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03. VIDA E SÍMBOLO: A CONFIGURAÇAO ESTÉTICA ENTRE DISCURSO

3.1 Mikhail Bakhtin: o discurso na vida e na arte

Num primeiro passo julga-se necessário na teoria de Mikhail Bakhtin a definição da relação da obra artística – arquitetura - através da sua linguagem com a vivência das pessoas no cotidiano das reduções jesuíticas. Neste contexto, os signos da obra arquitetônica eram expressões ideológicas de um modelo de convivência entre culturas européias e indígenas. Sua relação partiu de discursos desiguais, mas em contato entre si, em suas respectivas linguagens. O autor aborda estas realidades humanas através da linguagem.

Atuante contra o formalismo russo Bakhtin (1997) criticou na época pós-revolucionária da União Soviética, os doutrinários da “estética material” e também os de uma semiótica formal objetivada no formalismo russo, acusando-os de reduzirem a problemática da criação poética a simples questões de linguagem (p. 05). Observa-se principalmente na atitude dos formalistas um menosprezo dos demais elementos do ato da criação, a dizer o esquecimento da função comunicativa e social entre emitentes e receptores da linguagem. Neste sentido, a proposta de Bakhtin valoriza o sujeito em sua produção linguística através da ação, interpretando-o como elemento participativo e atuante no processo de comunicação (cf. a coletânea da

“Estética da Criação Verbal” (1997) que reúne, na sua maioria, textos escritos durante os anos 1920).

Em 1929, um livro de autoria de Bakhtin e Volosinov (cf.

CLARK/HOLQUIST, p. 368) “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (2006) abordou os problemas fundamentais do método sociológico dentro da ciência da linguagem. Dá destaque às questões ideológicas e ao papel dos signos em sua propagação. Neste texto, Bakhtin desenvolveu uma atitude sócio-linguística, isso muito antes dessa corrente existir na área das letras. Destaca ali a dialética do signo verbal, onde o signo é de um lado um elemento

ontológico da vivência, mas de outro um veículo da comunicação. Seus pensamentos foram por muito tempo esquecidos. Isso se deve ao fato de ele ter tido uma vida de caráter intelectual marginal na União Soviética stalinista.

Apenas nos anos 1960, o autor ganhou uma maior reputação internacional, e finalmente em 1984, quando os norte-americanos Clark/Holquist publicaram sua biografia interligando sua vida com suas idéias, torna-se um dos destaques do debate lingüístico. Faraco (2007, p.99) explica que essa redescoberta de Bakhtin com seu caráter vanguardista, devido à época dos estudos globalizantes da dimensão existencial, ganhou visibilidade pelo fato que ele reuniu nas suas obras os mais diversos campos. Assim, contemplam-se a psicologia, a literatura, a estética, a educação e a teoria cultural, todos em proveito de uma construção teórica coerente direcionada a uma nova heurística. Seu enorme potencial heurístico e a maneira singular de Bakhtin de se expressar permitem, a nosso ver, uma nova compreensão da condição humana e sua estética.

Os autores e pensadores que trabalham os processos de comunicação na corrente bakhtiniana hoje possuem alta relevância. Trazem à evidência aspectos não previsíveis, não pré-estabelecidos nas ações humanas e incluem assim os aspectos da linguagem aos processos das relações sociais e da integração social. Neste aspecto, o pensamento da estética é visto como agente que “forma” a vida, sendo responsável pela transmissão cultural.

Conforme Clark/Holquist (2008, p.37,39), a possibilidade de articular e de encontrar conexões entre categorias aparentemente antagônicas é o que destaca a ênfase dialógica do autor. Nela, é preconizado o “tudo” como detentor de significado e este significado é construído socialmente. Nas palavras de Bakhtin: “... eu posso significar o que eu digo, mas só indiretamente, num segundo passo, em palavras que tomo da comunidade e lhe devolvo...” (p. 39). A questão do significado é dada, aqui, como um “produto cultural”, o qual é elaborado e compartilhado em meio de uma comunidade específica dentro de um sistema cultural, o qual depende das ações humanas.

