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Migração e sociabilidade: os “sertanejos” e os “da rua”

Mapa 2 Sub-regiões do Nordeste brasileiro

3.5 Migração e sociabilidade: os “sertanejos” e os “da rua”

Um dos significados mais relevantes da migração é o impacto que ela gera em outras regiões. O migrante é um corpo estranho na realidade que o recebe. Embora Hasse (2007, p. 77) sentencie que “[...] para se fixar num território novo, ainda que temporariamente, o migrante precisa manter uma boa relação com o meio ambiente, nele incluídos os humanos já estabelecidos”, não é isso o que tem acontecido. As relações de convivência são difíceis. Na raiz das tensões está o fato de que a presença do migrante “quebra o status quo do lugar onde se insere” (Ibid., p. 78).

No universo canavieiro alagoano, de forma genérica, todo migrante do Semiárido é chamado de “sertanejo”. Os “sertanejos”, por sua vez, chamam os canavieiros da Zona da Mata de os “da rua” (PLANCHEREL; ALBUQUERQUE; VERÇOSA, 2009). Quando os “da rua” caracterizam os migrantes do Semiárido de “sertanejos”, demonstram não uma incapacidade de distinguir quem é do Sertão e quem é do Agreste. Na verdade, estão demonstrando a sua rejeição contra aqueles que chegam e ameaçam os seus empregos, contra aqueles que, conforme expressam, “aceitam” os extremos rigores e os abusos das usinas. “Eles são considerados passivos, submissos e

inconscientes e, portanto, constituem-se como categoria avessa à organização de classe” (MENEZES, 2002, p. 18).

O movimento migratório sempre foi povoado de conflitos e tensões. Nos últimos anos as tensões têm se renovado e assumido novos contornos. O fato é que a região canavieira vive uma reestruturação profunda nas últimas décadas. As relações entre capital e trabalho, especialmente, foram alteradas. Novos modelos de gestão e de controle do trabalho foram impostos, gerando mais dor e sofrimento para os trabalhadores canavieiros e taxas de mais-valia ainda mais agressivas (ALBUQUERQUE, 2009; CARVALHO, 2000; SILVA, 1999). Tais alterações acirraram as lutas de classes no universo canavieiro, fato que fica evidenciado com as recentes greves e protestos no universo canavieiro alagoano(CÂNDIDO; MALAGODI, 2007); e fortaleceram o interesse dos empregadores de ter a mão de obra dos migrantes “sertanejos”. Eles compõem um plantel de reserva indispensável. As empresas precisam ter excedente de mão de obra para poder impor os novos padrões de conduta e os graves índices de produtividade tão característicos das teorias de administração moderna.

O “sertanejo”, como um “de fora”, um outsider, sente o olhar de preconceito e de discriminação contra si e contra a sua região, é visto como desvalido, [um morta fome], como um desgarrado da sua região, da sua gente e da sua família, ressente-se, mas é principalmente a sua condição de concorrente no mundo do trabalho, que faz com que seja mirado como um intruso, uma ameaça, despertando o olhar hostil dos demais trabalhadores canavieiros. A fama de bom trabalhador representa a grande vantagem dos “sertanejos” em relação aos “da rua”.

Sobre o “sertanejo” pesam dois adjetivos, ser trabalhador e ser bom trabalhador. São valores afins e complementares, mas distintos. Ser trabalhador e bom trabalhador é ter grande disposição para o trabalho, acordar cedo, trabalhar com afinco e alcançar produção média elevada; executar as tarefas com zelo, respeitar as regras, ser disciplinado, “vestir a camisa”, não faltar ao trabalho, ter boa conduta no alojamento e com seus pares e superiores. Ninguém alcança a fama de trabalhador e de bom trabalhador à toa, menos ainda constrói uma imagem coletiva como essa sem grande e reiterada razão. Esse é um status gozado pelos sertanejos e por alguns trabalhadores “da rua”. O canavial exige isso e o projeto migrante só faz sentido sob essa condição.

O preço da fama de trabalhador e de bom trabalhador é alto. Além do sofrimento físico, adoecimentos e sequelas que o acato às normas e sujeições impostas

pelo mundo canavieiro acarretam, existem também os preconceitos e as deformações no corpo e na imagem do migrante. Em Silva (2011, p. 207), encontramos o depoimento de um auditor fiscal do MPT que nos diz muito sobre isso:

O cortador de cana oriundo do semi-árido (sic), ele é considerado bom trabalhador, de alta produtividade, produz muito bem. Geralmente fica em alojamento, não um pessoal como os da área. É um pessoal que trabalha muito, mas nas questões das reivindicações não reivindicam tanto que os trabalhadores nativos aqui da região. Talvez os trabalhadores daqui por terem informações maiores são mais exigentes no cumprimento de seus direitos trabalhistas.

As representações produzidas pelos trabalhadores “da rua” e pelos patrões constituem identidades distorcidas do “sertanejo”. Ser “sertanejo” é a sua “imperfeição original”, em seguida lhe são imputadas imperfeições e atributos que o descaracterizam como ser humano comum, diverso, dinâmico. Ser “sertanejo" ganha fortes contornos negativos, configurando-se como um estigma (GOFFMAN, 2008) e confirmando a tese de que “ninguém migra impunemente” (HASSE, 2007). De um lado, ele aparece como desprovido de autoestima e de consciência de classe e é acusado de tolerar os abusos extremos dos patrões; do outro, ele é máquina, dócil, pois além de cumprir as rigorosas metas de produção, convive com condições que lhes são hostis [Os usineiros levam daqui pra lá porque não tem sábado, domingo e feriado. Os daqui entram com tudo. Os de lá são mais cabrero. Eles acham que têm mais direito].

