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Microrrealidades do PAA no Rio Grande do Norte sob o olhar do “policy

4 INVESTIGAÇÃO DO DESEMPENHO DO PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS À LUZ DA TEORIA DA “POLICY DISMANTLING”

4.4 EFEITOS MICROINSTITUCIONAIS DO PAA: REFLEXÕES ACERCA DA PERCEPÇÃO DOS AGRICULTORES PERCEPÇÃO DOS AGRICULTORES

4.4.1 Microrrealidades do PAA no Rio Grande do Norte sob o olhar do “policy

dismantling”

Sandim (2019), ao analisar o processo de consolidação do Estado brasileiro, resgata o conceito de vulnerabilidade institucional, cuja definição coloca em xeque as políticas públicas como esforços deliberados para atender problemas sociais. Entretanto, recentemente, no atual governo, a proposta governamental caminha em direção oposta à condução de um Estado responsivo e inclusivo, pela adoção, sobretudo, de reformas fiscais.

A reversão da vulnerabilidade, seja institucional ou socioeconômica, requer, necessariamente, um compromisso contínuo, sustentável e articulado voltado ao aprimoramento do conjunto de políticas públicas. Sandim adverte, assim, que os avanços alcançados nos últimos 30 anos com o aparato institucional são mitigados e as situações de vulnerabilidade tendem a elevar.

Inquestionavelmente, a compreensão do processo de desmantelamento institucional, por um lado, retrata o estabelecimento de novas relações sociais e a limitação da intervenção

do Estado em atender os problemas públicos. Por outro lado, a garantia dos direitos, proporcionada pelas políticas públicas, é comprometida, reforçando a perspectiva de vulnerabilidade em distintas áreas.

No caso da agricultura familiar, particularmente, a vulnerabilidade identificada e que passou a ser combatida com a institucionalidade das políticas públicas é associada à uma trajetória de territorialidade desigual dos esforços do Estado, cujo elemento marcante foi a reprodução de pobreza, principalmente, nas áreas rurais. Desta forma, o desmonte institucional relega, novamente, o compromisso do Estado com o segmento da agricultura familiar.

A teoria do policy dismantling ressalta que é fundamental conhecer o processo de desmantelamento das políticas e em quais condições isso ocorre. A análise engloba tanto a extinção de funções, de instituições, de políticas e programas, no entanto, destaca que existem mecanismos que favorecem ou criam resistência ao desmantelamento. A compreensão desse arcabouço institucional possibilita a interpretação da intensidade e direção do processo de desmonte.

Portanto, o aporte teórico do “policy dismantling” contribui na compreensão das estratégias que estão sendo consolidadas nas políticas públicas da agricultura familiar. No caso do PAA no Rio Grande do Norte, especificamente, mas que também ocorre nos demais estados brasileiros, o aparelho institucional mobilizado reafirma que a política não é interrompida de forma abrupta, mas os recursos são reduzidos paulatinamente. Essa discussão encontra respaldo no debate acerca da hierarquia da extinção, proposta por Daniels (1997), em que quanto maior a visibilidade, mais difícil a política ser extinta.

A literatura indica, também, como as preferências e estratégias dos atores políticos e seus poderes de barganha política repercutem na criação do ambiente institucional, o qual consubstancia o processo de política pública. Portanto, essa interação é indissociável da orientação ideológica do governo, que favorece ou dificulta a extinção da política. Assim, esse processo adquire conotação política, pois envolve interesses contraditórios: de um lado, atores que preconizam a continuidade da política e a permanência institucional, por outro lado, aqueles que se beneficiam da extinção.

À vista disso, além das preferências políticas, as oportunidades estruturais, as estratégias e a análise de custos e benefícios políticos estão no cerne da decisão acerca da extinção. Dada a relevância da política pública no atendimento de um problema social e, consequentemente, seu rebatimento nas condições socioeconômicas, é crucial compreender em quais condições a extinção é efetivada.

A desestruturação do aparato institucional da agricultura familiar, especificamente, se mostra insensível aos efeitos gerados no reconhecimento das particularidades do segmento, da redução da pobreza rural, na saída do Mapa da Fome, na redução da insegurança alimentar e nutricional e nas melhorias das condições de vida da população rural. Portanto, foi por meio do redesenho e da articulação de distintas políticas públicas que o meio rural passou a ser visto como espaço potencial para o desenvolvimento nacional.

A importância do PAA, enquanto ferramenta de dinamização econômica e de segurança alimentar, reafirma a construção tardia de políticas públicas, que são fruto de lutas históricas, para um segmento que estava à margem do acesso ao mercado. Por conseguinte, a continuidade da política é crucial para o seu aperfeiçoamento e para assistir um elevado contingente que ainda não tem acesso ao mercado e direito à alimentação. A partir de 2013, e de forma mais acentuada pós-2015, o programa vem enfrentando sérias dificuldades na sua execução e na sua capacidade de absorção dos agricultores familiar, tendo em vista a expressiva queda na dotação de recursos.