Este mundo dos atos da ética se relaciona com dois outros mundos: com o mundo do conhecimento e da cognição (inclusive da reflexão crítica dos atos), e com o mundo estético (BAKHTIN 1998, p. 30). Assim, a obra artística

(estética) acontece como um elemento “delimitado no espaço e no tempo” por atos, mas vive também numa tensão significativa de identificação e conhecimento com sua materialidade. Por isso, a obra é aberta, não só a estes outros mundos, mas também ela “vive” em relação com seu autor e seus observadores. Desta maneira, seus valores não são meramente abstratos, mas trata-se de uma construção real que se “pratica” na vida cotidiana. Para Clark/Holquist (2008, p. 90), essa construção “arquitetônica” socialmente integrada da obra enfatiza a temática percorrida por Bakhtin focada em ação, movimento, energia e desempenho. Neste ambiente também acontece a construção do “Eu” como pólo de subjetividade. Essa perpassa as relações éticas de comunicação presentes na existência humana. Trata-se aqui da raiz do dialogismo bakhtiniano. Este não é um diálogo efêmero e espontâneo, mas um diálogo permanente que nem sempre é simétrico e harmonioso, mas existe entre diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. Assim, também as reduções jesuíticas podem ser vistas como obra de um diálogo polifônico.

O termo “Dialogismo” é descrito por Faraco (2007, p. 101) como sendo uma “Antropologia filosófica”. O autor explica que Bakhtin não oferta uma teoria em particular, um modelo síntese de suas idéias, mas uma sabedoria particular que promove o entendimento do mundo real. Neste sentido, o Dialogismo pode ocorrer em sua amplitude entre interlocutores (diversas vozes sociais) ou entre discursos, trazendo de forma significativa a perspectiva das outras vozes a um espaço de interação. Este espaço é o universo semiótico da obra, constituído pela cultura numa perspectiva globalizante (mas não global). Nesta visão, o

“ser humano” (um elemento muito importante na ideologia humanística e jesuítica) passa a ter um caráter ativo e responsivo, ou seja, atua não mais como um reflexo do exterior e, sim, está embutida na conversa de consciências. Assim, a dinâmica entre exterior e interior do ser humano é alimentada pelos signos sociais e nas relações cotidianas de onde emerge a singularidade de suas expressões na sua subjetividade – o que representa a resposta jesuítica aos desafios do protestantismo com sua responsabilidade individual do Cristão.

Entende-se que os pensamentos bakhtinianos, por tratarem da essência das relações humanas numa dimensão existencial, tornam sua interpretação um ato complexo e até contraditório. Quando se pretende avaliar os processos de trocas culturais no caso das reduções jesuíticas, buscando a partir da inserção de novos signos (imagens, literatura e arte) uma configuração estética dos jesuítas numa teoria ou antropologia filosófica, essas obras arquitetônicas e urbanísticas se apresentam de maneira expressiva alimentadas por este diálogo. Sabe-se que os processos de integração cultural entre jesuítas e guaranis são diálogos, seja de forma oral ou escrita, através de imagens ou pela arte e arquitetura. Podemos dizer que, de primeira vista, as reduções podem ser vistas como palcos para uma estratégia dialógica de inserção cultural, onde convive a ideologia dos jesuítas com as idéias dos indígenas;

surge neste contexto um espaço de comunicação, e até uma mescla dos conhecimentos. Como visto anteriormente, este diálogo intercultural ocorre quando a minha “fala” é refletida no “outro”, como é o caso das trocas de informações ocorridas no momento da pregação católica nos discursos religiosos. Tais discursos carregados de ideologia são descritos por Bakhtin (2006) como detentores de significado. Segundo o autor: “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia.” (p.

29).

Neste contexto, Bakhtin não insere apenas a importância da comunicação dentro da dimensão cotidiana, mas coloca também ao mesmo patamar uma esfera ideológica. No processo de aculturação estabelece-se, ao se propagar a visão católica de mundo (enunciado) um toque nas mentes dos guaranis, uma visão de mundo diversa, estabelecendo um dialogo onde não só o mundo jesuíta e o mundo guarani se encontram/chocam, mas onde também o consciente e o inconsciente interagem nos dois lados fornecendo novos sentidos de valores. A presença dos signos (palavra, texto, imagem e arte) materializa, assim, uma ideologia moderna num reflexo das estruturas sociais existentes. Os interlocutores jesuítas e índios guarani encontram-se neste lócus da interação comunicacional: no lócus da vida. E a partir desta interação

os interlocutores passam a propagar sua própria expressão em diversos campos da vida humana.

