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Miguel Melo Bandeira, Câmara Municipal de Braga, Praça do Município, 4700-

No documento REVISTA DE MORFOLOGIA URBANA (páginas 50-52)

Braga, Portugal. Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território, Via

Panorâmica s/n, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: miguel.bandeira@cm-braga.pt

Atualmente, tudo aquilo que não se justifica pela sua utilidade parece carecer de sentido, ou é

mesmo considerado como sendo inútil por uma ampla banda de pragmáticos. Até o próprio

conhecimento, pela sua incondicionalidade e voluntarismo intrínseco, que popularmente era tido por ‘não ocupar espaço’, hoje em dia, sugere- se, só poder ‘valer’ sentido, ou sequer merecer crédito, sobretudo, de quem se arvora de o referenciar, se tiver uma aplicabilidade prática, tanto melhor, quanto mais esta for imediata e contenha uma suscetibilidade tecnológica.

E no entanto, à questão de ‘para que serve’, no caso, ‘a morfologia urbana’, para lá da sua dimensão utilitarista, que não utilitária (tendo em conta o fim), desde logo inscreve-se o valor hermenêutico do que esta pode significar para o conhecimento e a compreensão dos fenómenos e dos estudos urbanos. Questão, ela própria, que convoca outras bem mais elementares. O que é, então, a morfologia urbana? Que importância tem? E por fim, naturalmente, para que poderá servir?

No princípio é sempre o étimo. Dos helénicos

morphé e logos – μορφολογοσ – simplesmente

remissível para o estudo das formas. Isto é, o conhecimento da ‘forma urbana’, uma das mais antigas apreensões do estudo da cidade, de cuja ‘episteme’ geográfica nos pode ajudar a fixar uma genealogia do desenvolvimento metodológico e do objeto de estudo. Diríamos, uma espécie de ‘geomorfologia’ da geografia urbana. Desde logo alicerçada na indagação da origem da cidade, veiculada às condicionantes geomórficas do ‘sítio’ e da ‘posição’; depois, ao estudo do ‘plano urbano’ (combinação dos ‘espaços construídos’ e os ‘livres’: de ‘circulação’ e ‘verdes’ (Oliveira, 1973), e ao estudo sistemático dos elementos do desenho e da forma urbana, desde Mumford (1961), um dos grandes sintetizadores deste estudo interdisciplinar aplicado ao urbanismo. De espécie ou género (eidos) de caracterização clássica da cidade, que considera ‘a forma como princípio ativo do composto substancial’, a forma urbana, na visão ‘Kantiana’, passa a ser uma ‘estrutura sensível’ (espaço / tempo) do pensamento humano, para, a partir da fenomenologia de Hegel, jamais se admitir destituída de conteúdo. Isto é, do estudo epidérmico, estrito da configuração e / ou estrutura externa, evoluiu até à morphé, pela qual, glosando o romancista Victor Hugo, a forma urbana ‘é o fundo que remete à superfície’. A morfologia urbana exprime, pois, ‘a organização económica, a organização social, as estruturas políticas, os objetivos dos grupos sociais dominantes’ (Capel, 2002), a cultura, as cosmologias, utopias, etc., compreendendo os estudos sistemáticos da origem das cidades, dos processos e dos agentes de crescimento e de desenvolvimento (‘morfogénese’), do plano e da estrutura de uma cidade, em particular, e do

espaço urbano, em geral. Dada a sua natureza física (os traçados e os planos) tende a privilegiar a análise visual do espaço urbano (desenho e ‘morfo-volumetria’), pelo que frequentemente se confunde com o domínio da ‘paisagem urbana’. A morfologia urbana pode ser entendida à escala de diversas tipologias de plano, como por exemplo, geomórfico, radio-concêntrico, ortogonal, irregular, compósito (espontâneo e planeando). Por outro lado, pode ser decomposta em dimensões espaciais, como nos propõe Rossi e Tricart (Lamas, 1993): a cidade, o bairro e a rua, ou por elementos básicos: o solo, os edifícios, o lote, o quarteirão, a fachada, o logradouro, o traçado / a rua, a praça, o monumento, árvores e vegetação, e mobiliário urbano (Lamas, 1993).