Dadas as estratégias adotadas no PAA, pode-se classificar o tipo de desmantelamento materializado nas instituições voltadas à agricultura familiar. O desmantelamento por defeito (“default”) parece ser a tipologia mais presente no programa, tendo em vista que ressalta um processo de redução gradual dos recursos, sem a formalização da decisão e com baixa visibilidade.

O cenário atual desperta a insegurança nos agricultores e questionamentos acerca da alocação dos recursos do programa. Uma crítica pertinente, por conseguinte, é que o caráter centralizado e descontínuo do programa (CUNHA; FREITAS; SALGADO, 2017) passa a ser ainda mais marcante. Como o programa depende da aprovação de propostas de participação, em que há a seletividade dos municípios que conseguem acessá-lo, o processo se torna ainda mais delongado. Logo, contrariamente ao PNAE que tem uma demanda constante no processo de compras de alimentos, o PAA cria uma demanda descontínua.

Na prática, essa descontinuidade do programa gera, nos agricultores familiares, uma incerteza no fornecimento dos alimentos e na regularidade da quantidade produzida que será absorvida pelo PAA. Isso pode, em última instância, favorecer o retorno à arranjos de comercialização informais, a exemplo da dependência dos agricultores familiares aos atravessadores.

Por outro lado, o estímulo gradual a organização social em cooperativas e associativas, propiciado pelo PAA, é mitigado em detrimento da maior incerteza e insegurança no tocante à comercialização agrícola. Cabe ressaltar, assim, que esse cenário repercute na formação do

capital social e no enfraquecimento de relações interpessoais, reproduzidas na agricultura familiar.

Além dos agricultores familiares, o programa era assentado no atendimento da diversidade de públicos-alvo, tais como: aquicultores familiares, assentados da reforma agrária, pescador artesanal, quilombolas, indígenas. Sob este olhar, o PAA apresentou uma trajetória inquestionável na redefinição de uma política pública que garantiu o reconhecimento da identidade e a valorização dos aspectos tradicionais das comunidades marginalizadas pelas políticas convencionais.

Ou seja, com o PAA o paradigma do desenvolvimento rural agregou não só a dimensão financeira, mas também aspectos não monetarizáveis associados à promoção do direito humano à alimentação adequada para os distintos atores, pela afirmação da identidade da agricultura familiar, pela criação de laços de proximidade, por elevar a autoestima das comunidades e por respeitar os atributos culturais.

Além disso, o contexto de austeridade fiscal, reduz a capacidade do PAA em abastecer os equipamentos públicos e, consequentemente, promover à segurança alimentar. Com isso, reduz o papel do programa na redução da pobreza rural e na compatibilidade do DHAA com o respeito aos aspectos culturais e da diversidade, intrínsecos a noção de soberania alimentar.

Entender o processo de construção de uma política pública, tal como o PAA, a partir de elementos não só técnicos, mas, sobretudo, políticos, confirmam o desmantelamento como uma decisão política deliberada. É possível reconhecer a ideia de janela de oportunidade, como defendida por Kingdon (2003), na compreensão de que a consolidação das políticas públicas da agricultura familiar no Brasil foi resultado de um processo histórico na formação de coalizões, que estão sendo desmontadas gradualmente.

Além disso, dada a notoriedade e visibilidade da agricultura familiar, o desmantelamento ocorre de forma tímida, inicialmente, tendo em vista a formação de coalizões antiextinção. Como defendido por Souza e Secchi (2015), o cerne desses obstáculos propõe a ideia de path dependence, em que as situações passadas influenciam o presente e há custos significativos na mudança de uma trajetória política. Desta forma, decisores políticos, os implementadores ou os destinatários da política exercem resistência contra sua extinção, em face do custo político que isso representa.

O processo de desmantelamento é reproduzido por um discurso hegemônico de redução da intervenção do Estado, nos distintos segmentos sociais, e do seu compromisso com o aperfeiçoamento das políticas públicas. Oculta-se, desse modo, o papel do PAA na proteção dos agricultores familiares e dos beneficiários consumidores, por meio da

desestruturação da política pública e da orientação que defende a redução do papel e do peso do Estado.

Em síntese, está em marcha, atualmente, um processo que subordina a institucionalidade criada em torno da agricultura familiar. Em que pese a legitimidade e o reconhecimento das particularidades do segmento, alcançadas nos últimos anos, a orientação de reformas fiscais submete às políticas públicas, vinculadas à agricultura familiar, a um aspecto de política de governo, não de Estado.