Este ambiente de valores, no qual se encontram os indivíduos, é responsável por dar consistência ao conteúdo da obra arquitetônica das reduções. É visto, por Bakhtin, como agente gerador das relações de tempo, espaço e sentidos. Tais relações acabam por transformar os elementos constituintes deste espaço em “constituintes artísticos significantes” (BAKHTIN 1997, p. 202). Nesta interpretação, o mundo ao redor do indivíduo adquire consistência por meio dos significados e passa a criar sua própria realidade estética. Distingue-se na sua estética tanto da realidade cognitiva como da realidade ética (o ato propriamente dito), porém, não fica indiferente a eles. Nos processos de comunicação, suas formas estéticas (carregadas de mensagens) são as responsáveis por estruturar a linguagem e dar forma ao conteúdo.

Portanto, o campo estético é um campo radicalmente social do ser humano configurados em processos.

Quando se fala, neste momento, em “processo” compreende-se que a transmissão de uma idéia, um conteúdo, ultrapassa o simples ato da “fala” para inserir-se numa questão maior que é a transmissão de um conteúdo criado dentro de uma relação de troca entre o locutor e o ouvinte. Neste sentido, Bakhtin nos leva à questão da exterioridade da configuração espacial. No texto

“A forma espacial do herói” que faz parte da coletânea ‘Estética da Criação Verbal’ (1997, p. 56) o autor declara que o fato do observador perceber o objeto a partir de suas fronteiras exteriores torna imprescindível a análise do aspecto físico da obra. Neste sentido, a forma e organização das reduções, sendo parte de um diálogo intercultural, torna-se expressão espacial de uma visão do homem e de sua vivência.

Reforça-se aqui a importância do pensamento bakhtiniano para as análises dos processos de comunicação gerados por meio de dois conceitos fundamentais na obra do autor: O enunciado e o discurso. Para Bakhtin, a

“minha” interpretação da realidade é baseada na visão unificadora do “outro”:

eu me completo a partir do outro, assim não há comunicação sem precedentes.

Como esta pesquisa sobre as reduções pretende focar-se no ato da

transmissão cultural por meio de obras arquitetônicas, seguimos Bakhtin quando interpretamos a comunicação cultural como a ação que “absorve e transmuta” a comunicação espontânea (1997, p. 282). Neste momento, o conceito do enunciado, seja ele oral ou escrito, nasce de uma visão individual, porém é criado a partir das interpretações do mundo construído por uma coletividade dentro de uma cultura e tempo específico. Assim, o enunciado é uma unidade de comunicação verbal. Transmite uma mensagem particular funcionando como um elo, dentro da extensa cadeia de outros enunciados, e objetiva subjetividades.

Em Bakhtin (1997, p. 294) compreende-se que a “fala”, a materialidade da comunicação, só se concretiza na forma de enunciados que são transmitidos por meio de um discurso, no qual os enunciados possuem, conforme o autor, características estruturais próprias e se constituem por um início e fim absolutos. Por isto, a interpretação dos índios guaranis frente às novas imagens e enunciados que lhes foram dados se iniciam através de um processo de aculturação, mas este se efetiva pelos filtros culturais dos próprios índios, para só então serem codificadas e aceitas.

Para poder relacionar o enunciado advindo da ideologia jesuítica para com os índios, precisa-se, no nosso caso, passar-se pela materialização deste discurso na forma espacial das obras arquitetônicas e dos espaços sociais das reduções jesuíticas. Desta maneira, a ideologia, os modos de vida e a estética jesuítica fundamentam e proporcionam o conteúdo dos enunciados, na forma como os artistas (em sua maioria índios) os concebiam. Enquanto os jesuítas são os “responsáveis” por dar forma ao conteúdo (quer dizer são eles que dão respostas à situação da missão), o discurso arquitetônico e a linguagem da pregação, os quais se transmitem como enunciados alcançam seu objetivo quando ocorre a dissipação dos ideais jesuíticos entre os guarani de forma ativa.

