidenciam a afirmação de um outro tipo de amor, menos idealizado e carregado de contradição. Por que não isso também?

O conto não segue uma estrutura clássica de apresentação de personagens, embora seja linear no encadeamento de sua narrativa, toda realizada em dois dias, com amplo espaço de manejo não convencional do tempo. Parte dos personagens só é apresentada entre o meio e o desfecho da história. Seu Zé, o carteiro que sempre visita Miúda, tem a função pragmática de entregar a caixa que desencadeia um dos fatos extraordinários da trama; não existia, do ponto de vista das minhas intenções, sugestão de relação amorosa entre os dois. Na dimensão do conto, seu Zé é para Miúda o contato com o mundo que ela não vive, mas do qual tem notícia. Inércia é, no conto, a vizinha de Miúda. O mote central do personagem é catalisado pelo próprio nome. Inércia permanece no estado em que se encontra. Se está dormindo, permanece. Se está andando, permanece. Se está correndo, permanece. São dela os estados de permanência, os quais Miúda chama de permanecências. Tanto seu Zé quanto Inércia são coadjuvantes que distraem Miúda de seu foco principal: resolver o pequeno suspense provocado pelos fatos extraordinários.

As formigas na trama do conto são uma coletividade que funciona em grupo, mirabolando planos para chamar a atenção de Miúda, para o fato de que não querem mais ser reduzidas a alimento exclusivo da alimentar a planta carnívora. As formigas levantam o problema da comunicação. Através de escolhas sempre indiretas e metafóricas, elas apresentam a Miúda a demanda de um enigma. Para solucioná-lo, não basta juntar os pedaços do quebra-cabeça, é preciso produzir leitura. E é através de uma

conexão indireta e repentina, entre sua obsessão com a limpeza dos dentes de sua planta e a resposta à pergunta que pontua o conto “Formiga tem dente?”, dúvida frequente de Miúda, que a personagem deflagra uma interpretação para a sucessão de fatos extraordinários a que foi acometida durante dois dias, resolvendo o enigma.

Quando acabei de escrever o conto, apesar de não associá-lo imediatamente ao universo infantil, pensei na dimensão do fantástico que o trabalho ficcional permite. Formigas não têm dentes, mas podem ter. Plantas carnívoras se alimentam de insetos, mas também de formigas, por que não? Inércia pode dormir por três dias, sem necessidade de alimento. Seres inanimados organizam planos inusitados através de enunciados fantásticos. Essa dimensão do fantástico, associada à crença no triângulo Miúda-Planta-Formigas, me fez visualizar um plano, extraordinário, de promover um primeiro encontro entre algo que eu escrevi e as crianças.

O que antes era uma pista, reflexo de um desejo, encontrou, através da pesquisa, balizadores claros. Held (1977) se propõe a discorrer vastamente sobre o imaginário, no seu “O imaginário no poder – as crianças e a literatura fantástica”. O recorte, claro desde o título, propõe uma análise rebuscada do papel do fantástico e das atribuições que a terminologia foi abarcando. Logo de saída, ela estabelece que o assunto de que trata não é o pseudo-imaginário com função de esquecimento e exorcismo, propondo uma distinção entre “maravilhoso” e “fantástico”, terminologias comumente associadas, mas que reservam para a autora diferenças ímpares. Entre a ambiguidade do “maravilhoso” e a ambiguidade do “fantástico”, a escolha pelo fantástico, não como um artefato pré-fabricado artificialmente para a infância, mas como qualquer espécie de fantástico em que a criança encontre seu bem, é a predileção clara da autora.

Mesmo tentando fugir das definições fixas, apostando antes em compreensões prévias, sempre incompletas e provisórias, Held se arrisca a formular o que compreende como fantástico, trabalhando na dimensão do ficcional que, ainda que extrapole os limites do que tomamos por real, conserva em si pontos de apego reconhecíveis com ele. O fantástico é comumente associado ao extraordinário, ao insensato, ao incrível, ao inimaginável, ao irreal. Entretanto, apenas delimitar o fantástico por oposição ao real não basta, não só porque nossas ideias de realidade são também construídas, mas porque se a dimensão do fantástico é crível, é justamente porque mantém algumas conexões reconhecíveis entre as nuanças do “inimaginável” (que, no entanto, foi imaginado por um autor) e a experiência encarnada, vivida cotidianamente.