A evolução das teorias relativas à forma urbana pode igualmente inscrever-se em diversas tradições fundamentais: os trabalhos pioneiros de geografia urbana franceses e alemães, do início do século XX, com referência a R. Blanchard, Karl Hassert e Otto Schlüter; a obra de M. Halbwachs, baseada nos estudos de E. Durkheim (Capel, 2002); a abordagem italiana, fundada por Saverio Muratori, nos anos 1950, tendo por princípio ‘a história como processo de recuperação do sentido de continuidade de prática arquitetónica: tipo, tecido, organismo, e história operativa’, desenvolvida na década seguinte por duas tendências: Muratori / Caniggia versus Aymonino / Rossi; e o enfoque anglo-saxónico, com três abordagens. Neste caso, a ‘histórico-geográfica’, centrada na figura de M. R. G. Conzen, que estabelece três elementos concetuais básicos: o ‘plano de cidade’, o ‘tecido edificado’ e os ‘usos do solo’; a abordagem ‘normativa’ que concorre da vontade de contribuir, através do planeamento, para estabelecer a ‘boa’ forma urbana e melhorar a qualidade do ambiente urbano (Christopher Alexander, Kevin Lynch, Gordon Cullen e Rob Krier); e a abordagem ‘quantitativa’, desde os anos 1960, com Leslie Martin e Lionel March, uma investigação feita a partir da relação das formas com as estruturas urbanas (Oliveira, 2016). Finalmente, na península ibérica, as origens dos estudos sobre a cidade, baseiam-se na sua evolução morfológica, muito particularmente em Portugal, onde se dá como referência pioneira, ‘A Physionomia de Setúbal’ (1918) de Fernando Garcia.

Hoje, o debate morfológico mais significativo centra-se em temas como o ensino da morfologia urbana, os estudos comparativos e a relação entre teoria morfológica e prática de planeamento (Oliveira, 2016) e são dinamizados pelo

International Seminar on Urban Form (ISUF) e a

sua publicação, Urban Morphology, e também pelo promissor Portuguese-language Network of

Urban Morphology.

Por fim, e do nosso ponto de vista, o grande desafio instrumental que se coloca aos domínios da morfologia urbana, prende-se incontornavelmente ao valor insubstituível do desenho urbano nas suas diferentes asserções, tanto na compreensão como na idealização / construção das cidades / espaços urbanos. Para tal, evocamos Ernst Haeckel (1834-1919), o ‘inventor’ da ecologia, cultor da união entre a arte e a ciência, e autor da famosa Generelle

morphologie der organismen (Morfologia geral

dos organismos – 1866), discorrendo acerca da evolução da forma e da estrutura dos seres vivos, mais do que querendo a síntese, exemplifica com a busca da fusão entre a arte e a ciência, entre o sentir a natureza com o coração, e o poder de investigar o mundo natural como um zoólogo.

De facto, enquanto desfrutarmos do corpo e da essencialidade dos sentidos, o valor da materialidade do espaço e do ambiente que este gera, persistirá como sendo um fator determinante do nosso bem-estar e da prospeção do devir comum. Dir-se-ia uma condicionante mais do que resiliente face aos deslumbramentos fáusticos da urbanização viral, global, autopropulsionada na

‘ciborganização’ urbana que profeticamente se anuncia. Útil, no mínimo, porque desafiador do vaticinado deus ex-machina que ameaça tornar inútil tudo o que restar fora de si.

Referências

Capel, H. (2002) La morfología de las ciudades (Ediciones del Serbal, Barcelona).

Garcia, F. (1918) A Physionomia de Setúbal.

Estudo de geografia humana (Liga de Defesa e

Propaganda de Setúbal, Setúbal).

Haeckel, E. (1866) Generelle morphologie der

organismen (Reimer, Berlim).

Lamas, J. (1993) Morfologia urbana e desenho da

cidade (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa).

Mumford, L. (1961) La cité a travers l’histoire (Paris, Éditions du Seuil).

Oliveira, J. M. P. (1973). O espaço urbano do

Porto, condições naturais e desenvolvimento

(Coimbra, Instituto de Alta Cultura, CEG). Oliveira, V. (2016) Urban Morphology. An

introduction to the study of the physical form of cities (Springer, Dordrecht).

Uma reflexão sobre a necessidade e o contributo da

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