Bakhtin (1997) relata que qualquer tipo de enunciado pode ser percebido como “... o intuito discursivo ou o querer-dizer do locutor...”(p. 301), mas que este desejo não determina a totalidade do enunciado. Pelo contrário, este é formado também pela parte subjetiva dos processos de comunicação do lado

do ouvinte. Assim, a subjetividade está envolta às “respostas de outros enunciados”, ela é plural e polifônica, ou seja, a ação do locutor sempre encontra uma maneira de se basear, reafirmar, contrariar, complementar discursos anteriores, tanto de outros artistas, como de outros contempladores.

Isso reforça a idéia já descrita de que a expressão de um enunciado perpassa necessariamente a relação com o outro, sendo essa uma relação intersubjetiva (figura 01). Na comunicação cultural, estes enunciados partem de visões de mundo que são reflexos da vida cotidiana de todos os lados. Os diálogos, previamente trocados entre interlocutores e conservados em obras, fazem parte da mesma organização social. Ou seja, conforme Faraco (2007), são envoltos em relações sociais dentro de um universo historicamente constituído, onde possam participar de forma ativa e responsiva (p. 103).

Outro

EU

O OLHAR SÍGNICO Mikhail Bakhtin

SIGNO

COMUNICAÇÃO Diálogo entre Interlocutores

ENUNCIADO

-ESPAÇO INTERACIONAL

COMUNICAÇÃO

Figura 01: Quadro síntese sobre O Olhar Signico de Mikhail Bakhtin.

Fonte: Elaborado pela autora, 2011

É neste contexto que surgem e se aplicam sistemas de signos. São os signos que capacitam a mensagem em ser gerada a partir de uma coletividade e com caráter estável e aberto. No entendimento da arte, esta reflexão de Bakhtin coloca este tipo de pensamento, segundo Clark/Holquist (2008, p. 221-222), dentro das correntes socioeconômicas e históricas da arte, quer dizer

afora do campo artístico propriamente dito, mas sem acarretar a perda de sua característica estética. Mesmo se a arte, na visão bakhtiniana, considera a

“obra em si”, esta fica fora de si numa interação de fatores – imanentes e causais – que se fundem na sua expressão visual. No entendimento de Bakhtin, a arte se define, assim, como um evento que possui a dimensão da troca, da interação entre a obra e seu observador, ou seja, ela é um ato de comunicação.

Em Bakhtin, a dimensão estética é trabalhada a partir da elaboração de uma estrutura para a obra o que resulta na fusão entre o material, a forma e o conteúdo (1997, p. 207). Porém, nega uma relação direta entre a composição material de uma obra e sua constituição estética, pois se apóia na diferenciação entre obra=objeto e obra=estética. Como Bakhtin cria, em base da sua compreensão kantiana, uma visão distinta entre mente e mundo, ele fornece uma interpretação onde o aspecto físico (=matéria) é dado pela expressão visual da obra de arte, mas difere de sua expressão estética (=

conceito) que é moldada pela mente. É importante para esta pesquisa que assim como a obra de arte é um objeto (material) que é intensamente carregado de poder simbólico ou significação conceitual (mental), por conseguinte gera um aumento de tensão, uma maior ligação, em relação a outros elementos lingüísticos. Isto reforça a tese de que as obras de arte e a arquitetura jesuítica formam um importante arsenal para compreender o conjunto do material e do mental nos processos de inserção cultural. Elas ofertam uma carga mais efetiva da sua ideologia, sendo inseridos no dominante catolicismo europeu e intencionado a ser transmitido em terras americanas.

Consequentemente, Bakhtin (2006) aponta a questão do poder nos aspectos da comunicação (p.15), onde se insere o pensamento hegemônico nos atos de comunicação ideológica. Apesar de existir resistências entre os indígenas, os guaranis gradativamente passam por uma etapa de adaptação à hierarquia sugerida pela classe dominante. Não se pode negar que os jesuítas formaram esta relação através da arquitetura, sem maiores conflitos, de uma maneira “passo-a-passo”, o que talvez tenha contribuído em seu sucesso. Esta estratégia do “passo-a-passo” será descrita no capítulo relacionado às

estratégias de pregação dos integrantes da Companhia de Jesus, para depois compreender a função da arquitetura também na conformação da cultura guarani, e não só na cultura jesuítica.

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