Uma das citações que faz, a René Guillot, aponta que a criança estabelece maiores vínculos afetivos com um animal que lhe fala. O que a frase adorna está na ordem de realização de grandes sonhos humanos, retomados inclusive pela ciência. Torna possível ao coração experienciar situações que a realidade, tal qual a tomamos, não permite, mas que mantém com ela a conexão viva do afeto. Valida as sensações aparentemente contraditórias, mas, a meu ver, complementares, de que a vida não basta e de que, como afirma a autora, a leitura do real passa pelo imaginário, uma vez que a instância da realidade é produzida por nós mesmos, de modo que, pelo diálogo das experiências que trazemos em nós, o real é fantástico e o fantástico é real.

Por fim, assume o fantástico como uma narração-convite a uma leitura aberta ou mesmo a leituras sucessivas e múltiplas, arriscando a formulação igualmente aberta:

Digamos apenas, em primeira abordagem, que pertencerá à literatura fantástica toda obra na qual temática, situação, atmosfera, mesmo linguagem, ou tudo isso junto, nos introduzirão num outro mundo que não o da percepção comum, diferente, estrangeiro, estranho, que nos permite voltar, pouco a pouco, ao longo da reflexão, a esses diferentes componentes. (HELD, 1977, p.30)

No caso de Miúda, a dimensão do fantástico está instaurada em diversos âmbitos. Na condição de Inércia, na Planta Carnívora falante, na inteligência das formigas em caminhos que, sempre de forma indireta, chamam a atenção de Miúda para o seu drama. Esse último núcleo de personagens, inclusive, como já afirmei, é o núcleo que mais cresceu ao longo das traduções cênica e fílmica do conto, tornando-se uma classe representada por duas formigas específicas, F.A. e F.B., respectivamente, Formiga Azul e Formiga Branca. Através de através de diálogos beckettianos, promovem o encontro do leitor/espectador com os fatos extraordinários arquitetados.

No conto, esses fatos extraordinários assumem uma dimensão que extrapola o cotidiano de Miúda e, por isso, deixam a personagem tão atônita. Afinal, seu dia é regido por hábitos bem claros e descritos nos dois primeiros parágrafos da narrativa. Os fatos extraordinários são: a frase “Miúda, o guarda-chuva” escrita em bundas acesas de formigas no banco em frente a sua casa, um pano quadrado, vermelho de bolinhas brancas, enviado pelo correio, a chuva quadrada que cai na cabeça de Miúda, provocada pelos furos nos guarda-chuvas de sua coleção, que as formigas produziram para formar uma frase-alerta para Miúda e, ao final, a percepção desses furos, dos planos e da frase.

A frase-verso que retoma minha homenagem à Deusa da Zona Sul, como era chamada Ana Cristina Cesar: “Puro açúcar branco e blue” (CESAR, 1999, p. 55).

Quando eu estava perto de finalizar o conto, gastei algumas horas ponderando sobre que elemento poderia ancorar ao mesmo tempo uma melancolia qualquer e alguma imagem que remetesse às formigas. Foi quando me lembrei do fechamento do poema de Ana C., citado no começo deste capítulo. “Puro açúcar branco e blue”, para mim, encerrava essa ideia do final do conto. O açúcar branco criaria a necessária associação às formigas e o blue, além de uma cor em inglês, potencializa a ideia de melancolia e tristeza. Os dois termos constroem um arcabouço semântico que, deslocado do seu contexto original, o poema de Ana C., poderia sugerir um fecho-dica sinalizando o espaço das formigas, cansadas de serem comidas pela planta de Miúda, em sua tentativa, ainda que por caminhos tortuosos e indiretos, de chamar a atenção da protagonista. A sensação de ter fechado uma ideia com uma solução que me trazia muita felicidade me remeteu ao meu carneirinho na caixa azul. De certa forma, o susto que me deu o carneirinho mofado depois do tempo me fez aprender sobre quebra de expectativas e o quanto se pode sobreviver a elas. Assim, sem querer forjar um fecho de conto que suprisse muitas expectativas além das minhas, intentei, antes, suprir minha necessidade de fim, para que, a partir dela, por identificação ou não, se aproximasse quem achasse por bem chegar perto.