Por sua vez, o “sertanejo” camponês que migra para a região canavieira tem uma condição que os “da rua” não conhecem. Ele tem uma atividade de autorreprodução, o que inclui um pedaço de terra, uma casa própria, a propriedade de ovelhas, de algum gado; por isso, não raro, lançam um olhar superior, enxergam os “da rua” como trabalhadores em condições de inferioridade financeira e patrimonial. Os “da rua”, muitas vezes, sequer têm um lugar próprio para morar, vivem de aluguel nos povoados, vilas ou mesmo nas periferias da cidade. Enquanto isso, mesmo que no limite da necessidade, o camponês move-se em função de um projeto de manutenção e/ou de aprimoramento do patrimônio que possui. O camponês tem uma retaguarda que o “da rua” não tem, isso o faz, em alguma medida, um sujeito com mais autonomia (CASTORIADIS, 1982; SADER, 1988). Essa autonomia, utilizada na hora de medir-se com o trabalhador “da rua”, não é utilizada para impor-se diante do patrão. A relação com o patrão é de ‘subordinação estratégica/consentida’.

O camponês que migra não é um qualquer, tem um pedaço de terra que chama de seu, é membro de uma determinada família cujos costumes e posição social já eram definidos e perseguidos antes dele. É um sertanejo, filho de pai e mãe, chefe de uma família, representa um lugar. Fora, quando migra, esses conteúdos são chamados, são vividos como estigma, ele é visto como um desgraçado, “sertanejo” que migrou para não morrer, que deixou a família em desgraça [Aquilo é um bando de morta fome, filho dessa, daquela outra. Acha que nós é mais carente do que eles]. Nada disso precisa ser verdadeiro, mas essa condição fala e fala alto nos seus ouvidos.

Apesar de ser uma realidade e de contribuir para a solução dos conflitos e desigualdades local e regional, a migração, mesmo que temporária, não é o projeto primeiro dos sertanejos e tem graves efeitos colaterais.

A migração é questionada em seu status de alternativa de vida para a população, já que expõe as pessoas ao mundo marginal das cidades cujos valores são divergentes dos do mundo rural. As cidades são referidas pela violência, exploração, abandono, prostituição, indicadores do tipo de vida que encontram os migrantes [...]. Por conseguinte, os que ficam na região convivem com a solidão e a dificuldade de trabalhar na área. Mulheres e crianças ficam sós, já que a maior parte dos migrantes é masculina (GALINDO, 2008, p. 110).

O processo migratório tem significados físicos e psicológicos profundos sobre os migrantes e impacta suas existências campesinas. Suas famílias também são chamadas, permanentemente, a se adaptar e a se refazer nesse processo. E não poderia ser diferente. Ninguém fica impune.

Por mais que faça parte da vida de uma sociedade, de uma família e de uma pessoa, a migração é um fato social de grande relevância. E não é porque ela acontece por gerações que isso é menos importante. Cada migração é uma experiência nova. Anos de migração, são anos de experiências. Migrações para diversos lugares do Estado e do país, para o exercício de diferentes papéis (corte da cana, colher laranja, colher milho, construção civil), inevitavelmente, marcam quem migra.

Mas não há migração sem sofrimento. O sofrimento mais visível é aquele que acontece sobre o corpo do camponês que é transformado em trabalhador rural todo ano. A obrigação do cumprimento de metas de produção cada vez mais exigentes, o controle sobre o tempo e a vida em alojamentos, quase sempre insalubres, são provas disso e têm merecido uma maior atenção dos estudos dedicados ao tema da migração. Mas também

devemos estar atentos a questões relativas à subjetividade dos trabalhadores e de suas famílias.

O ato de migrar, por mais comum que seja, mexe nos padrões tradicionais de vida da família camponesa. Com a migração sucessiva, a ausência do pai, chefe de família, é sentida pelos filhos e pela mulher. Os impactos no arranjo familiar são inevitáveis, a família é obrigada a assimilar essa mudança e adequar-se a ela. Novos padrões de conduta são incorporados por pais e filhos. Obrigatoriamente são alterados os papéis sociais dos membros da família e novas relações de sociabilidade são adotadas (ALBUQUERQUE; CANIELLO, 2015). Essas questões precisam de mais estudos e de novas investigações sobre as consequências disso para a família e para a sociedade sertaneja.

Outro dado que precisa ser investigado é o da importância do capital cultural adquirido pelo migrante, capital não acessível aos demais familiares e nem a todos os membros da comunidade na qual ele está inserido. Por mais que a decisão de migrar seja construída em família e que a cumplicidade dos familiares que ficam seja importante para que o ato de migrar seja compensador, e por mais que o sentido da sua migração seja o aprimoramento da propriedade enquanto unidade familiar de produção, o contato reiterado com outro universo de vida, com outros costumes e tradições interfere na visão de mundo do migrante. O indivíduo que migra e retorna nunca é igual ao que foi; sua experiência de migrante repercute nas suas relações familiares e comunitárias, bem como no conjunto de práticas campesinas.

Captar esse conjunto de fenômenos é um desafio enorme para a pesquisa sociológica. Não esteve entre os nossos objetivos iniciais investigar tais questões no presente trabalho. Seguiremos nossas pesquisas e esperamos no futuro esclarecer tais questões.

4 O TRABALHO QUE DANIFICA: ESGOTAMENTO FÍSICO,